Akiz Neto - A Construção Figurativa do Gesto (resenha de livro do poeta angolano)
Ricardo Riso, 15 de junho de 2011.
A contemporaneidade destaca-se por exigir da Arte e de seus agentes agilidade constante, desprezando a reflexão responsável pelo intenso labor do artista em busca de uma palavra depurada, exigindo daquele intensa produção para atender ao mercado, pois “a importância da obra de arte é medida, hoje, pela publicidade e notoriedade (quanto maior a plateia, maior a obra de arte” (BAUMAN, p. 130), em claro detrimento de um melhor conseguimento estético seja ele poeta, artista plástico, músico etc. Essa precipitação evidencia-se entre os jovens poetas, ávidos por publicarem suas obras (muitas imaturas), mas ainda assim almejam conquistar espaço nos cadernos culturais (mesmo que breve), pressa que também afeta escritores renomados com os lançamentos anuais (aqui considerando as pressões dos editores que desejam sugar o máximo quando estão diante de um “produto” de ótima aceitação do público), assim como os consumidores inquietos e aptos para adquirir o que for dado a estampa do livro.
O esvaziamento da arte, tratada como um bem de consumo descartável, imposto pela miserável ordem estabelecida nos dias atuais pretende suprimir a essência da palavra poética, entretanto,
a poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos (...). Resiste ao contínuo harmonioso pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia. Quer refazendo zonas sagradas que o sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância, Eros); quer desfazendo o sentido do presente em nome de uma liberação futura, o ser da poesia contradiz o ser dos discursos correntes (BOSI, p. 146).
Seguindo o pensamento de Alfredo Bosi, “a recusa irada do presente com vistas ao futuro, tem criado textos de inquietante força poética” (BOSI, p. 158), caso de “A Construção Figurativa do Gesto (Enciclopédia de Ciúmes) do angolano Akiz Neto. Lançado em 2007, sob a chancela da União dos Escritores Angolanos, com ilustração de capa a cargo de Van, completa esta edição de quarenta e oito poemas divididos em dois cadernos o prefácio da Profª Drª Carmen Lucia Tindó Secco (UFRJ/Brasil).
Akiz Neto nasceu em Luanda no dia 07 de agosto de 1959, seu primeiro livro data de 1988 com o título de “No crivo do meu sonho”, posteriormente vieram “Na Trajectória da Serpente” (1995), “Cócegas e Despertar” (1996), “Horoscópio da Fragmentação” (1997), “Borboletas da Paz – Antologia Poética” (1999) e “No Umbigo da Palavra” (2003).
Akiz Neto começa a publicar em uma época de tristes marcas na história angolana; a década de 1980 é marcada pela longa guerra civil que somente terminaria em 2002. O desencanto domina a temática dos poetas daqueles tempos, segundo Carmen Lucia Tindó Secco:
A poesia dos anos 80, e também a dos anos 90 têm, como traço constante, a temática da decepção e da angústia diante da situação de Angola, que ainda não resolveu completamente a questão da fome e da miséria. As dúvidas em relação ao futuro interceptam as possibilidades entreabertas pelos ideais libertários dos anos 60, e a poesia se interioriza, não se atendo explicitamente às questões sociais. (CHAVES, 2006, p. 94)
A melancolia desses anos passa por todos os anos 1990, com o desespero da longa guerra e caos social que se instala no país, entretanto, como assinala Carmen Lucia Tindó Secco, “observamos que a poesia dessa fase nunca deixou de se oferecer como força geradora de utopia, pois os poetas continuaram a crer no poder transformador da linguagem poética”. (Idem, ibidem, p. 101)
Aliando a transformação da linguagem poética à mudança do país com a estabilidade proporcionada pela paz que se escora a poesia de Akiz Neto no conjunto de poemas de “A Construção Figurativa do Gesto”. Nesse livro o poeta procura explorar novos valores sinestésicos em poemas que a versificação livre auxilia no intuito do poeta. A ampliação dos sentidos polissêmicos ganha contornos imprevisíveis em metáforas inusitadas, o corpo do poema é preenchido por um lirismo erótico e por uma intrigante viagem metapoética. Na ressemantização da palavra poética “as palavras reclamam por que nasceram assim” (NETO, 2007, p. 33), logo busca-se a cicatrização das feridas do recente passado de dor, demonstrando a preocupação e a sintonia do sujeito lírico ao tempo em que vive, sendo necessária a reflexão acerca da contextualização histórica e social da obra aqui analisada, para isso recorremos a Octavio Paz:
Como toda criação humana, o poema é um produto histórico, filho de um tempo e de um lugar; mas também é algo que transcende o histórico e se situa em um tempo anterior a toda história, no princípio do princípio. Antes da história, mas não fora dela. Antes, por ser realidade arquetípica, impossível de datar, começo absoluto, tempo total e auto-suficiente. Dentro da história – e ainda mais: história – porque só vive encarnado, reengendrando-se, repetindo-se no instante de comunhão poética. (...) o poema é histórico de duas maneiras: a primeira, como produto social; a segunda, como criação que transcende o histórico, mas que, para ser efetivamente, necessita encarnar-se de novo na história e repetir-se entre os homens. (PAZ, 1972, p. 53-54)
É na incessante reelaboração da linguagem proposta pelo sujeito lírico motivado pelo momento, que se espera definitivo, de reconstrução do país, que “incorpora fenda laboratorial à curva da palavra/ e as crianças da terra já lêem o figurativo do gesto” (NETO, 2007, p. 28). É a poesia procurando novos caminhos, a metáfora que tenta sensibilizar os jovens pequeninos para a “sensação colegial, a de sorriso gestual de fecundo de pátria” (idem, ibidem, p. 49) que o sujeito lírico, expurgando o passado, afirma: “anunciei ao exército, minha fortaleza/ prà demissão de sangue, ódio, vingança e mortes” (idem, ibidem, p. 13).
A proposição de uma construção poética própria escora-se no momento de integração do país após anos de sonhos dilacerados, a poesia navega na “magia intérprete do som/ (...) se embriagando/ do insepulto e cristalino sentido gestual da palavra” (idem, ibidem, p. 58) e “as abelhas dançam na porta indivisível da pátria” (idem, ibidem, p. 46) fecundando uma nova era para Angola. Ainda assim, a batalha não é fácil diante de um neoliberalismo voraz que cria abismos sociais e mantém grande parte da população na miséria. Compreendemos as várias referências à pátria nos poemas de Akiz Neto como a urgente necessidade do poeta enquanto intelectual em preservar o sentimento nacional e reafirmar a esperança (ainda sagrada), valendo-se da palavra poética como objeto para atingir as mentes de seus pares. A respeito desse comprometimento do intelectual com sua comunidade, Edward Said afirma que:
Em tempos difíceis, o intelectual é muitas vezes considerado pelos membros de sua nacionalidade alguém que representa, fala e testemunha em nome do sofrimento daquela nacionalidade. (...) A essa tarefa extremamente importante de representar o sofrimento coletivo de seu próprio povo, de testemunhar suas lutas, de reafirmar sua perseverança e de reforçar sua memória, deve-se acrescentar uma coisa, que só um intelectual, a meu ver, tem a obrigação de cumprir. Afinal, muitos romancistas, pintores e poetas, como Manzoni, Picasso ou Neruda, encarnam a experiência histórica de seu povo em obras de arte, que, por sua vez, foram reconhecidas como obras-primas. Nesse sentido, penso que a tarefa do intelectual é universalizar de forma explícita os conflitos e as crises, dar maior alcance humano à dor de um determinado povo ou nação, associar essa experiência ao sofrimento de outros. (SAID, p. 52-53)
Para além do sentimento nacional, o sujeito lírico crê na força renovadora do verbo poético, prestando, em sua trincheira de paz fortalecida pela palavra, o contributo para a reconstrução não apenas do país, mas do continente africano: “ininterrupta poesia na confidência hu1000de/ como mãos de áfrica às assembléias/ logarítmicas das palavras construindo gestos” (idem, ibidem, p. 59) de solidariedade e lirismo amoroso, pois “nos teus olhos hu1000des encontro a África/ estendida nos rituais da união” (idem, ibidem, p. 55).
A poesia retorna ao passado de lutas e ganha corpo ao resgatar os ideais pan-africanistas, pertinentes no atual jogo político-econômico dominado por interesses escusos e supranacionais que deterioram as jovens nações e suas economias fragilizadas. Por isso a urgência de união das nações fragilizadas para que não se comentam os erros do passado, conforme assinala por Joseph Ki-Zerbo:
Na África, cada vez que se tentou fazer uma reforma micronacional de um sistema, houve um fracasso. Todas as tentativas micronacionais de libertação da África (...) fracassaram, em grande parte, porque foram solitárias e não solidárias. Penso que se deveria colocar como postulado a fórmula seguinte: a libertação da África será pan-africana, ou não será. (KI-ZERBO: 2006, p. 35-36)
Pan-africanismo que sempre foi combatido pelos países colonizadores e pelas elites vassalas africanas submetidas ao colonialismo, procurando manter a cruel ordem imposta. De acordo com Ki-Zerbo:
A colonização foi muito mais curta do que o tráfico negreiro, mas foi mais determinante. O colonialismo substituiu inteiramente o sistema africano. Fomos alienados, isto é, substituídos por outros, inclusive do nosso passado. Os colonizadores prepararam um assalto à nossa história. O ‘pacto colonial’ queria que os países africanos produzissem apenas produtos em bruto, matérias-primas a enviar para o Norte, para a indústria europeia. A própria África foi aprisionada, dividida, esquartejada, sendo-lhe imposto esse papel: fornecer matérias-primas. Esse pacto colonial dura até hoje. (KI-ZERBO, 2009, p. 25)
O historiador cubano Carlos Moore aprofunda um pouco mais a questão:
(...) a chamada descolonização do continente africano não foi o evento de emancipação total que geralmente costumamos entender. A independência política da África aconteceu num contexto de permanência da fragmentação imposta na Conferência de Berlim, agravada pelas novas fragmentações fomentadas pelas intrigas das metrópoles coloniais; foram estas as que criaram a maioria dos partidos “nacionalistas” e financiaram seus líderes. Desse modo, foram poucos os países africanos a chegar à independência com uma direção política independente e verdadeiramente pan-africanista. (MOORE, 2009, p. 41-42)
Depreendemos que os ideais pan-africanistas jamais foram aceitos pelas elites africanas ou pelos países coloniais que não mediram esforços para exterminar essas “nocivas” lideranças, contrárias à ordem estabelecida. Carlos Moore assinala que entre 1957, data da independência de Gana, e 1987, ano do assassinato do último dirigente pan-africanista, Thomas Sankara:
trinta e cinco dirigentes africanos (...) foram assassinados (...) Esses líderes, insubstituíveis em sua maioria, foram ultimados em sua maioria pelas potências ocidentais ou através de seus lacaios. Ou seja, nas primeiras três décadas de descolonização, o continente africano perdeu seus mais importantes e talentosos líderes; estes foram substituídos por dirigentes politicamente inexpressivos a serviço das grandes potências imperiais do planeta. (MOORE, 2009, p. 48)
Embora as dificuldades de emancipação insistam com a sua lógica desigual, o sujeito lírico de Neto anseia pela libertação, por novos rumos que conduzam à autonomia, e para atingir seu objetivo recorre a símbolos ancestrais e históricos como a kyanda, a Rainha Njinga Mbandi e o tambor para cantar sua independência. Destacaremos o tambor, símbolo de resistência: “Profunda travessia instrumental do gesto/ enquadra a mão profunda da imagem/ sobre o chilreio misterioso do tambor/ Livre África” (NETO, 2007, p. 31). “Busquemos o tambor breve de África” (idem, ibidem, p. 18), pois “a força interior do tambor é um pólo de liberdade” (idem, ibidem, p. 18), afirma o sujeito lírico com “mãos constróem relâmpagos textuais” (idem, ibidem, p. 36) a exorcizar o passado de dor, por isso a analogia do continente africano à “grafia sentimental da mulher” (idem, ibidem, p. 25), erotizando aquele com a palavra poética que “mapeia os gestos sensíveis do corpo de África” (idem, ibidem, p. 24).
Inspirado por metáforas inusitadas na busca por uma sintaxe com ritmo próprio, “as palavras dançam vestem-se de ritmos/ banham-se da energia de meus gestos” (idem, ibidem, p. 60). Em sua construção poética, o sujeito lírico subverte a língua portuguesa inserindo nos poemas palavras e versos em língua nacional: “onde a katwandolo sacrificado boi afaga/ cócecas cilhadas pelo makau/ e a criança inspira o ar/ kynguilas e zumgueiras ventres de cágado” (idem, ibidem, p. 33) ou “águas cicatrizam as areias do limite/ ky.anda.ndo são águas, densas margens/ as do fundo do mar onde poisam gatas de memória// sunga ò kinama kya mbondo ny kwivwe/ Nzambi-a-mukutu wami” (idem, ibidem, p. 55).
As experiências com a hibridização do texto valorizam as tradições, impondo-as no perverso jogo da globalização e seus ideais de uniformização de padrões culturais em detrimento das culturas locais, com isso resgata seres mitológicos como a kianda, reconfigurando-a semanticamente, ou seja, é com esse texto africanizado que Akiz Neto procura desenvolver a sua escritura. Segundo Laura Cavalcante Padilha, “o enfrentamento de culturas e das duas línguas – às vezes até mais – se dá na territorialidade do texto. Percebe-se, então, que o colonizado se apropria da linguagem do outro, ao mesmo tempo em que mostra também ter sido por ela possuído” (PADILHA, 1995, p. 164-165). Manuel Rui no célebre artigo “Eu e o outro invasor” complementa o caráter de reformulação da língua portuguesa pelo escritor angolano: “No texto oral já disse não toco e não o deixo minar pela escrita arma que eu conquistei ao outro. Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto. Invento outro texto”. Edward Said complementa que: “o intelectual é obrigado a usar uma língua nacional não apenas por razões óbvias de conveniência e familiaridade, mas também porque ele espera imprimir-lhe um som particular, uma entonação especial e, finalmente, uma perspectiva que é própria dele” (SAID, 2005, p. 39).
Passando das experiências no campo semântico às estético-formais, encontramos alguns ruídos que nos parecem dispensáveis no conjunto de poemas propostos, mais precisamente no segundo caderno, “Magia Intérprete do Som”, em “? O verso ou o reverso da rima” e “O Livro”. Neste, o poeta radicaliza a reformulação da linguagem e deparamo-nos com a suspensão do discurso:
11.9.21.17.14 11.9.4.14 5 20.12.1 11.20.23
9.12.5.17.18.1
13.1 3.14.13.18.19.17.20.3.1.14
6.9.7.20.17.1.19.9.21.1 4.1 1.11.12.1 (NETO, 2007, p. 52)
Decodificando os numerais deste poema, temos: “Livro lido é uma luz/ imersa/ na construção/ figurativa da alma”. Não seria melhor assim? Enquanto naquele, torna-se desnecessária a leitura da direita para a esquerda, seja leitura árabe ou não, assim como as manchas gráficas em negrito que mexem de maneira indesejável com atenção do leitor. São experiências que se aliam a outros poucos poemas com metáforas que se perdem no vazio, assim como a insistência no uso de numerais impregnando as palavras (“100pre”, “instr1mental”, “3passa”, para quê? A respeito disso, algures afirmamos e reafirmamos para ver ou rever o “poema alfanumérico” de Conceição Cristóvão, integrante do livro “solsalseiosexo”. Nesse poema ao menos a ludicidade se impõe.) que precisam de melhor conseguimento estético e talvez por isso a pertinente observação no prefácio da Drª Carmen Lucia Tindó Secco ao afirmar que “há ainda muito que laborar” (idem, ibidem, p. 10).
Entretanto, tais conflitos poéticos são menores diante da “construção sigmática da escrita” (p. 49) proposta com valiosa ousadia por Akiz Neto, um poeta que possui a coragem para laborar um inflamado gestual em busca de uma semântica própria, de uma sintaxe criativa, de reconfigurar os sentidos perdidos da palavra. Isso é algo que devemos admirar e encontramos em parte dos poemas de “A Construção Figurativa do Gesto”.
BIBLIOGRAFIA:
BAUMAN, Zigmuth. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1977.
CRISTÓVÃO, Conceição. solsalseiosexo – in(pre)cisões. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2006.
JUDT, Tony. O mal ronda a Terra – um tratado sobre as insatisfações do presente. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
KI-ZERBO, Joseph. Para quando África? – Entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
MONTEIRO, Manuel Rui. Eu e o outro – o invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto. In: MEDINA, Cremilda de Araújo. Sonha mamana África. São Paulo: Epopéia, 1987. p. 308-310.
MOORE, Carlos. Da África mítica à África real: para uma cooperação realista entre a África e a diáspora. In: A África que incomoda – sobre a problematização do legado africano no quotidiano brasileiro. Belo Horizonte: Nandyala, 2009. p. 11-65.
PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. Niterói: EDUFF, 1995.
PAZ, Octavio. A Consagração do Instante. In: Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, Coleção Debates, 1972.
SAID, Edward. Representações do intelectual – as Conferências de Reith de 1993. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SECCO, Carmen Lucia Tindó. Sendas de sonho e beleza (algumas reflexões sobre a poesia angolana hoje). In: CHAVES, Rita e MACEDO, Tania (Orgs.). Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.