sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Abraão Vicente - e de repente a noite (resenha - A Nação)


Abraão Vicente – e de repente a noite
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 229, de 19/01/2012, p. E15

A recente produção literária de Cabo Verde realizada na diáspora, ou a tendo como tema, apresenta textos de interessante fôlego e com novos paradigmas ao sistema literário do arquipélago nos recentes anos. Para ilustrar tamanha desenvoltura e inovação, temos na poesia a reescritura incessante e ininterrupta de poemas de José Luis Hopffer Almada, os livros “Lisbon Blues” de José Luiz Tavares e “Areias e Ramas” de Maria Helena Sato; enquanto na prosa, assinalamos “Para onde voam as tartarugas” de Joaquim Arena e “Contos da Basileia” de Tchalê Figueira configuram-se agradáveis surpresas.

O multifacetado artista e agora deputado Abraão Vicente, nascido na ilha de Santiago em 1980, lançou a inquietante prosa de “O Trampolim” em 2010. No final de 2011, o seu primeiro livro de poesia, “e de repente a noite”, um enxuto conjunto de 29 poemas pela Kankan Studio.

Neste livro, Abraão Vicente revela-se como cidadão do mundo durante os três anos de vivência na Espanha. A condição diaspórica é sentida em versos por vezes melancólicos e inquietantes do sujeito lírico distante de sua terra. Em uma escrita de profunda introspecção, a recorrência ao silêncio como alegoria da inadaptação ao cotidiano – como em “Renúncia”, “Bastardo e/ estrangeiro/ onde quer/ que eu vá (...) Solidão” – marca as dificuldades da contemporaneidade e da fragmentação do sujeito agoniado com o tempo e o local onde vive: “Tempo de ser nada,/ reinventar o vazio. (...)  Não.// Eufemismo ruído,/ poesia desse tempo/ de se ser coisa alguma”.

A criação poética na diáspora agoniza, o isolamento do cabo-verdiano atinge o fazer poético em pleno diálogo com o Arménio Vieira de “No Inferno”: “A que sabe questionar/ uma folha em branco?” A intertextualidade prossegue com Manuel Bandeira – Pasárgada do campo do prazer físico – e Oswaldo Alcântara – Pasárgada do campo da justiça e da utopia – no poema “Rei”, no qual diferencia as agruras de sua época, “sou rei de coisa nenhuma”, e enfatiza “Sou rei e guerreiro desse/ tempo de perdedores,/ desse momento de quiçá…// …desta página onde rascunho/ meu retrato de louco”.

O comprometimento do sujeito lírico com o fazer poético desvela-se de forma solitária, a expor o comportamento individualista da atualidade e a busca por uma existência digna representada no comovente “Ser poeta”, pois só assim com a morte do silêncio inerte, firme e resistente com sua poesia a combater às agruras do mundo “valerá a pena/ teres existido”. Comprometimento que remete a um poeta histórico, Oswaldo Osório, que vivenciou o tempo da utopia e o belo “Signo Poético”: “levar ao tribunal da Humanidade os crimes/ e as mentiras que são milhões/ mas sobretudo compreender o teu tempo como nenhum / e por isso loucamente o amar”.

Charles Baudelaire consagrou o incômodo do homem moderno com a modernidade, sendo uma sensação permanente em nossos dias, que conduz o sujeito lírico a subverter a máxima cartesiana do “penso, logo existo” perante a dolorosa convivência entre os homens no poema “Pensar ser outra coisa”: “Sou gente penso e/ logo a duvida persiste”.

Apesar da recorrência a um silêncio quase que tangível, matéria bruta e incessante dessa poesia, “Ensina-lhes que/ sua essência/ é o antônimo/ de vazio”, o sujeito lírico revela um lirismo amoroso em “Lembro-me de ti”, por exemplo, e o oposto, a inconcretude do amor em “Talvez”, poema intimista que podemos identificar semelhança aos versos de Mario Lucio Sousa em “Para nunca mais falarmos de amor”.

O sujeito lírico marca a metapoética em “Momento da palavra”, sua origem étnica de negro e africano em “Conversas com Deus” e a necessária reinvenção do ser diante das impossibilidades do hoje, “Reinventa-te/ para ser algo mais…”. Em “e de repente a noite”, com poemas curtos em sua maioria e versos breves, Abraão Vicente desvela uma poesia de raros momentos de lirismo amoroso, muitas vezes melancólica e angustiada com a existência, em uma dicção íntima do eu que merece a atenção dos leitores.

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