quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Lívia Natália - Água Negra (livro)

Água Negra


Chove muito na cidade.
No asfalto betumoso
um sangue transparente,
ora de um rubro desencarnado,
ora encardido de um cinza nebuloso,
é vomitado em cólicas
por toda a parte.


Das paredes duras vaza um mais escuro que,
imagino,
seja a água mordendo as estruturas.


A água é assim:
atiçada do céu,
infinita no mar,
nômade no chão pedregoso,
presa no fundo de um poço imenso:
a água devora tudo
com seus dentes intangíveis.




LÍVIA NATÁLIA

Água Negra é um mergulho pra dentro de nós mesmas. Depois de séculos sendo personagem, nos tornamos senhoras de nossas histórias. Sem o imaginário preconceituoso de uma sociedade branca, racista, sexista, homofóbica, judaico-cristã, na tarefa incansável de sair do lugar de submissão e inferioridade historicamente reservado às escritoras negras. A mulher negra como mero objeto de uso e abuso masculino: ora explorada sexualmente, ora máquina insaciável de prazer. Água Negra nos devolve nosso corpo.

É revigorante e motivador acompanhar a reelaboração da mulher negra através dos escritos de Conceição Evaristo, Alzira Rufino, Esmeralda Ribeiro, Elizandra Souza e agora, Lívia Natália, uma grande alegria. Felicidade maior ainda em saber que Água Negra será lido na contramão das estatísticas.

A invisibilidade de escritoras negras no mercado literário não quer dizer que inexista uma produção fora do mainstreem das grandes editoras – assim como a invisibilidade de nomes na literatura brasileira não significa que elas não tenham existido, registros datados a partir de 1700 revelam escritoras como Rosa Egipcíaca, Teresa Margarida, Maria Firmina dos Reis, Luciana de Abreu, Auta de Souza, até chegarmos em Carolina Maria de Jesus, sem dúvida, um divisor de águas, já que foi fortemente comentada pelos meios de comunicação, ainda que tenham investido em desautorizá-la.

Toda vez que uma mulher negra fala por si mesma numa obra literária, ela empodera e dá voz a milhares de outras mulheres, Negras ou não.

A escrita de Lívia é “das delicadezas”, uma escrita de saia rodada, feminina e afiada. Ela carrega um abebe e um ofá e baila tanto ao som do agueré quanto o ijexá. Com sua voz macia, porém firme, nos guia por céus estrelados e nos desagua no colo de Orixás Omi.

Água Negra é um pedaço de mim, de você, das nossas e dos nossos. É água, Omi, barriga fértil gerando sonhos, desejos, esperanças.

Como todo rio, segue o seu curso e quando necessário traça novos caminhos. Lívia nos conduz por esses caminhos. A sua poesia é assim, tem passado e futuro, amor e dor, doce e amargo. Água Negra, como nós, mulheres negras, tem raízes e asas.

Mel Adún é jornalista e poeta dos Cadernos Negros

Água Negra foi o livro premiado pelo Projeto de Cultura e Arte do Banco Capital, categoria poesia, no ano de 2011.
 
Lívia Natália é Soteropolitana e como boa filha de Osun, se criou nas dunas no Abaeté. É poeta e contista, suas primeiras missões afetivas. Além disto, é Doutora em Letras pela Universidade Federal da Bahia na área de Estudos Literários e é Professora Adjunta do Setor de Teoria da Literatura na mesma instituição. Quando criança não tinha grandes narrativas a contar na volta das férias, então inventava. Nasce aí a ficcionista. A poeta vem desde sempre, descosendo o mundo. Descobriu a intimidade com as palavras muito cedo. Por isto, além de ministrar disciplinas de Teoria da Literatura, discute a produção literária contemporânea em seus artigos e ensaios e trabalha com oficinas de Criação Literária na Universidade e em casas de repouso, escolas e ONGs de apoio a crianças e adolescentes em situação de risco. Água Negra é seu livro de estréia.

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