“Quase um caso de polícia” – uma leitura crespa de alguns poemas de Cristiane Sobral
Ricardo Riso
24 de janeiro de 2012.
RESUMO: A presente análise aborda alguns poemas que têm como tema os cabelos crespos do livro “Não vou mais lavar os pratos”, de Cristiane Sobral. São eles: “Algodão Black Power”, “Cuidado”, “Escova Regressiva?”, “Invisível” e “Pixaim Elétrico”. A escolha de nossa análise concentrar-se nos cabelos crespos impôs-se por ser um tema da ordem do dia, de exposição constante e direta do racismo que negras e negros sofrem diariamente, sendo obrigados a seguir um modelo de beleza que jamais conseguirão alcançar. A imposição do cabelo “liso” e “bom” é motivo de graves crises entre nós em um processo de rejeição/aceitação repleto de contradições para a constituição da identidade negra inserida no perverso discurso da democracia racial brasileira, que envolve questões étnicas, políticas, identitárias, de gênero e de mercado. Para contribuir à reflexão da complexa relação de negros e negras com seus cabelos crespos na sociedade racista brasileira, escolhemos alguns poemas de “Não vou mais lavar os pratos” para exposição de nosso ponto de vista escorado nos ensaios críticos de Nilma Lino Guedes, bell hooks, Miriam Alves, Sueli Carneiro, Edmilson de Almeida Pereira, Núbia Pereira de Magalhães Gomes, Nelson Olokofá Inocêncio, Maria Nazareth Soares Fonseca, Cuti, Octávio Ianni, entre outros.
Nascida no Rio de Janeiro em 1974 e desde 1990 radicada em Brasília, a atriz, arte-educadora e escritora, Cristiane Sobral Corrêa Jesus possui ampla trajetória no teatro, com destaque para a liderança do grupo teatral “Cabeça Feita” e de textos para o teatro como “Uma boneca no lixo” (1999), “Dra. Sida” (2000) e “Petardo, será que você aguenta?” (coautoria com Dorival Viera, 2004), para além de atuar como professora universitária. A partir de 2000 começa a se destacar na literatura negra brasileira ao estrear na publicação coletiva “Cadernos Negros” nº 23. Desde então, foram várias participações em “Cadernos Negros” até o lançamento do livro de poesia “Não vou mais lavar os pratos” em 2010, um impressionante sucesso editorial que esgotou os seus mil exemplares em apenas seis meses de venda, o que logo exigiu uma segunda edição no ano seguinte, esta com prefácio da Profª Ms. Michelly Pereira. Interessante o sucesso obtido sem maiores estratégias de marketing, mas sim estimulado pela mobilização dos diversos agentes do movimento negro, da rede de contatos entre os apreciadores da literatura negra brasileira e o bom uso da internet para divulgar o livro no blog da autora e em redes sociais como o Facebook, onde Sobral participa ativamente expondo suas inquietações literárias, de gênero, e étnico-raciais. A respeito desse comprometimento do intelectual com sua comunidade, Edward Said afirma que:
Em tempos difíceis, o intelectual é muitas vezes considerado pelos membros de sua nacionalidade alguém que representa, fala e testemunha em nome do sofrimento daquela nacionalidade. (...) A essa tarefa extremamente importante de representar o sofrimento coletivo de seu próprio povo, de testemunhar suas lutas, de reafirmar sua perseverança e de reforçar sua memória, deve-se acrescentar uma coisa, que só um intelectual, a meu ver, tem a obrigação de cumprir. Afinal, muitos romancistas, pintores e poetas, como Manzoni, Picasso ou Neruda, encarnam a experiência histórica de seu povo em obras de arte, que, por sua vez, foram reconhecidas como obras-primas. Nesse sentido, penso que a tarefa do intelectual é universalizar de forma explícita os conflitos e as crises, dar maior alcance humano à dor de um determinado povo ou nação, associar essa experiência ao sofrimento de outros. (SAID, p. 52-53)
Com intenso fôlego e já maturidade literária comprovada nos contos publicados anteriormente em Cadernos Negros, ao final de 2011 Cristiane Sobral lança o livro de contos “Espelhos, Miradouros, Dialética da Percepção”, confirmando o bom momento editorial para as escritoras negras brasileiras naquele ano.
Neste artigo preferimos abordar os poemas que têm como tema os cabelos crespos da segunda edição de “Não vou mais lavar os pratos”. São eles: “Algodão Black Power”, “Cuidado”, “Escova Regressiva?”, “Invisível” e “Pixaim Elétrico”. Uma opção que, a princípio, pode parecer redutora por causa da segura e surpreendente escritura de Cristiane Sobral, de diversidade temática e recursos estético-literários valorizadores de sua poesia muito bem desenvolvida na polifonia de vozes femininas, em que a mulher negra (ou não) aparece em diferentes perspectivas e com novos paradigmas, em relação à maternidade, aos relacionamentos com o sexo oposto, conforme afirma Sales Ferreira:
“O universo tecido na escrita dessa autora propõe uma teia fiada por personagens femininas que buscam nos homens a sua completude, para que, juntos, possam ser cada um, eles mesmos. A sua escritura, ciência das fruições da linguagem, errante e contraditória, constrói um universo povoado de seres que se querem livres, não por serem sós, mas por fazerem parte de um mundo em que um completa o outro” (FERREIRA, 2011, p. 510).
aos dramas, aos anseios e à conquista de empoderamento das mulheres contemporâneas como explicitado na recusa do poema-título, colocando em xeque a subalternidade em relação aos homens. Traços literários com apurado senso estético que colocam Cristiane Sobral como uma voz feminina e negra das mais importantes no cenário literário brasileiro, principalmente por ter uma poiesis desconcertante, de voraz ironia, de intensa ousadia revelada em uma escrita coloquial que explora a polissemia das palavras e acrescenta novos sentidos semânticos, escurecendo seus significados com imagens fortes nas diferentes situações de tensão da nossa sociedade, com ênfase nos embates raciais excludentes de negros dos lugares de destaque do cotidiano nacional.
Sendo assim, a escolha de nossa análise concentrar-se nos cabelos crespos impôs-se por ser um tema da ordem do dia, de exposição constante e direta do racismo que negras e negros sofrem diariamente, sendo obrigados a seguir um modelo de beleza que jamais conseguirão alcançar. A imposição do cabelo “liso” e “bom” é motivo de graves crises entre nós em um processo de rejeição/aceitação repleto de contradições para a constituição da identidade negra inserida no perverso discurso da democracia racial brasileira, que envolve questões étnicas, políticas, identitárias, de gênero e de mercado. Para contribuir à reflexão da complexa relação de negros e negras com seus cabelos crespos na sociedade racista brasileira, escolhemos alguns poemas de “Não vou mais lavar os pratos” para exposição de nosso ponto de vista escorado nos ensaios críticos de Nilma Lino Guedes, bell hooks, Miriam Alves, Sueli Carneiro, Edmilson de Almeida Pereira, Núbia Pereira de Magalhães Gomes, Nelson Olokofá Inocêncio, Maria Nazareth Soares Fonseca, Cuti, Octávio Ianni, entre outros.
“Minha literatura não é fútil, é útil”, afirmou a autora em conversa conosco quando do lançamento da segunda edição de “Não vou mais lavar os pratos” na Kitabu – Livraria Negra. Útil por retirar a mulher negra dos lugares de subalternidade determinados por uma sociedade configurada pela discriminação racial e escorada no ideal de branquitude como padrão estético a ser seguido, aos quais o cânone literário também compartilha. Cristiane Sobral é detentora de uma escritura contra a invisibilidade da mulher negra, procurando trazer afirmações identitárias para as negras alijadas da história oficial deste país. Sua proposta literária reflete as preocupações da ativista negra Jurema Werneck, para quem
As mulheres negras não existem. Ou, falando de outra forma: as mulheres negras, como sujeitos identitários e políticos, são resultado de uma articulação de heterogeneidades, resultante de demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento das condições adversas estabelecidas pela dominação ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravidão, expropriação colonial e da modernidade racializada e racista em que vivemos.(...) (WERNECK, 2010, p. 10)
As condições adversas da mulher negra em uma sociedade patriarcal e racista explicitada por Jurema Werneck demonstram a necessidade e a importância de uma literatura produzida por uma escritora negra, comprometida em desvelar questões antitrracistas e antissexistas, porque a mulher negra é atingida primeiro pela condição étnico-racial, depois pelo gênero, e em seguida dentro do gênero, pois sofre com as discriminações da mulher branca e de reivindicações feministas que não atendem às demandas das mulheres negras. Logo, percebe-se a necessidade de enegrecer o feminismo. Segundo a ativista negra Sueli Carneiro:
Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente, demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por metade da população feminina do país que não é branca; introduzir a discussão sobre as doenças étnicas/raciais ou as doenças com maior incidência sobre a população negra como questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área de saúde; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras. (CARNEIRO, s/d, p. 3)
A ensaísta e escritora Miriam Alves dá prosseguimento à discussão:
Já a palavra de ordem para o corpo da mulher negra seria forçosamente outra tendo em vista o aviltamento do qual foi vítima esse corpo negro que passou pela coisificação, mutilação, primeiro pela força da escravização, e depois seguido da automutilação, para aproximá-lo da estética branca alienígena à sua feição natural. Antes de tudo, é um corpo vitimado que necessita de se desvencilhar das marcas de sexualização, racialização e punição nele inscritas para redefini-lo numa ação de afirmação e autoafirmação de identidade; de formar, assim, um novo locus de compreensão sem, no entanto, esquecer a necessidade de esse mesmo corpo comer bem, vestir-se, entre outras coisas. Os versos e os textos realizam a desconstrução desse locus de confinamentos onde ficamos excluídas da noção de estética nacional, para chegarem à construção, ou, pelo menos, a apontar de outro lugar de brasilidade onde o Brasilafro feminino possa existir em plenitude. (ALVES, 2010, p. 71)
A postura explícita de mulher negra e de defesa incontestável de uma estética negra em parte dos poemas de “Não vou mais lavar os pratos” conduzirá a análise dos poemas de Cristiane Sobral ao conceito de “metáfora do corpo tatuado”, desenvolvido por Edmílson de Almeida Pereira e Núbia Pereira de Magalhães Gomes, no qual a relação tensa entre corpo e forma de comunicação é evidenciada, obliterando as possibilidades de entendimento do Outro. Segundo os dois autores:
Nossa intenção, por agora, se volta para a análise do estereótipo de exclusão que incide sobre os indivíduos negros e que faz valer a representação de negros como sinônimo de inferioridade étnica, baixa condição socioeconômica e ausência de padrão estético. Esse aspecto é interessante na medida em que o corpo negro tem sido utilizado, historicamente, como interface para elaborações discursivas que anunciam sua própria rejeição. Em outras palavras, o corpo negro tem sido escrito por outros agentes sociais, além dos próprios negros. Esse fato ocorre também com corpos de outras etnias, mas em relação aos negros, chama a atenção o caráter de saturação dessa modalidade de discurso escrito no corpo. (PEREIRA; GOMES, 2001, pp. 220-221).
A ideologia racista procura diferenciar o corpo negro do corpo branco, determinando ao negro signos de não-humanidade que o aproximam da natureza, enquanto ao corpo branco signos de cultura, de pureza e elevação moral (idem, p. 221). Ao avançar a dicotomia corpo-natureza e corpo-cultura, esse pensamento impôs a criação de conceitos de exclusão e inclusão social. Para os corpos negros que foram situados na esfera da natureza, elaborou-se o discurso da exclusão ao mesmo tempo em que para os corpos brancos, situados na esfera da cultura, foi inserido o discurso da inclusão social (idem, p. 222). Essa dicotomia corpo-natureza x corpo-cultura só se sustenta para justificar o passado escravocrata da sociedade brasileira e a manutenção do status quo racista ainda vigente.
Para combater esse discurso predominante de desumanização do corpo negro e as formas sutis as quais se apresenta, que a escrita literária de Cristiane Sobral desvela a valorização do corpo negro, pois
Assumir-se negro numa sociedade cujos referenciais de beleza passam pelos traços europeus, que também nela se mostram, é uma atitude de enfrentamento quase sempre diagnosticada como decorrente de rancor que não tem motivo para existir. Em vez de lidar com as formas discriminatórias que produz, o censo comum descarta a questão porque acredita que vivemos numa sociedade que não tem preconceitos. O mito da democracia racial continua a se perpetuar entre nós. (FONSECA, 2011, p. 13)
O enfrentamento ao racismo impregnado na sociedade brasileira torna a palavra poética de Cristiane Sobral uma voz ativa e antirracista, a valorizar o cabelo crespo das(os) negras(os) como temática recorrente de sua obra, apresentando as diversas contradições e a complexa relação de aceitação/rejeição que temos com o nosso cabelo ao longo da vida em um país no qual o modelo de cabelo é o liso e “bom” das mulheres brancas. Isso se dá mediante um processo de vivência, ou de escrevivência, no dizer feliz de Conceição Evaristo, que demarca as particularidades de uma escritora negra e o seu fazer literário, comum a tantas outras escritoras negras brasileiras. Em entrevista a Eduardo de Assis Duarte, Conceição Evaristo afirma que :
Eu sou uma escritora brasileira, mas não somente. A minha condição de brasileira agrega outras identidades que me diferenciam: a de mulher, a de negra, a de oriunda das classes populares e outras ainda, condições que marcam, que orientam a minha escrita, consciente e inconscientemente. (...) E ainda asseguro a existência de um texto feminino negro, ou afro-brasileiro, como queiram. O meu texto se apresenta sob a perspectiva, sob o ponto de vista de uma mulher negra inserida na sociedade brasileira. (...) E, nesse sentido, afirmo que, quando escrevo, sou eu, Conceição Evaristo, eu-sujeito a criar um texto e que não me desvencilho de minha condição de cidadã brasileira, negra, mulher, viúva, professora, oriunda das classes populares, mãe de uma especial menina, Ainá etc., condições essas que influenciam na criação de personagens, enredos ou opções de linguagem a partir de uma história, de uma experiência pessoal que é intransferível. (EVARISTO, 2011, p. 114-115)
A experiência retratada por Evaristo e definida como escrevivência aborda as incontáveis situações de confronto que o racismo apresenta no nosso cotidiano. Apesar de vir de uma experiência de enfrentamento racial declarado como a norte-americana, as considerações da ativista afro-americana bell hooks servem para orientar nossa reflexão acerca da realidade brasileira em relação aos cabelos crespos por mencionar o mesmo grupo étnico, mulheres negras na diáspora. Para hooks,
Apesar das diversas mudanças na política racial, às mulheres negras continuam obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério. Insistem em se aproveitar da insegurança que nós mulheres negras sentimos com respeito a nosso valor na sociedade de supremacia branca! (...)
Dentro do patriarcado capitalista – o contexto social e político em que surge o costume entre os negros de alisarmos os nossos cabelos –, essa postura representa uma imitação da aparência do grupo branco dominante e, com freqüência, indica um racismo interiorizado, um ódio a si mesmo que pode ser somado a uma baixa auto-estima. (hooks, pp. 1-3)
O sujeito lírico de Sobral apresenta cenas do cotidiano, suas escrevivências, logo, é incisivo, direto e determinado ao pontuar a baixa autoestima da mulher negra à procura do enquadramento estético hegemônico, como no poema “Escova Progressiva?”: “Se a raiz é agressiva/ Escova progressiva/ (...) Abaixo a chapinha no cabelo da neguinha/ Abaixo, abaixo, abaixo!”. Uma característica da poética de Cristiane Sobral é a subversão de ideais por meio de slogans, ou melhor antislogans, conceito idealizado por Olivier Reboul e utilizado por Nelson Fernando Inocêncio da Silva em “Consciência Negra em cartaz”. Para o teórico Reboul:
O slogan vale-se de palavras-choque não apenas em política, mas em publicidade. (...) Todavia a palavra-choque não passa de uma palavra: ganha ela sentido não apenas no contexto da frase, mas também segundo a perspectiva de quem a utiliza (...) Além disso, é freqüente uma palavra possuir valor positivo em certos grupos e negativo em outros. (REBOUL, Olivier. Apud: SILVA, p. 60)
O sujeito lírico enfatiza o contradiscurso ideológico ao pregar o fim da chapinha nos cabelos das mulheres negras. O antislogan “Abaixo a chapinha no cabelo da neguinha” é de extrema valia, pois funciona como manifestação de conscientização da negritude, de empoderamento da mulher negra e de luta contra a imposição da estética hegemônica branca. A ênfase nas palavras de ordem contrapõe o discurso racista – raiz agressiva – e as soluções encontradas pelo mercado – escova progressiva –, pois o discurso subversivo de Sobral valoriza o cabelo natural da negra, chamando atenção para a construção de uma consciência na qual a mulher sinta-se bela do jeito que é, oferecendo um basta ao silenciamento imposto por séculos de humilhações, como também é uma resposta negativa aos produtos criados pelo mercado para suprir a necessidade das mulheres negras em se enquadrar no padrão estético hegemônico, comprometendo, em muitos casos, as finanças dessas mulheres. Novamente, bell hooks sinaliza a perversidade do mercado capitalista e seus produtos tidos como revolucionários:
Sem ficar atrás dessa manobra para suprimir a consciência negra e os esforços das pessoas negras por serem sujeitos que se autodefinem, as empresas brancas começaram a reconhecer os negros, e de maneira especialíssima, às mulheres negras, como consumidoras potenciais de produtos que poderiam ser subministrados, incluindo aqueles para os cuidados com o cabelo. Permanentes especialmente concebidos para as mulheres negras eliminaram a necessidade do pente quente e da chapinha. Esses permanentes não só custavam mais caro, mas também levavam todas as economias e ganâncias das comunidades negras, especificamente dos bolsos das mulheres negras que anteriormente colhiam benefícios materiais (ver Como o Capitalismo Desenvolveu a América Negra, de Manning Marable, South End Pree). (hooks, p. 3)
Para além das ardilosas tramas do capital, devemos considerar o quanto o padrão estético branco e de cabelo liso é nocivo às mulheres negras, vilipendiadas ao direito de beleza, por conseguinte, a imensa dificuldade em aceitar a própria imagem. As dúvidas e crises oriundas dessa pressão racista para o sujeito poético se enquadrar na sociedade revelam o desespero, as armadilhas ao longo da vida da mulher negra e uma inútil e ininterrupta busca pelo embranquecimento, como no poema “Cuidado”:
Eu vou falar do nosso cabelo
Eu vou falar de tudo o que fazem tentando o sucesso
Eu vou falar porque isso acaba com a gente
Primeiro aparecem com uns pentes frágeis
Impossíveis às nossas madeixas
Depois apontam para um padrão que nunca poderemos ter
Ficamos condenados à indiferença e à exclusão
De repente
Sonhamos com toalhas amarradas na cabeça oca
Num passe de mágica
Aceitamos o codinome pixaim e o sobrenome Bombril
Começamos a moldar o caráter
A amolecer diante das decisões
Infelizmente esquecemos que só podemos ser o que somos
Passamos a vida inteira tentando atingir uma clareza
Que nunca poderemos ter.
Nem precisamos
A negritude é um quarto escuro com bicho-papão e mula-sem-cabeça
É um quarto mítico onde ninguém quer entrar
Eu vou falar do que fazem com nosso cabelo
Eu vou falar de tudo o que fazem tentando o sucesso
Eu vou falar, porque isso acaba com a gente
Primeiro dizem que somos todos iguais
Que somos todos filhos de Deus
Rapidamente é diagnosticada a paranóia
Começamos a achar que o problema está na nossa cabeça preta
Nunca no olhar do outro
Nunca no deboche do outro
Nunca no sorriso de lado
Alguns conseguem ir mais longe
Mas isso tem um preço...
Precisam ficar sozinhos
Precisam ficar clarinhos
Precisam usar apliques
Eu vou falar do que fazem com o nosso cabelo
Eu vou falar de tudo o que fazem tentando o sucesso
Eu vou falar por que isso acaba com a gente
Deu branco!
Alguém me empresta uma identidade aprovada no teste da boa aparência? (SOBRAL, 2011, pp.74-75)
O poema começa em tom de agonia e um sinal de alerta para a condição de opressão a qual a mulher negra é submetida em relação ao cabelo crespo. Em forma de estribilho, o sujeito lírico, inconformado, versa: “Eu vou falar do nosso cabelo/ Eu vou falar de tudo o que fazem tentando o sucesso/ Eu vou falar porque isso acaba com a gente”. A condição anafórica de “Eu vou falar” mostra a angústia do silenciamento submetido à mulher negra, a vontade desesperada de manifestar as constantes situações de humilhação vivenciadas pelas negras que vão desde a aceitação de apelidos pejorativos – “o codinome pixaim e o sobrenome Bombril” – à baixa autoestima – “Começamos a moldar o caráter/ A amolecer diante das decisões/ Infelizmente esquecemos que só podemos ser o que somos”. Incômodo denunciado pela dificuldade em assumir a negritude, o seu pertencimento étnico, pois a negritude “é um quarto mítico onde ninguém quer entrar”. No seu processo de libertação da mente submissa, o sujeito lírico apresenta as táticas repugnantes da democracia racial ao mencionar a igualdade – “Primeiro dizem que somos todos iguais” –, e a religião – “Que somos todos filhos de Deus” – e o perverso argumento anestesiante de que não há racismo – “Rapidamente é diagnosticada a paranóia/ Começamos a achar que o problema está na nossa cabeça preta”, o que automaticamente anula a nossa percepção para o preconceito realizado pelo outro – “Nunca no olhar do outro/ Nunca no deboche do outro/ Nunca no sorriso de lado”. O sujeito lírico chama atenção para os perigos dos que insistem com o embraquecimento e o afastamento de suas raízes – “Alguns conseguem ir mais longe/ Mas isso tem um preço...// Precisam ficar sozinhos/ Precisam ficar clarinhos/ Precisam usar apliques”, para encerrar o poema de forma abrupta, inesperada e cáustica ironia – “Deu branco!/ Alguém me empresta uma identidade aprovada no teste da boa aparência?” Ou seja, o sujeito lírico sucumbe à pressão da sociedade não dá continuidade ao seu contradiscurso desarticulador das amarras da sociedade. A criativa ressignificação do vocábulo “branco” demonstra o seu caráter opressor, associando-o à hegemonia do padrão branco da sociedade brasileira. Contra o “fascismo da língua”, expressão de Roland Barthes, o sujeito lírico segue o procedimento de “trapacear a língua”, assim definido por Roland Barthes:
Só nos resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. (...) porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela é teatro. Posso portanto dizer, indiferentemente: literatura, escritura ou texto. As forças de liberdade não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor, (...) mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua. (BARTHES, 1977, p. 13-14)
Os poemas de Cristiane Sobral em defesa da negritude buscam o enfrentamento contra a hegemonia racial e estética branca. O uso da ironia para um escritor negro faz parte de uma tradição que Octávio Ianni identificou como “famílias literárias fundamentais da literatura negra” (IANNI, 2011, p. 184) ao analisar a importância de Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto. Seguindo o pensamento de Ianni, “Lima Barreto institui uma visão crítica da sociedade, do mundo social dominado pelo branco. Vê a cidade a partir do subúrbio, do refúgio dos infelizes, de baixo para cima. Lança um protesto gritado, vasto, indignado. Inaugura o realismo crítico” (idem, p. 194). Nessa perspectiva de família literária e de um olhar crítico, irônico e corrosivo, identificamos Lima Barreto como precursor da escritura de Cristiane Sobral, assim como o escritor e ensaísta contemporâneo Cuti, visto que os impedimentos do sujeito lírico demonstrados no poema “Cuidado”, de Cristiane Sobral, encontram semelhanças ao patrulhamento ideológico e repressão racial sofridos pelo sujeito lírico de Cuti no poema “Quebranto”. Neste como naquele, vemos um sujeito poético valendo-se da ironia para tratar com seriedade do racismo que assola os negros, pois estes não conseguem se desvencilhar das marcas do racismo incutidas nas suas mentes, apesar de identificarem as marcas da opressão realizada em diversas passagens do cotidiano, ainda assim a autocensura fala mais forte, assume a situação e a mente embranquecida. Ou como bem assinalou Maria Nazareth Soares Fonseca: “a internalização das imagens depreciativas leva o oprimido a transmudar-se em seu próprio opressor, num processo de simbiose característica de toda relação de violência” (FONSECA, 2011, p. 14). Segue o poema “Quebranto:
às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada
às vezes sou o porteiro
não me deixando entrar em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço
às vezes sou o meu próprio delito
o corpo de jurados
a punição que vem com o veredicto
às vezes sou o amor que me viro o rosto
o quebranto
o encosto
a solidão primitiva
que me envolvo com o vazio
às vezes as migalhas do que sonhei e não comi
outras o bem-te-vi com olhos vidrados
trinando tristezas
um dia fui abolição que me lancei de supetão no espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida uma constituição
que me promulgo a cada instante
também a violência dum impulso
que me ponho do avesso
com acessos de cal e gesso
chego a ser
às vezes faço questão de não me ver
e entupido com a visão deles
sinto-me a miséria concebida como um eterno começo
fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto que me entrego
às vezes... (CUTI, 2007, p. 53-54)
Os poemas de Cuti e Cristiane Sobral demonstram a dificuldade da negra e do negro de aceitar a sua negritude, um fato que denuncia a complexa situação vivencia em nossa sociedade racista. O sujeito lírico de Sobral apresenta vários momentos nos quais esses processos de aceitação são explicitados, como no poema “Algodão Black Power”, ora questionando-se a si mesma: “Será que meu cabelo é bom/ Ou será que o meu cabelo é ruim” (SOBRAL, 2011, p. 84), ora questionando o julgamento do outro que rejeita o seu modo de ser: “Qual será o preconceito/ Porque você quer me ver/ Sempre do seu jeito/ De entender, de saber” (idem, p. 84). Dentro do processo de afirmação identitária negra, o cabelo crespo é motivo de perseguição, xingamentos, repulsa por parte do grupo étnico-racial hegemônico da sociedade nos diferentes locais de convivência, da escola ao trabalho, e muito bem apontado pelo sujeito lírico: “Em toda parte olhares prisioneiros e gargalhadas de escárnio/ Percebo não caber nos esclarecimentos disponíveis” (p. 78).
No poema “Invisível” apresentam-se as diversas lutas inglórias travadas no cotidiano pelo sujeito poético para atingir o padrão de beleza contrária ao da sua etnia negra:
Segunda-feira. Dia de branco.
Na miçanga da trança disfarço a dor
A ponta do fio enroscou no cobertor
Dia seguinte. Cara lavada...
Escondo a mágoa com base e batom
Fim de semana. Encontro com gatos pardos
Desisto da trança, tento o secador
Mais um episódio incômodo nada consolador
Saio festiva e apanho da chuva que encolhe as minhas madeixas
Fujo da vergonha algemando a carapinha com grampos
Madrugada noite preta
Enfrento o fantasma do não dormir
Em outra jornada de angústia
Numa tentativa de liberdade condicional
Solto o pixaim ao natural
Enfim livre!
Dia. Claridade. Mais uma segunda-feira
Em toda parte olhares prisioneiros e gargalhadas de escárnio
Percebo não caber nos esclarecimentos disponíveis
Assumo quem sou
Minha carta de alforria está escrita em papel pardo
Mas meu sangue é negro
Meu cabelo é bom. (p. 78)
O poema “revela um processo que, além de ambíguo e tenso, representa a construção de uma estilização e de uma estética negra, geradas no contexto de uma sociedade racista” (GUEDES, 2008, p. 179). Estamos diante de cinco estrofes que demonstram o desenvolvimento de tomada de consciência e aceitação ao cabelo crespo para a mulher negra. Nas duas primeiras estrofes, cada uma com cinco versos, revela-se a relação com a dor física – “Na miçanga da trança disfarço a dor/ A ponta do fio enroscou no cobertor” –, e a frustração na busca infrutífera para atingir o padrão estético branco – “Saio festiva e apanho da chuva que encolhe as minhas madeixas”. A conspiração para o insucesso apresenta-se tanto na hora do descanso na cama quanto da hostilidade do tempo com a chuva indesejada. As duas estrofes encerram-se com a resignação do sujeito lírico e a solução paliativa para “domar” o cabelo crespo: na primeira estrofe, após a noite sem dormir e o uso das reticências mascaram a frustração do rosto carregado de maquiagem – “Cara lavada.../ Escondo a mágoa com base e batom”; enquanto na segunda estrofe denota-se a péssima relação com o cabelo crespo ao prendê-lo – “Fujo da vergonha algemando a carapinha com grampos”. A terceira e quarta estrofes, mais curtas, com apenas três versos, marcam ironicamente o momento de mudança durante a “noite preta” que trás o “escurecimento necessário”, feliz expressão de Cristiane Sobral, para o sujeito lírico conquistar a “liberdade condicional”. O sujeito lírico subverte os signos de prisão associados à realidade do negro, pois em nossa sociedade vivemos encarcerados vinte e quatro horas por dia pelas amarras do racismo, para além de sermos maioria nos presídios do país. Por isso, a comemoração exclamativa do verso “Enfim livre!”. A última estrofe desvela a gradação até atingir a autoconfiança, a ampliação semântica da “claridade” a marcar o escurecimento da mente negra liberta a ignorar o preconceito das pessoas “Em toda parte olhares prisioneiros e gargalhadas de escárnio/ Percebo não caber nos esclarecimentos disponíveis”. O empoderamento da mulher negra se dá ao não rejeitar o seu cabelo e aceitá-lo, subvertendo o discurso oficial ao finalizar o poema com o verso “Meu cabelo é bom”. Uma frase difícil de ser proferida para boa parte dos negros, em razão das pressões racistas para se enquadrar naquilo que ficou conhecido como “boa aparência”, assim mencionado por Nilma Lino Guedes ao assinalar que “a exigência da ‘boa aparência’ deixou de constar nos anúncios de emprego, o mercado de trabalho encontrou formas mais sutis para discriminar. A exigência de um padrão estético, no que se refere ao penteado, pode ser vista como uma delas” (p. 182).
A ênfase na ressignificação do cabelo crespo presente na poesia de Cristiane Sobral remete ao caráter político dos negros nas décadas de 1960/70 e ao processo de afirmação identitária idealizado pelo Movimento da Consciência Negra na África do Sul, em que a valorização da estética negra foi uma das armas na luta contra o nefasto regime do Apartheid. Segundo Nilma Lino Guedes,
O Movimento da Consciência Negra difere de outras organizações negras no seu fazer político, uma vez que, além de denunciar o racismo, ele refletia sobre a existência de outros condicionamentos mais profundos que impediam a tomada de posição do negro diante do racismo e que se expressavam nas diferentes maneiras como o negro e a negra viam e tratavam o seu corpo. Talvez por isso o ideário da Consciência Negra tenha ganhado tanto espaço entre a comunidade negra oprimida em diferentes países do mundo e perdure até hoje entre nós. Ao ponderar sobre os condicionamentos profundos internalizados pelos negros e negras que viviam numa sociedade racista, esse movimento conseguiu explicitar tanto o racismo institucionalizado como os mecanismos do racismo de tipo ambíguo, como é o caso do Brasil. (GUEDES, 2008, p. 194).
Ao tocar no conflito existencial do negro diante de sua imagem, que navega entre a aceitação e a rejeição dentro de um contexto de predomínio racista da sociedade, o empoderamento motivado pelo Movimento da Consciência Negra tratava com sensibilidade e postura agressiva a questão da autoestima para negros e negras em slogans como “Negro é lindo!”. As considerações de Steve Biko, líder do Movimento sul-africano, ilustram essa preocupação:
Soggot: Quando se usa uma frase como “Negro é lindo” então esse tipo de frase combina com os princípios da Consciência Negra?
Biko: Combina sim.
Soggot: Qual a idéia que está por trás de um slogan como esse?
Biko: Acho que a intenção é de que o slogan sirva, e ele está servindo, para um aspecto muito importante em nossa tentativa de alcançar a humanidade. A gente está enfrentando as raízes mais profundas da opinião do negro sobre si mesmo. Quando a gente diz: “Negro é lindo”, o que na verdade a gente está dizendo para ele é: “Cara, você está bem do jeito que você é, comece a olhar para si mesmo como um ser humano. Agora, na vida africana especialmente, isso tem também certas conotações: as conotações sobre o modo como as mulheres se preparam para serem vistas pela sociedade, em outras palavras, o modo como sonham, o modo como se maquiam etc., que tende a ser uma negação do seu verdadeiro estado e, de certo modo, uma fuga de sua cor. Elas usam cremes para clarear a pele, usam coisas para alisar o cabelo etc. Acho que de certo modo elas acreditam que seu estado natural, que é um estado negro, não é sinônimo de beleza. Assim, só podem chegar perto da beleza se a pele delas for a mais clara possível, se os lábios ficarem bem vermelhos e as unhas bem cor-de-rosa. De modo que em um certo sentido a expressão “Negro é lindo” desafia precisamente essa crença que faz com que alguém negue a si mesmo. (SILVA, 2001, p. 40-41. Apud: GUEDES, 2008, p. 195)
Dentro desse contexto de empoderamento negro contrário aos valores racistas impostos pela hegemonia branca, que o poema “Pixaim Elétrico”, transcrito logo a seguir, busca valorizar o padrão estético negro num contexto predominante racista no qual “nosso cabelo é percebido na cultura branca não só como feio, como também atemorizante” (hooks, p. 5):
Naquele dia
Meu pixaim elétrico gritava alto
Provocava sem alisar ninguém.
Meu cabelo estava cheio de si
Naquele dia
Preparei a carapinha para enfrentar
a monotonia da paisagem da estrada
Soltei os grampos e segui, de cara pro vento, bem desaforada...
Sem esconder volumes nem negar raízes.
Pura filosofia
Meu cabelo escuro, crespo, alto e grave...
Quase um caso de polícia em meio à pasmaceira da cidade
Incomodou identidades e pariu novas cabeças
Abaixo a demagogia
Soltei as amarras e recusei qualquer relaxante
Assumi as minhas raízes ainda que brincasse com alguns matizes
Confrontando o meu pixaim elétrico com as cores pálidas do dia. (Sobral, 2011, p. 81)
Com uma ironia mordaz, o sujeito lírico mostra o quanto é importante a retomada do sentido político do uso do cabelo crespo, da autoafirmação negra, “bem desaforada/ Sem esconder volumes nem negar raízes”, em uma sociedade que adota um padrão estético incapaz de associar nosso cabelo à beleza. Quando o sujeito lírico demarca o momento da ruptura com os padrões estéticos estabelecidos à recordação de um tempo distante exposta nos versos iniciais das duas primeiras estrofes, “Naquele dia”, demonstra o quanto a relação rejeição/aceitação ao nosso cabelo revela-se um processo árduo e de longa duração para amar o nosso corpo, tornando-se necessário o enfrentamento para encarar as críticas que serão proferidas por pessoas conhecidas ou desconhecidas, já que dentro do modelo preconceituoso de dominação racial da sociedade brasileira a valorização de nosso cabelo crespo é considerada “Quase um caso de polícia”. Esse processo de aceitação do cabelo crespo remete ao que bell hooks considerou como um retorno à despreocupação que tinha com o cabelo quando era criança, época que não possuía consciência das pressões raciais que sofreria no futuro:
A verdadeira liberação do meu cabelo veio quando parei de tentar controlar em qualquer estado e o aceitei como era.
Só há poucos anos é que deixei de me preocupar com o quê os outros possam dizer sobre o meu cabelo. Só nesses últimos anos foi que eu sentir consecutivamente o prazer lavando, penteando e cuidando do meu cabelo. Esses sentimentos me lembram o aconchego e o deleite que eu sentia quando menina, sentada entre as pernas de minha mãe, sentindo o calor do seu corpo e do seu ser enquanto ela penteava e trançava o meu cabelo. (hooks, p. 9)
É no confronto dessa relação complexa, também ambígua, com o cabelo que a mulher negra convive diariamente até aceitar o seu cabelo como “bom”. Ao assumir suas raízes, o sujeito lírico desvela a intrínseca relação da sociedade racista com a valorização da estética negra, pois o “pixaim elétrico” possui diferentes significados tanto para negros quanto para brancos. Ele “incomodou identidades e pariu novas cabeças”. O “cabelo escuro, crespo, alto e grave” sem “arrumação” ou “tratamento” é uma afronta para os padrões estéticos hegemônicos, que nem sempre apresentam um conteúdo racial explícito, porém tal penteado quando visualizado por outros negros e negras, estimula-os a assumir um padrão negro de beleza, a elevar a autoestima e de pertencimento étnico.
Por outro lado, a mutabilidade das táticas racistas procura dissociar o cabelo crespo de seu uso político e de afirmação identitária negra. Na sociedade contemporânea, os estilos políticos de cabelo do negro passam por um processo de “esvaziamento” e, muitas vezes, são interpretados e usados como simples “penteados”. Isso implica que, hoje, nem sempre o sujeito que adota tal penteado ou aquele que o realiza como uma intervenção estética está vinculado a um grupo ou organização política em prol da negritude. Além disso, nem sempre esses sujeitos adotam tal comportamento com um sentimento consciente de denúncia ao racismo (GUEDES, 2008, p. 202).
Por isso, consideramos o projeto literário desenvolvido por Cristiane Sobral importante para a desconstrução dos estereótipos, por uma incessante procura de ressignificação da representação da estética negra dentro de um contexto de dominação racial. Procuramos nos poemas selecionados privilegiar a complexa relação das negras e dos negros com o cabelo crespo, demonstrar a qualidade estética e a função social/racial de uma poetisa comprometida com sua etnia. Valendo-se de críticas mordazes, imagens impactantes, defesa incontestável do corpo negro em uma poiesis incisiva, de ironia corrosiva e combativa ao fim das relações desiguais calcadas numa condição étnica e de gênero, com experiências diferentes da mulher branca, do homem branco e do homem negro, que Cristiane Sobral deslumbra novos significantes para negros e negras no calor das tensões e contradições da convivência étnico-racial brasileira, e demonstra ser com o seu contradiscurso contundente uma voz de destaque, graças ao intenso labor por uma palavra depurada, dentro do panorama da literatura negra brasileira. Aquela comprometida a desafiar o cânone literário nacional e a ruir o projeto sistêmico de desigualdade racial da sociedade brasileira.
BIBLIOGRAFIA:
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FONSECA, Maria Nazareth Soares. Cuti. In: DUARTE, Eduardo de Assis (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Vol. 3. Contemporaneidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
GUEDES, Nilma Lino. Sem perder a raiz – Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
hooks, bell. Alisando o nosso cabelo. Disponível em < http://criola.org.br/mais/bell%20hooks%20-%20Alisando%20nosso%20cabelo.pdf > Acessado em 17/01/2012
IANNI, Octávio. Literatura e Consciência. In: DUARTE, Eduardo de Assis (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Vol. 4. História, Teoria, Polêmica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
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SILVA, Nelson Fernando Inocêncio da. Consciência Negra em cartaz. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
SOBRAL, Cristiane. Não vou mais lavar os pratos. 2. ed. Brasília: Ed. do Autor, 2011.
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