As mãos estão trêmulas, nervosas, arrepiadas. Pensam comigo na solidão da casa. Há uma existência que não está, que não vive aqui. Temos ambos saudades dela. Eu queria dar as mãos a sua manualidade. Poder desenhar carícias, poder afagar um rosto, poder levá-las ao beijo.
Minhas mãos, meninas minhas. Só elas vivendo esta dor incontornável quando eu digo ou penso esta palavra: MULHER.
Nenhuma outra diria a casa do Mundo que é. A vida que por dentro a trata e prepara, aquela visão cósmica que azula o barro, a terra plástica e húmida a sonhar o molde.
Nenhuma canção é mais forte que a matéria da sua música, o brilho, a força, a limpeza de cada timbre. Casulo profundo para o amor nascer, água e sede casadas para se não morrer. Inventando (i)limite quando sucedemos definir o chão natal, bandeira com cunho carnal, pátria primeira, país com vocação para crescer. Ave a fio no céu-da-boca, pronúncia com sal e suor ou Sol, voo, fábula, matriz do amor a dividir.
Um barco nos olhos.
Sabem, é dele que viajo para a memória que tenho dela. Que imagem plena eu posso ainda guardar quando havia em nós a alegria de brincar. Esse lugar tão aéreo da liberdade. A voz encantada com que dizia: eu amo-te. Arrepio-me só de pensar ouvi-la em sua musical generosidade.
Eu bocejava as tardes para ela entrar vinda da escola e com aquele cheiro infantil da borracha e dos lápis efemeramente transcritos para os cadernos. Era lilás por dentro, tinha espaço e chão e, quantas vezes, desse milagre da sua adulta menstruação eu sorria para a menina que era com caroços no peito. Doíam-lhe se gargalhava, ainda me lembro.
Pois é. Era assim que eu via a mulher profunda que amo. Um dia jurei plantá-la no meu urbano jardim. Daqueles que a cidade abriga em vasos de barro com terra comprada nos supermercados. Afligia-me isso, comprar com o mecânico cartão de débito um punhado de terra que nos lembrasse a gratuidade da nossa África. Pobre, mas verdadeiramente primária em sua pureza.
Bom, voltando ao vaso. Aqui o vejo sobre a mesa. Haviam, na sala, outros com cores e flores diversas, mas instantâneas. Eu lembrei-me de uma com a qual adorava compará-la quando entregava o corpo ao soalho do quarto e às minhas mãos derrapantes. A de maracujá. Que fruta tão fresca, que pevides tão mágicas, que suco tão espesso.
Mas a flor cordial que a anunciava, tinha escrito outros feitiços. Os seus poros acentuados no leve da pele. A cor, por exemplo, febril e escura dos lábios, ou, então, as luas espantadas e cheias nos seus olhos. Negras e luminosamente assustadas.
Que bom puder, depois de tudo, esboçar essa imagem gratificante dela. Lúdica como uma sonata num desenho animado.
Certa noite, eu esperei-a com o boom da surpresa que eu julgava fosse explodir logo que olhasse o jardim dentro de casa. Inquieto percorria-a e figurava as hipóteses de amá-la sobre a banca em mármore da cozinha.
Porém, o tempo passava. As horas doíam-me como a lâmina afiada de uma navalha. Sibilinamente cortantes. E ela não vinha e uma mina de carvão descia, com os cigarros, pelo meu peito apertado junto ao corpo esponjoso dos pulmões. A cabeça a supor. O suor a lavar-me. E ela ausente, cada vez mais, pelo dentro das horas. O choro desesperado a conter-se-me.
Meu animal engravidado de mim, não vinha.
Lembro-me, depois, do telefone a gritar no quarto, da flor de maracujá tão alvamente a murchar, a previsão do desastre que eu adivinhava vir a acontecer.
- Alô?
Respondeste:
- Não volto, estás alcoolizado!
Sei que pousei a mão sobre uma mesinha de pau-preto. Olhei-a partir, depois, para o tabaco, para o dourado do whisky que havia trazido num copo com o seu nome no aroma. O cigarro voou volatilizado nas pulsações da tragédia e o queimar da bebida foi devagar arder no desastre.
Não disse nada. Também, assim, as palavras não são para dizer-se. Fui descansá-las para algum poema, fazê-las beberem-no.
Nostálgico, chamei as mãos para o Caetano Veloso e pedi-lhe que me fizesse chorar – é sempre assim quando acontece eu estar triste. A voz mulata foi subindo devagar para as paredes da casa, como se as fosse limpar do que dela, agora sobrava.
Uma fotografia a preto e branco, um recado que me havia dado pela manhã, no batom do beijo, um poema emoldurado na parede e um colar de missangas minúsculas com que a havia de casar. E, ao lado, eu infeliz a descobrir o que ela não havia descoberto: que tinha parido um poeta.
Foi bom. Apenas estou infeliz por ela não ter podido ganhar com a tristeza da paciência. Hoje eu bebo, faço amor, choro muito e escrevo versos.
É a vida.
Minhas mãos, meninas minhas. Só elas vivendo esta dor incontornável quando eu digo ou penso esta palavra: MULHER.
Nenhuma outra diria a casa do Mundo que é. A vida que por dentro a trata e prepara, aquela visão cósmica que azula o barro, a terra plástica e húmida a sonhar o molde.
Nenhuma canção é mais forte que a matéria da sua música, o brilho, a força, a limpeza de cada timbre. Casulo profundo para o amor nascer, água e sede casadas para se não morrer. Inventando (i)limite quando sucedemos definir o chão natal, bandeira com cunho carnal, pátria primeira, país com vocação para crescer. Ave a fio no céu-da-boca, pronúncia com sal e suor ou Sol, voo, fábula, matriz do amor a dividir.
Um barco nos olhos.
Sabem, é dele que viajo para a memória que tenho dela. Que imagem plena eu posso ainda guardar quando havia em nós a alegria de brincar. Esse lugar tão aéreo da liberdade. A voz encantada com que dizia: eu amo-te. Arrepio-me só de pensar ouvi-la em sua musical generosidade.
Eu bocejava as tardes para ela entrar vinda da escola e com aquele cheiro infantil da borracha e dos lápis efemeramente transcritos para os cadernos. Era lilás por dentro, tinha espaço e chão e, quantas vezes, desse milagre da sua adulta menstruação eu sorria para a menina que era com caroços no peito. Doíam-lhe se gargalhava, ainda me lembro.
Pois é. Era assim que eu via a mulher profunda que amo. Um dia jurei plantá-la no meu urbano jardim. Daqueles que a cidade abriga em vasos de barro com terra comprada nos supermercados. Afligia-me isso, comprar com o mecânico cartão de débito um punhado de terra que nos lembrasse a gratuidade da nossa África. Pobre, mas verdadeiramente primária em sua pureza.
Bom, voltando ao vaso. Aqui o vejo sobre a mesa. Haviam, na sala, outros com cores e flores diversas, mas instantâneas. Eu lembrei-me de uma com a qual adorava compará-la quando entregava o corpo ao soalho do quarto e às minhas mãos derrapantes. A de maracujá. Que fruta tão fresca, que pevides tão mágicas, que suco tão espesso.
Mas a flor cordial que a anunciava, tinha escrito outros feitiços. Os seus poros acentuados no leve da pele. A cor, por exemplo, febril e escura dos lábios, ou, então, as luas espantadas e cheias nos seus olhos. Negras e luminosamente assustadas.
Que bom puder, depois de tudo, esboçar essa imagem gratificante dela. Lúdica como uma sonata num desenho animado.
Certa noite, eu esperei-a com o boom da surpresa que eu julgava fosse explodir logo que olhasse o jardim dentro de casa. Inquieto percorria-a e figurava as hipóteses de amá-la sobre a banca em mármore da cozinha.
Porém, o tempo passava. As horas doíam-me como a lâmina afiada de uma navalha. Sibilinamente cortantes. E ela não vinha e uma mina de carvão descia, com os cigarros, pelo meu peito apertado junto ao corpo esponjoso dos pulmões. A cabeça a supor. O suor a lavar-me. E ela ausente, cada vez mais, pelo dentro das horas. O choro desesperado a conter-se-me.
Meu animal engravidado de mim, não vinha.
Lembro-me, depois, do telefone a gritar no quarto, da flor de maracujá tão alvamente a murchar, a previsão do desastre que eu adivinhava vir a acontecer.
- Alô?
Respondeste:
- Não volto, estás alcoolizado!
Sei que pousei a mão sobre uma mesinha de pau-preto. Olhei-a partir, depois, para o tabaco, para o dourado do whisky que havia trazido num copo com o seu nome no aroma. O cigarro voou volatilizado nas pulsações da tragédia e o queimar da bebida foi devagar arder no desastre.
Não disse nada. Também, assim, as palavras não são para dizer-se. Fui descansá-las para algum poema, fazê-las beberem-no.
Nostálgico, chamei as mãos para o Caetano Veloso e pedi-lhe que me fizesse chorar – é sempre assim quando acontece eu estar triste. A voz mulata foi subindo devagar para as paredes da casa, como se as fosse limpar do que dela, agora sobrava.
Uma fotografia a preto e branco, um recado que me havia dado pela manhã, no batom do beijo, um poema emoldurado na parede e um colar de missangas minúsculas com que a havia de casar. E, ao lado, eu infeliz a descobrir o que ela não havia descoberto: que tinha parido um poeta.
Foi bom. Apenas estou infeliz por ela não ter podido ganhar com a tristeza da paciência. Hoje eu bebo, faço amor, choro muito e escrevo versos.
É a vida.
White, Eduardo. O manual das mãos. Porto: Campo das Letras, 2004. pp. 57-60.
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