Um espaço dedicado à literatura negro-brasileira, às literaturas africanas de língua portuguesa e demais literaturas negro-diaspóricas
terça-feira, 26 de novembro de 2013
Alberto Guerra Naranjo - Com Tato Cubano (Lançamento RJ)
Lançamento do livro COM TATO CUBANO, de Alberto Guerra Naranjo, abrindo a coleção Cabeças Olmecas, destinada a escritorxs afro-latinos. Mais uma publicação da Kitabu Livraria e Editora.
sábado, 23 de novembro de 2013
Alberto Guerra Naranjo - Com Tato Cubano (Kitabu Editora)
A Kitabu Livraria e Editora inicia a coleção Cabeças Olmecas com o afro-cubano Alberto Guerra Naranjo e o seu livro de contos COM TATO CUBANO. Esta coleção propõe "divulgar, dialogar, mas principalmente disseminar a produção literária de las Hermanas e Hermanos afro-latinos no país".
Segue texto de orelha de capa de autoria de Ricardo Riso.
Vez em quando o mercado
editorial brasileiro contempla o público leitor com algum escritor do Caribe ou
da América Latina.
No caso da pequena ilha
desafiadora do Tio Sam, logo percebo a melanina pouco acentuada dos autores e a
ausência dos entraves das relações raciais nos textos literários.
Diante das dificuldades
impostas pelo mercado editorial, o pesquisador de literaturas negro-diaspóricas
converte-se em um arqueólogo, procurando vestígios da presença dos negros
escritores, uma vez que eles são raros nos cânones das literaturas dos países
americanos.
Um olhar mais atento
perceberá o absurdo dessa situação, pois eles se destacam desde o Harlem Renaissance até os dias atuais,
tais como Langston Hughes, Aimé Césaire, Zora Neale Hurston, Nicolas Guillén, Manuel
Zapata Olivella, Eulália Bernard, Patrick Chamoiseau, entre tantos outros.
Agora, deparo-me com o cubano Alberto Guerra Naranjo (1963) na pequena, porém de grande consistência, recolha de textos de “com tato cubano”. São quatro contos incessantes, a partir de uma escrita fragmentada, espiralada, de ritmo efervescente, transgredindo espaço e tempo, encadeando situações díspares, por vezes irônicas, delineadas por diferentes narradores que se encontram com coerência pela habilidade narrativa de Naranjo.
Relevante a maneira como as tensões raciais surgem nos contos. São situações comuns aos negros da diáspora, desvelam-se diante da percepção que as relações raciais do cotidiano cubano estão distantes de aceitar a diferença.
A literatura negro-cubana de Alberto Guerra Naranjo contribui ao questionar as imagens que temos de Cuba, rasurando as ideias fixas de certa propaganda e propõe o desafio à ressignificação da colonialidade do poder que anula a diferença.
Sensível às lacunas do mercado editorial que a Coleção Cabeças Olmecas surge para preencher, diversificar e potencializar as estantes, enfatizando a tradução de autores negro-diaspóricos em prosa e poesia, inéditos ou dispersos em antologias publicadas no Brasil. Um excelente passo inicial foi dado com Alberto Guerra Naranjo.
Ricardo Riso
Alberto Guerra Naranjo (Havana, Cuba, 1963) é graduado em História e Ciências
Sociais, professor de roteiros audiovisuais do Instituto Superior de Arte da
Universidade de Havana.
Produtor cultural e
coordenador dos espaços Toma del Cuento e
Sin Azúcar. Coordenador do grupo de
criação literária on line Café Naranjo.
Publicou
os livros de contos Disparos en el aula
(Extramuros, 1992), Aporías de la feria (Extramuros,
1994), Blasfemia del escriba (Letras
Cubanas, 2000 e 2002) e o romance La Soledad
del tiempo (Union, 2009).
Possui contos
publicados em várias revistas e antologias nacionais e internacionais, tem obras
traduzidas para inglês, francês, italiano, alemão, português e dinamarquês.
É realizador de
projetos audiovisuais e obteve como roteirista o prêmio internacional Broad Casting Caribe, como melhor obra
do ano de 2011 com Los Heraldos Negros.
Obteve vários prêmios
em concursos literários com destaque para o prêmio da Gaceta de Cuba, em 1997 e 1999, o único escritor a recebê-lo até o
momento.
domingo, 15 de setembro de 2013
Entrevista Ricardo Riso para jornal A Capital (Angola)
Entrevista de Ricardo Riso para o
jornal “A Capital”, de Luanda, Angola, com a primeira parte publicada no
caderno Artes, de 27 de julho de 2013, pp. 32-34, e a derradeira parte no mesmo
caderno, de 17 de agosto de 2013, pp. 32-33.
O novo
acordo ortográfico gerou enorme polêmica aqui no Brasil, muito pela sua
ineficiência e que em nada contribui
para solucionar o problema da educação no país. Trata-se de algo menor diante
de tantas carências que temos e que precisam de soluções emergenciais nas áreas
de saúde e educação. Creio que em Angola seja assim também. Isto é apenas mais
um dado que reflete o total descompasso do brancocentrismo da elite com o
restante da população, assim como a manutenção da dominação pela língua; a
língua como processo de seleção e exclusão. Além disso, há o agravante dos
gastos estratosféricos com as reedições de livros didáticos para que estejam
conforme as novas regras. Enquanto isso, escolas permanecem desaparelhadas e os
professores precisam usar a criatividade para ter condições mínimas de
trabalho.
P:- Será que podemos estar diante de uma
crise sobre a ratificação e implementação do acordo ortográfico na lusofonia?
Precisamos
sim questionar este acordo. Por que temos que falar e escrever da mesma
maneira? Por que a referência/submissão a Portugal? O que é lusofonia? Há
espaço para o negro na lusofonia? A quem interessa? Para que precisamos de um
novo acordo? Não estamos nos comunicando? Precisamos de menos ordens, normas,
obediências e afins.
P:- Como classifica as literaturas
africanas de língua portuguesa?
Toda classificação
é arbitrária e a maneira vaga como foi colocada a pergunta deixa-me em difícil
posição. Penso que podemos problematizar esse grande guarda-chuva denominado
literaturas africanas de língua portuguesa. Ser “tudólogo” em literaturas
africanas exige que escolhas sejam feitas. Sendo assim, começamos a perceber as
exclusões. As literaturas de Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe são as maiores
prejudicadas nesse processo.
Pensando na
Academia, no caso a brasileira, por que não podemos estudar a literatura
angolana, a cabo-verdiana, a moçambicana, a guineense ou a são-tomense, e a
partir daí nos aprofundarmos em cada uma delas? Outra questão: por que somente
as literaturas produzidas em língua portuguesa? Por que esse neocolonialismo
acadêmico? Já que por exigência acadêmica somos obrigados a saber inglês,
francês, espanhol, entre outras línguas europeias, seria interessante que o
pesquisador das literaturas de cada país incorporasse a literatura angolana em
quimbundo, a literatura cabo-verdiana crioula e assim em diante. No caso de
Cabo Verde há uma vasta produção em crioulo que é ignorada pela crítica
brasileira. Por que isto? Penso que é urgente rever esta posição, até como
respeito ao pluralismo linguístico desses países africanos.
P:- Acha que elas estão no mesmo nível de
concepção estético-discursiva, divulgação de livros e autores no Brasil? Se é
que existe essa divulgação na terra do rei pelé?
Dentro das
suas especificidades temporais e históricas, elas têm o seu valor no plano
estético, basta partir para o texto literário. Creio ser desnecessária a
comparação. A respeito da divulgação, muito já foi feito e a Lei 10.639/2003
(obriga o ensino de História e culturas africanas e afro-brasileira em todo a
educação básica) foi um grande estímulo e incentivador para o mercado
editorial, assim como para os professores que passaram a se interessar por
essas temáticas. Há dez anos, chegávamos às livrarias e encontrávamos os livros
de autores africanos em lugares pouco privilegiados. Hoje, temos bancadas ou estantes
sobre assuntos africanos e alguns autores luso-descendentes ocupam posições de
destaque nas vitrines. Importante frisar o trabalho crítico desenvolvido nos
cursos de pós-graduação ao longo dos anos que contribuíram para o
desenvolvimento desse processo. Porém, ainda estamos distantes do que seria uma
boa divulgação de autores africanos, muito em razão da restrição ao reconhecido
cânone luso-descendente do mercado editorial e das universidades. E no caso
angolano, isso é gritante. A pluralidade de autores está longe de ser atingida,
levando em consideração critérios como raça e gênero. Para conhecer outros
autores, é preciso que o pesquisador saia da inércia e se transfigure em um
arqueólogo. Hoje temos o Facebook, revistas como a Literatas e blogs como o de
minha autoria. Buscar outros autores que não constam no cânone estabelecido,
pode trazer surpresas agradáveis.
P: Quais os nomes que mais lhe ressalvam
nesta literatura, tanto na velha como nova gerações?
Creio que
sua pergunta esteja direcionada à literatura angolana. Bom, é importante para o
pesquisador conhecer o sistema literário em sua plenitude. Hoje vejo nos
congressos que participo poucos trabalhos a respeito dos textos fundacionais da
literatura angolana, sinto falta de Cordeiro da Mata, Castro Soromenho...
Necessário olharmos para o passado e resgatarmos nomes que foram ostracizados e
não ficarmos dependentes do cânone. Isso é um ponto essencial para o
investigador. Avançando um pouco no tempo, deparamo-nos com a pouca referência
ao nome de Viriato da Cruz, por exemplo. Lembrando que falo daqui do Brasil. A
geração dos anos 40/50 é essencial. Não falar de literaturas africanas sem
mencionar essa época, em particular, a antologia “Poesia negra de expressão
portuguesa”, organizada por Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro é
um erro gravíssimo. Tenho especial carinho por esse período. Um texto que gosto
de lembrar e divulgar é o “Mestre Tamoda”, de Uanhenga Xitu. Um personagem
fascinante!
Com receio
de esquecer algum dos autores atuais, mas já como uma longa trajetória, aprecio
muito e vejo como nomes incontornáveis da poesia Trajanno Nankhova Trajanno,
Lopito Feijoó, João Tala, João Maimona, Conceição Cristóvão, José Luis
Mendonça... na prosa, os contos de Tala, Roderick Nehone, o Carmo Neto de
“Degravata”... dos mais novos, gosto particularmente de Abreu Paxe, inclusive
as análises críticas deste, Akiz Neto, Antonio Pompílio, Pombal Maria, Nok
Nogueira... mas, vejo muita pretensão em outros nomes que não atingem o conseguimento
estético almejado, tornando suas poéticas exaustivas... agora, o gênero é que
fica comprometido na literatura angolana... houve Alda Lara, agora a Paula
Tavares, a Isabel Ferreira... a pouca visibilidade da escrita feminina angolana
é algo que precisa ser tensionado, principalmente na constituição de seu cânone
e de antologias angolanas recentes. Do publicado aqui não preciso dizer, muitos
brasileiros já dizem – ou só dizem – sobre essas obras e autores.
P:- Falando das novas gerações, acredita
que as novas gerações tem pouco ou nada a oferecer a literatura angolana? Até
que ponto está afirmação serve de incentivo aos novos autores angolanos?
Toda nova
geração tem algo a oferecer e o tempo é o melhor filtro. Caso contrário,
pararemos no tempo. O que é necessário é que os jovens literatos leiam, leiam
muito dos grandes nomes espalhados pelo mundo e também conheçam os grandes
autores angolanos. Mas, uma leitura concentrada, assim como o ato da escrita...
sem pressa, estudada... vejo como o maior problema entre os jovens é a rapidez
em publicar. Talvez pela facilidade da internet, o “curtir” do Facebook,
necessidade de visibilidade, status... é um caminho perigoso. A palavra poética
precisa ser lapidada com calma e é essencial a troca com outros autores.
P:- Em Angola temos estado a assistir um
forte conflito de gerações. Até que ponto esse conflito é prejudicial e/ou
ajuda os novos autores?
A literatura
é um espaço de poder, não podemos perder isto de vista. Sendo assim, os
conflitos sempre existirão e serão múltiplos: de tendências literárias, gênero,
classe, raça, etário. Temos que estar atentos às reivindicações dos mais novos.
Há o ímpeto da juventude, que pode ser bom ou ruim, e inserido nisso podem
estar alguns problemas da máquina literária, tais como a dificuldade em
publicar, os prêmios literários viciados, invisibilidade nas tertúlias e
cadernos literários...
P:- Que responsabilidade tem os escritores
de gerações consolidadas na afirmação de
novos autores e/ou gerações?
A
responsabilidade desses autores está presente nas suas obras, nos desafios com
a linguagem e o compromisso com a palavra depurada que cada um se comprometeu;
é responsabilidade sim dos mais novos conhecerem essas obras. É claro que o contato
e o incentivo aos mais novos é sempre um fator relevante, de apoio e
fortalecimento para os mais novos. Penso que é sempre frutífero o convívio
entre os escritores de diversas gerações. Não se deve separá-los ou alimentar
inimizades.
P:- Enquanto isso, cada vez é mais visível
a promoção de autores africanos luso-descendentes. O que se passa? será que há
descriminação na promoção das nossas literaturas a nível de Portugal e Brasil?
Em 2012, eu
e a pesquisadora Geny Ferreira Guimarães (doutoranda em Geografia/UFBA) apresentamos,
na UFOP/Minas Gerais, um exaustivo levantamento de autores africanos de língua
portuguesa publicados no Brasil, intitulado: “Mercado editorial brasileiro:
seus entraves para a aplicação da lei 10.639/2003 e o permanente não reconhecimento
do negro escritor”. Nosso levantamento reuniu 115 livros das literaturas
africanas de língua portuguesa (romance, contos, poesia e infantil) lançados de
1962 a outubro de 2012. Da literatura angolana levantamos 62 livros, sendo que
48 obras são do cânone luso-descendente (Pepetela, Ruy Duarte de Carvalho, José
Eduardo Agualusa, Luandino Vieira e Ondjaki). Ou seja, 77% da literatura
angolana publicada no Brasil durante o período pesquisado resume-se a cinco
autores, quadro ainda mais agravante após 2003, ano da lei 10.639. E não há
como se estranhar este dado? Onde está o escritor negro angolano? Nos catálogos
das editoras brasileiras é que ele não se encontra. Quem racializa a questão? E
a situação só não atinge algo perto do zero porque editoras especializadas em
temáticas afro-brasileiras se preocupam com essa disparidade, casos da Mazza,
Nandyala e Pallas. Por outro lado, hoje temos editoras com forte suporte
financeiro, de divulgação e obras com qualidade gráfica invejável que se
escoram no conceito da lusofonia. Entretanto, a lusofonia nada mais é que a renovação
da discriminação ao negro escritor. Enquanto elas tentam fugir da
estigmatização de autores africanos, eliminam as representações nacionais e
continentais e incorporam um discurso diluído na lusofonia. Essas novas
editoras mantêm a discriminação de raça e de gênero, fato já denunciado
anteriormente pela Drª Laura Cavalcante Padilha (UFF) no seu brilhante artigo
“A diferença interroga o cânone” que, ao se referir à constituição do cânone
das literaturas africanas, cita as antologias “No reino de Caliban” (1975), de
Manuel Ferreira, e “Entrevistas com Escritores” (1991), de Michel Laban, diz o
seguinte: “Lembrando o fato de que o acervo crítico dessas literaturas se ter
forjado inicialmente fora da África – na Europa e nas Américas, com Portugal e
Brasil à frente –, começo a questionar até que ponto, o cânone ‘consagrado’ por
outras vozes que não as africanas, submeteu-se aos mesmos mecanismos de
dominação e poder que sempre tiveram como meta elidir as diferenças, sobretudo
se o objeto recortado são questões como de gênero e raça” (2002, p. 164).
Mudamos nesse sentido? De maneira nenhuma e só vamos fortalecendo a exclusão. E
se analisarmos teses, dissertações e comunicações nas universidades e
congressos de literaturas africanas, o que constataremos?
P:- As nossas literaturas africanas de
língua portuguesa, francófonas são estudadas nas universidades brasileiras?
Infelizmente,
desconheço a respeito das francófonas. De uma maneira geral, escritores e/ou
pensadores negros não são traduzidos pelo mercado editorial brasileiro. E
quando não são traduzidos, a circulação desses textos é excessivamente
restrita. Nesse ponto, considero importante a relação mercado
editorial/universidade como forma de práticas de biopoder, o que dificulta a
inserção de novos autores e outras bases epistemológicas nas universidades.
Quando muito, temos casos isolados como o de Chinua Achebe. Um nome reconhecido
no mundo como Wole Soyinka somente teve a sua primeira obra aqui publicada no
ano passado. A íntegra de “Cahiers d’un
retour au pays natal” de Aimé Césaire somente ano passado ganhou uma edição
brasileira. Temos uma obra de Patrick Chamoiseau, de outros negros, mas
dispersas nos catálogos das editoras... Nomes consagrados da luta antirracista
nos EUA, do Harlem Renaissance, da Negritude, afro-americanos de línguas
espanhola, inglesa ou francesa são raríssimos por aqui, assim como de outros
países africanos. Até textos de líderes africanos como Amílcar Cabral, Stevie
Biko e Samora Machel não são reeditados há anos. Ou seja, essas ausências não
são gratuitas. No caso angolano, o livro “Sagrada Esperança”, de Agostinho
Neto, foi lançado em comemoração ao primeiro decênio de Angola independente.
Desde então...
No que diz
respeito às universidades, muito já foi feito nas públicas graças aos esforços
e competência dos nossos professores consagrados que todos nós sabemos seus
nomes. Entretanto, há uma realidade entre os grandes centros universitários de
literaturas africanas de língua portuguesa e outras universidades públicas e
particulares, distantes do eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Belo Horizonte. Ainda
ocorre certa rejeição às literaturas africanas, quando muito são encaixadas em
“literaturas de expressão portuguesa”. Importante frisar que são raras as
disciplinas de literaturas africanas nas grades de graduação dos cursos de
Letras espalhados pelo país; nos cursos de pós-graduação a situação é um pouco
melhor. Ou seja, já avançamos bastante nesse sentido.
Entretanto,
há outro problema no que diz respeito à circulação da crítica literária
produzida nos países africanos de língua portuguesa. Sinto falta de maior
contato de ensaios críticos de angolanos como Luis Kandjimbo, Francisco Soares
e Abreu Paxe, dos moçambicanos Francisco Noa e Lucilio Manjate, do
cabo-verdiano José Luis Hopffer Almada e das epístolas de Timóteo Tio Tiofe.
Esse estranho distanciamento reflete-se na crítica produzida no Brasil. Quais
serão os seus motivos?
P:- Quais são os autores mais
referenciados e porque?
As duas
últimas edições do Encontro Internacional de Professores de Literaturas
Africanas (UFRJ, 2007 e UFOP-PUC/MG, 2010) oferecem um bom parâmetro para
percebermos o que vem sendo estudado pelo país. O cânone luso-descendente, e
acrescento o moçambicano Mia Couto, foi predominante nas comunicações. Por
isso, insisto na relação universidades/mercado editorial. A justificativa
cômoda diz que são os autores publicados aqui. Mas, não causa estranheza as
análises críticas concentradas nos escritores luso-descendentes? Estamos
falando de literaturas africanas, e até quando o escritor luso-descendente será
o porta-voz dessas literaturas? O que essa ausência quer dizer? Como há um
desprezo das universidades brasileiras por nossa literatura negra, será que o nosso
pesquisador carrega o seu olhar brancocêntrico para as literaturas africanas e
isso o impede de investigar os textos de autores negros africanos? Com a doença
psíquica do racismo, o pesquisador branco, instruído desde os bancos escolares
a não reconhecer o negro como escritor, ao lidar com as literaturas africanas
percebe-se diante de um dilema que tem dificuldade de resolver, logo, escora-se
naqueles que lhe são fenotipicamente parecidos e ideologicamente próximos.
Talvez por isso o discurso da mestiçagem constante na obra de Mia Couto ofereça
o conforto necessário e seja ovacionado por aqui. A internet facilitou o
contato entre os pesquisadores e os escritores africanos. Podemos ser
independentes ao mercado editorial. Hoje nos relacionamos diretamente com os
autores. Minha trajetória é um exemplo disso. Entre livros e arquivos em pdf,
tenho um pouco mais de duas centenas de títulos de prosa e poesia graças a
generosidade dos escritores, que agradeço a todos. Quem presta um excelente
trabalho para o deslocamento do cânone é a revista moçambicana “Literatas”,
idealizada por jovens autores que perceberam essas restrições e decidiram
encarar a ordem vigente.
No que diz
respeito às pesquisas nas universidades, acompanho com muito interesse as
investigações da Drª Lívia Natália, Dr. Jesiel Oliveira e Dr. José Henrique
Freitas, todos da UFBA, assim como o Dr. Amarino Queiróz (UFRN) e a Drª Ana
Lucia Silva Souza (UNILAB). Esses competentíssimos pesquisadores encontram-se à
margem dos grandes centros e propõem linhas investigativas “incomuns” e
comparativos não estimulados no Sudeste como entre as literaturas africanas e a
literatura negro-brasileira. Além disso, ampliam as discussões ao apresentarem
outras bases epistemológicas, oxigenando as literaturas africanas. Também não
posso esquecer da trajetória pioneira da relação das literaturas africanas com
demais literaturas negras realizadas pela Drª Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC-MG)
e Drª Florentina Silva Souza (UFBA). Vejo como a melhor maneira de
homenagearmos nossos principais pesquisadores é com a expansão e a diversidade
nas linhas investigativas, e não a cômoda reprodução do que já é/foi feito com
excelência por eles. Urge a cura do complexo de papagaio residente na maioria
dos jovens doutores e mestres de literaturas africanas no Brasil.
Importante
frisar que a questão de gênero de certa maneira é melhor resolvida. Temos
Paulina Chiziane, Paula Tavares, Isabel Ferreira, Vera Duarte, Dina Salústio,
Odete Costa Semedo, Conceição Lima, entre as contemporâneas... nomes restritos,
mas, e para não me acusarem de essencialista, destaco as ausências de Maria
Helena Sato e Carlota de Barros, duas escritoras cabo-verdianas de grande
valor. Porém, e o negro escritor?
P:- Ricardo Riso é um grande activista de
luta contra o racismo na cultura, especificamente na literatura, há racismo na
literatura brasileira e como vocês combatem esse fenómeno?
Sou apenas
mais um negro ciente da minha condição enquanto negro em uma sociedade racista
como a brasileira, que conseguiu não se tornar mais um dado estatístico do
genocídio que afeta a juventude negra; ciente do corpo-natureza pré-concebido
pelos olhares sociais que vêm em mim os atributos físicos e sexuais, jamais o
intelecutal ou relacionado a qualquer atividade que exija o mínimo de reflexão;
ciente dos entraves no mercado de trabalho; ciente das dificuldades dessa
condição de ser negro nos bancos escolares; ciente dos entraves de ser um
pesquisador negro com temática negra no território hostil que é a universidade
brasileira, da ousadia de deslocar-me de objeto para sujeito, a todo instante
sendo chamado atenção por ostentar um discurso militante, como se essa violenta
censura epistêmica não fosse militante; um negro atento às violências no campo
do simbólico nos meios de comunicação; e, desde sempre, temeroso com a próxima
blitz policial, já que minha cor representa a marca da suspeita. Conforme o
poema de Éle Semog, “Do Ser”: “Sou universalmente negro/ Na ponta deste lápis/
No âmago desta alma// Sou universalmente livre/ Em cada canto/ Desta raça/ Em
cada labirinto desta prisão”. Essas são algumas das questões que passam pelo
cotidiano de um negro inserido na farsa da democracia racial.
Sendo assim,
quando você me pergunta se há racismo na literatura brasileira, eu preciso
dizer que o Brasil republicano, desde sua proclamação, não preocupou-se em
inserir os negros na sociedade, mas sim em como resolver o problema dos negros,
tanto que “intelectuais” da época apostavam em diferentes formas de
embranquecimento da população: pela entrada de imigrantes europeus, pelos
cruzamentos inter-raciais em que o fenótipo do europeu prevaleceria, pela
esterilização compulsória e permanente, pelo abandono à própria sorte dos
negros e sem condições de emprego ou acesso à saúde, ou educação. Os
responsáveis atuaram em múltiplas áreas e até hoje são “nomes respeitáveis do
pensamento nacional”, dentre outros, Silvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da
Cunha, Renato Kehl, Monteiro Lobato, Belizário Penna... A doença psíquica do
racismo é tão forte que Joaquim Batista Lacerda representou o país como
“delegado oficial do Brasil” durante o Universal Races Congress, dentre outros
presentes estavam Franz Boas e W. E. B. Du Bois, em Londres, em 1911, e teve o disparate
de dizer que em menos de um século negros e mestiços desapareceriam da
população brasileira. Bom, essa ideia é tão forte e tão presente entre a nossa
elite que basta olhar para as novelas brasileiras e veremos que esse ideal
ainda é almejado. Ou seja, a literatura brasileira, elitista como é da sua
natureza, não pode ter negros no seu cânone. E assim, embraquecem Machado de
Assis
Sendo assim,
a questão é: o que o leitor angolano conhece da literatura brasileira engloba
algum escritor negro-brasileiro? O que o leitor angolano conhece da literatura
produzida por negros brasileiros? Mudando um pouco o prisma: o pesquisador brasileiro
que estuda a literatura angolana propõe o comparativo com a literatura
negro-brasileira? Ou seja, se dependermos daquilo que é reconhecido como
literatura brasileira, o leitor angolano jamais conhecerá um autor
negro-brasileiro.
As
escritoras e os escritores negros para quebrar esse círculo ininterrupto e
fechado de exclusão atuam com meios próprios para divulgação, distribuição e
formas de atingir o seu público leitor, em sua maioria formado por negros. Sim,
existe um leitor negro que a literatura canônica sempre ignorou, pois não
percebe o negro como consumidor de literatura nem como escritor. A literatura
negro-brasileira visualiza um leitor negro, algo que o cânone jamais conseguiu,
por isso, a insistência de personagens negros subalternizados e estereotipados
nos textos nacionais, o que reflete as posições étnico-raciais no país. Os
autores negros divulgam suas obras nas redes formadas pelos movimentos sociais
negros, na internet através de blogs e redes sociais e assim “traficamos” esses
livros. Hoje temos editoras próprias, mas boa parte das obras ainda são
financiadas pelos próprios autores, as famosas edições de autor. Com o livro
pronto, o escritor vende de forma “artesanal”, ou em espaços específicos como a
“Kitabu – Livraria Negra”, de Heloísa Marconde e Drª Fernanda Felisberto, no
Rio de Janeiro. Outro dado importante para a constituição dessa rede é a
publicação coletiva, frisando que a opção pelo coletivo é oriunda da
dificuldade de aceitação pelas grandes editoras que não querem ter nos seus
catálogos títulos que demonstrem as tensões raciais no Brasil, assim como os
altos custos gráficos que são extremamente pesados para boa parte dos
escritores negros. Nesse sentido, a série “Cadernos Negros” ocupa lugar de
destaque. Desde 1978 que esta série publica negras e negros intercalando poesia
em um ano e no seguinte, contos. Cadernos Negros é um referencial obrigatório
para o escritor e o leitor negro; em Cadernos Negros deparamo-nos com a
diversidade da literatura brasileira. Contudo, apesar de atingir neste ano a
36ª edição, a série ainda enfrenta problemas com a divulgação e distribuição de
seus exemplares, contando com as diferentes redes negras do país e no
estrangeiro. Uma outra ação que merece destaque é o site “Ogum’s Toques”,
coordenado por Guellwaarr Adún e que sou colaborador. A proposta de Ogum’s
Toques é divulgar as literaturas negras no mundo, em qualquer língua.
Literatura que expõe as dificuldades da mulher negra, do homem negro na
diáspora ou em África, estará na Ogum’s Toques. Por um humanismo que contemple
as diferenças conforme proclamava Aimé Césaire, pela pluriversalidade contra as
restrições da universalidade do sul-africano Mogobe Ramose, Ogum’s Toques
representa tudo isso. De suma importância e que não poderia ficar de fora é o
portal “Literafro”, organizado pelo Dr. Eduardo de Assis Duarte (UFMG). Neste
portal estão catalogados mais de duzentos autores negro-brasileiros com
biobibliografias, textos críticos e excertos de textos literários.
P:- Quer dizer que o Canone literário no
Brasil é escolhido com base na pigmentação da pele? Quais os grandes autores negros
brasileiros?
Você sabia
que Machado de Assis era negro? Os autores negros não são inseridos no cânone
da literatura brasileira. Os poucos que são aceitos, casos de Machado de Assis,
Cruz e Sousa e Lima Barreto, têm suas vivências de negros completamente
excluídas das análises literárias. São embranquecidos. Convivemos com absurdos
de que Machado não tocava na questão racial e olhava com desdém o processo
abolicionista. Pura mentira e injúria! O olhar atento de Machado ao problema do
negro está presente nos seus romances, contos, crônicas e poemas. O Dr. Eduardo
de Assis Duarte fez uma brilhante pesquisa que redundou no livro “Machado
afro-descendente”, de 2007. Este livro é ignorado pelas universidades
brasileiras. Nele, Duarte demonstra com perspicácia como Machado estava atento
aos problemas do negro antes e depois da abolição. Além disso, há uma
incapacidade da intelectualidade e dos meios de comunicação de admitirem o
nosso maior escritor como negro. No que diz respeito à representação de Machado,
recentemente, a Caixa Econômica Federal divulgou um comercial televiso que o
ator que representava o escritor era branco, quase um caucasiano. Óbvio que as
organizações que formam o movimento social negro protestaram e o comercial
precisou ser refeito e foi novamente ao ar com um Machado negro. Precisava
disso? O que motiva o embranquecimento do escritor? Já Cruz e Sousa sofre(u)
com a doença psíquica do racismo dos críticos literários que insistem na
brancura de sua poesia e ignoram os seus diversos poemas que denunciam o
racismo e o problema do negro. “Emparedado”, “Caveira” estão entre esses
poemas. Chega a ser desonestidade com a obra de Cruz e Sousa falar essas
verdadeiras bobagens. Enquanto Lima Barreto muitas vezes é tratado como o
louco, o bêbado que não sabia escrever. Todas as características do modernismo
brasileiro já estão presentes em sua obra, e ele é considerado um
pré-modernista. Por quê? Mas, Lima Barreto denunciou a hipocrisia da elite
carioca, e a denúncia do racismo é central em textos como “Clara dos Anjos” e
“Recordações do escrivão Isaías Caminha”. Os angolanos conhecem a obra de Lima
Barreto?
Necessário
destacar que o véu branco à frente da crítica brasileira impediu-a de analisar
a ausência do escritor negro e de como a personagem negra era representada na
nossa literatura. Somente a partir da análise de brasilianistas que essas
ausências na literatura brasileira vieram à tona, casos dos pioneiros trabalhos
de Roger Bastide (A poesia afro-brasileira, 1944), Raymond Sayers (O negro na
literatura brasileira, 1958), Gregory Rabassa (O negro na ficção brasileira,
1965) e David Brookshaw apresenta “Raça e Cor na literatura brasileira” em
1983. Por causa desse silenciamento da crítica brasileira, os escritores
negros, principalmente a partir da geração dos anos 1970, passaram a
desenvolver ensaios questionando o cânone literário e a defender a existência
de uma literatura negra no Brasil. Desde então, vários autores sentiram a
necessidade de entrar para a Academia e realizar esse debate nesse espaço de
poder. Conceição Evaristo e Cuti são exemplos de escritores negros que se
tornaram doutores em literatura, aquela na UFF, este na UNICAMP, como forma de
“legitimar” os seus discursos.
Alguns nomes
que posso destacar são os de Luiz Gama, que foi vendido como escravo por seu
pai branco, depois tornou-se poeta, advogado e abolicionista. Ele sim o
verdadeiro “Poeta dos Escravos”. Momentos pioneiros da literatura brasileira
vieram de autores negros: o primeiro romance escrito no Brasil veio de um
negro, Teixeira e Sousa, assim como a primeira mulher a escrever um romance foi
Maria Firmina dos Reis em 1858. Outros nomes marcantes no decorrer do século XX
foram Lino Guedes, Solano Trindade, Eduardo de Oliveira, Oswaldo de Camargo, o
fenômeno Carolina Maria de Jesus que vendeu cem mil exemplares da primeira
edição de “Quarto de despejo” em 1960, posteriormente traduzido para mais de
uma dezena de idiomas. Os angolanos conhecem Carolina Maria de Jesus? Porém, é
a partir dos anos 1970, durante a ditadura e lembrando que abordar o racismo
enquadrava a pessoa na Lei de Segurança Nacional, e no decorrer dos anos 1980
que coletivos negros começam a se rearticular e destacar seus escritores, caso
do Grupo Palmares (Porto Alegre/RS), Gens (Salvador/BA), Garra Suburbana e
Negrícia (Rio de Janeiro), Cadernos Negros e Quilombhoje (São Paulo/SP).
Literatura e movimento social negro atuam lado a lado e na distensão da
ditadura fortalecem organizações como CECAN, MNUCDR, IPCN, SINBA, GTAR e
jornais como Árvore da Palavra, do MNU, Tição, entre outros. Os 90 anos da
Abolição, em 1978, foi uma data marcante nesse processo. Também temos que
considerar as influências e contatos externos: as lutas pelos direitos civis
nos EUA e a descolonização dos países africanos, principalmente os de língua
portugesa, foram eventos motivadores para os negros brasileiros. Há uma aura de
solidariedade negra no Atlântico negro. Assim, nomes como José Craveirinha e
Agostinho Neto influenciaram os autores negros brasileiros e contribuíram no resgate
de África como capital simbólico para nós. Autores marcantes desse processo são
Éle Semog, José Carlos Limeira, Cuti, Jamu Minka, Oliveira Silveira, Adão
Ventura, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues, Márcio Barbosa, Jônatas Conceição,
Geni Guimarães, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Arnaldo Xavier, Edimilson de
Almeida Pereira, Lia Vieira, Ronald Augusto... a partir dos anos 90
consolidam-se Conceição Evaristo, Lande Onawale, Lepê Correia, Cristiane
Sobral, Cidinha da Silva...
P:- Um dos principais produtos da relação
África- Brasil devia ser a cultura. Acha que o Brasil dá a África em igual
proporção ao que a África e países como Angola deram ao Brasil durante séculos,
culturalmente?
Dentro do
nosso processo de rejeição ao passado africano e ao negro brasileiro, tanto que
por aqui transforma-se o que é oriundo da cultura negra em mestiço e assim vira
identidade nacional, caso do samba, e assim naturaliza-se certo desprezo das
políticas culturais voltadas para os países africanos. Quando acontecem, tendem
para a valorização do exótico e das representações estereotipadas. Mas, o que
os angolanos conhecem da cultura negro-brasileira? Há interesse desse
intercâmbio por parte dos angolanos?
P:-Como a África no geral, e Angola em
particular, é vista hoje no Brasil, principalmente pelas Meios de Difusão
Massiva, depois do longo tempo de guerra civil?
A visão de
África de uma forma geral, e de Angola não foge da extrema estereotipia, da
África selvagem que aparece sempre no “Globo Repórter”. Nas escolas temos que
começar pontuando que Angola e outros países falam português, que passaram por
uma guerra de independência, depois civil... é tudo muito raso por aqui. Exceto
os pesquisadores, para a população em geral falar de África ainda é falar de
miséria, fome, guerra...
P:- Porquê que os mídias africanos têm
dificuldade de penetração no Brasil?
Creio que
pelo apontado anteriormente. Não há interesse do Brasil em aproximar-se dos
países africanos. E a maioria dos canais que buscam esse contato com os
africanos são os que lidam com a cultura negra,
P:-Na relação com as antigas colónias
portuguesas, o Brasil supera Portugal, pela influência dos mídias e produtos
culturais como a música, cinema, literatura e televisão, além do poder
económico. Acha que o Brasil tem aproveitado essa hegemonia e superioridade da
melhor forma?
Percebo
práticas neocoloniais que em nada favorecem Angola e Moçambique, por exemplo.
Para além da nefasta ideologia dos canais de televisão que levam os seus
péssimos produtos. Tenham cuidado!
P:- O mundo vive o fenómeno das
manifestações anti-governamentais. Na sua observação o que se está passar?
No caso
brasileiro, vejo sobretudo a explosão de uma profunda crise de representação
partidária e de movimentos sindicais. Após longo silenciamento, o Padrão Fifa
estimulou a população a analisar a falta desse padrão nos transportes, na
saúde, na educação, nos serviços como saneamento... percebeu o excesso de ordem
ao qual estamos submetidos e quase nada em troca. Um pouco de desordem faz bem
à saúde democrática, ainda tão fragilizada no país. Chama atenção a
heterogeneidade de reivindicações, cenário normal diante de tantos absurdos e
governança voltada para a elite. E as pautas negras estão inseridas nesse
processo, dentre tantas necessidades urgentes, temos como maior preocupação o
genocídio da juventude negra. Os índices só aumentam com o passar dos anos e
vários meninos são mortos pela Polícia Militar sem nenhum motivo aparente. A
triste realidade dos negrotérios, neologismo de Éle Semog, é algo que precisa terminar.
Porém, matar negros não causa indignação à população nem vira notícia de
televisão ou primeira capa de jornal. É algo natural.
P:-Esta é apenas uma questão de desigualdade
social. Ou uma mudança progressiva na relação social ao nível do mundo?
No Brasil é
um problema racial que a esquerda política jamais quis participar. Em relação
ao mundo, o modelo neoliberal já mostrou o seu esgotamento e a ampliação
descarada das desigualdades. Por isso, a urgência dos conflitos e
manifestações.
P:- Quando restam grandes desigualdades sociais
e desafios culturais dos países lusófonos, como caracteriza a sociedade
brasileira hoje?
Com uma
dificuldade imensa de encarar os seus problemas e em apresentar solucões. Reina
a histeria e a hipocrisia na defesa de privilégios enraizados desde o tempo
colonial. Ações afirmativas para negros, bolsas-família, novos direitos
trabalhistas para empregadas domésticas são alvos de intensa campanha contrária
e insatisfação das classes abastadas.
P:- Ricardo Riso, tanto quanto soubemos os
negros no Brasil e América tem sido descriminados e até hoje há grandes
dificuldades de inserção social. Quais as estratégias que vocês tem para
inverter a situação? Pode nos falar das ideias pan-americanistas hoje? O que a
África precisa de ouvir de vós?
W. E. B. Du
Bois no sermão “Sobre as nossas lutas espirituais”, no seu imprescindível “As
almas da gente negra”, aponta para o problema de “ser negro e americano sem ser
amaldiçoado e cuspido por seus camaradas, sem ter as portas da Oportunidade
brutalmente batidas na cara”. Nós, afro-americanos, ainda avançamos para a
construção de um diálogo pan-americano. O problema do racismo é mundial, atravessa
espaços e o tempo, por isso, é pertinente quando o historiador cubano Carlos
Moore fala do protorracismo, das origens dos enfrentamentos raciais entre
melanodermos e leucodermos na antiguidade e como isso foi crescendo no decorrer
dos séculos. Não sinto-me confortável para dizer algo aos angolanos e/ou
africanos no sentido de soluções. O que precisamos é de aproximação, de
cooperação, do resgate e atualização de uma luta pan-africana antirracista.
Marcadores:
10.639/03,
Angola,
entrevistas,
literatura angolana,
literatura negro-brasileira,
literaturas africanas de língua portuguesa,
Ricardo Riso
José Carlos Limeira e Éle Semog: Ogum's Toques do Escritor (vídeos e fotos)
No dia 23 de agosto de 2013, José Carlos Limeira e Éle Semog
participaram do evento Ogum’s Toques do Escritor, organizado pelo coletivo
literário Ogum’s Toques no CEAO/UFBA, Salvador, Bahia. A ocasião foi uma forma
de homenagear os trinta anos do livro “Atabaques” e trinta e quatro anos de “O
Arco-Íris Negro”, as duas parcerias desses autores. Fui honrado com a mediação
da mesa.
Seguem os dois links para o debate:
Algumas fotos do evento.
segunda-feira, 2 de setembro de 2013
Vera Duarte e Ungulani Ba Kha Khosa na UFMG
Marcadores:
Cabo Verde,
Eventos,
literatura cabo-verdiana,
literatura moçambicana,
literaturas africanas de língua portuguesa,
livros,
Moçambique,
UFMG,
Ungulani Ba Kha Khosa,
Vera Duarte
sexta-feira, 30 de agosto de 2013
FLIAFRO Rio de Janeiro 2013
Participarei como coordenador da mesa LITERATURA CABO-VERDIANA com a
presença da escritora Vera Duarte e Dra. Maria Teresa Salgado, como debatedora.
Eduardo White: universidades, bienais do livro e mercado editorial
Eduardo White, escritor moçambicano, expõe sua indignação acerca de
alguns problemas que envolvem a relação escritores africanos-mercado editorial-bienais
do livro-universidades brasileiras. A postagem foi feita no Facebook e
autorizada para publicação aqui.
Caro Ricardo Riso, já ligeiramente corrigido o meu texto, quanto 'a
questão que me puseste e muito bem:
Não esta' em causa o lançamento dos livros de dois escritores de muito
mérito e da minha geração com quem não tenho divergências nenhumas a não ser as
que sempre tivemos e haveremos de ter e ao longo das nossas vidas e
salutarmente.
Ninguém pode tirar o mérito aos distintos confrades que ai e muito bem
vão representar Moçambique.
O que é facto é que a vossa Bienal do Livro é a mais importante feira
no espaço dos falante e dos "escreventes" da Língua Portuguesa e um
mercado que pode possibilitar a ponte definitiva para o intercambio das
culturas dos nossos Países. Depois dessa seguem-se todas as outras que ocorrem
em Portugal, Angola e Cabo-Verde.
O que me vem indignando desde há algum tempo a esta parte é a
quantidade de mestrados e teses que se tem feito no Brasil sobre a minha obra e
sobre a orientação de duas Professoras Doutoras que ai vão estar como
palestrantes de quem em seu nome, inclusivamente, tenho recebido alguns dos
seus Doutores em Maputo, nunca se terem dignado, jamais, a dirigirem-me uma tese
por correio ou um convite para qualquer dessas sessões ou defesas de teses ou
mestrados e ou organizado contactos com os meritíssimos leitores que ai tenho
no Brasil. Ao longo deste tempo todo e como você poderá pesquisar na Internet
só me tenho surpreendido.
Inclusivamente, bem nos recentes anos ai esteve um delegação com o Luis
Abel dos Santos Cezerilo em que a minha obra era um dos temas em debate e em
Maputo fiquei para trás. E como esse exemplo existem vários, tanto cá, como em
Portugal, como com vários convites que me chegam pelos canais que deveriam
chegar, toda a gente sabe qual, e vão outras pessoas em minha representação.
Mas isso é de outro fórum.
O que eu fico surpreendido é que Alcance pretende internacionalizar um
autor que já está quase meio internacionalizado, passe-se a expressão, e
desconhece tudo sobre o autor que tinha.
Os meus livros, tanto da Texto Editora como da Alcance Editores, são
todos impressos em Portugal e não se justifica que não tenha eu um único livro
actual com prémios ganhos, este ano, aqui e lá, no mercado Português. E nem
hajam, igualmente, os que editei em Portugal no mercado Português. E se os há
alguns sou eu que os levo e os deixo porque faço eu o trabalho que as editoras
deveriam fazer. Comprova a MIL, Movimento Internacional da Língua Portuguesa
com a doação que fiz dos Nudos por achar aquele Movimento com pernas para
andar.
Se esse acontecimento que agora decorre no Brasil e que aplaudo
vivamente tem em vista uma maior participação dos autores africanos e
afro-brasileiros na Bienal do Livro, como se justifica que os meus livros, faz
anos, nunca tenham surgido nas feiras dos livros, como aconteceu bem há' pouco
tempo em Lisboa? E no Brasil?
Há qualquer coisa que está errado.
Da Prof. Dra. Carmen Tindo' Secco e outras, bem antes de eu seguir para
Portugal para receber o Prémio Gloria de Sant'Anna de que existem duvidas
quanto 'a legitimidade das razões do mesmo me ter sido atribuído, dei de caras
com um dos seus orientandos na Livraria Conhecimento, em Maputo, que procurava
pelo meu ultimo livro para levar para o Brasil para um trabalho na Universidade
onde ela lecciona.
Pergunto:
Que papel tem então África e os seus autores de Língua Portuguesa
nessas reuniões aonde a gente não participa mas estão lá eles?
E a CPLP, o que faz?
Desculpa este atabalhoado todo, mas estou cansado de ver nitidamente o
que se passa e de estar calado e por isso o "mito" - e todas as
catalogações - de que o Eduardo White temperamentalmente é um autor irreverente
e uma serie de bujardas a meu respeito.
Eu é que represento o meu trabalho e se o meu me confere o direito de o
representar, então sou eu e não eles.
E não me vou calar perante o que se esta' a passar comigo vivo porque
depois de morto a única herança e a melhor memoria de mim que deixarei para os
meus filhos e netos que já' os tenho, e' apenas esta loucura minha de me ter
casado com a escrita."
sexta-feira, 16 de agosto de 2013
Ogum's Toques dos escritores: Éle Semog e José Carlos Limeira
#OgumsToques : Ogum's Toques dos escritores Éle Semog e José Carlos Limeira.
"A ação dos literatos foi fundamental para a rearticulação dos movimentos sociais negros durante a década de 1970. Autoras e autores reuniam-se em coletivos, trocavam informações em diferentes cidades, mimeografavam seus textos e distribuíam em bailes black music, por exemplo, e outros espaços negros.
Rompia-se a asfixia da ditadura militar com seus poemas e contos que denunciavam de forma explícita a farsa da democracia racial, assim como a discriminação a negras e negros como integrante do cotidiano brasileiro. Como parte histórica incontornável desse processo encontravam-se Éle Semog e José Carlos Limeira. Com atuações marcantes nos movimentos negros, desde cedo desenvolveram uma escrita negra, até que um vai ao encontro “daquele contínuo muito estranho que não saía da biblioteca” e começavam ali uma das mais representativas parcerias da literatura negro-brasileira. A união rendeu dois livros: “O Arco-Íris Negro”, de 1979, e “Atabaques” em 1983.
Para celebrar os 30 anos de “Atabaques”, conhecer como foi aquele encontro, ser escritor negro em plena ditadura e como manter a resistência literária no decorrer de tanto tempo, Ogum’s Toques do Escritor convida o público para reviver essa parceria em um bate-papo com Éle Semog e José Carlos Limeira. Uma excelente oportunidade para conhecermos as trajetórias desses dois autores e um pouco da história da literatura negro-brasileira contemporânea, que passa pelas suas escritas imprescindíveis, plenas de inquietação, conscientização e inquestionável apuro estético."
-Ricardo Riso-
"A ação dos literatos foi fundamental para a rearticulação dos movimentos sociais negros durante a década de 1970. Autoras e autores reuniam-se em coletivos, trocavam informações em diferentes cidades, mimeografavam seus textos e distribuíam em bailes black music, por exemplo, e outros espaços negros.
Rompia-se a asfixia da ditadura militar com seus poemas e contos que denunciavam de forma explícita a farsa da democracia racial, assim como a discriminação a negras e negros como integrante do cotidiano brasileiro. Como parte histórica incontornável desse processo encontravam-se Éle Semog e José Carlos Limeira. Com atuações marcantes nos movimentos negros, desde cedo desenvolveram uma escrita negra, até que um vai ao encontro “daquele contínuo muito estranho que não saía da biblioteca” e começavam ali uma das mais representativas parcerias da literatura negro-brasileira. A união rendeu dois livros: “O Arco-Íris Negro”, de 1979, e “Atabaques” em 1983.
Para celebrar os 30 anos de “Atabaques”, conhecer como foi aquele encontro, ser escritor negro em plena ditadura e como manter a resistência literária no decorrer de tanto tempo, Ogum’s Toques do Escritor convida o público para reviver essa parceria em um bate-papo com Éle Semog e José Carlos Limeira. Uma excelente oportunidade para conhecermos as trajetórias desses dois autores e um pouco da história da literatura negro-brasileira contemporânea, que passa pelas suas escritas imprescindíveis, plenas de inquietação, conscientização e inquestionável apuro estético."
-Ricardo Riso-
A mediação ficará a cargo de Ricardo Riso.
quarta-feira, 31 de julho de 2013
terça-feira, 30 de julho de 2013
Eneida Nelly e o cânone
Eneida Nelly e o cânone
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 308, 25 de julho de 2013, p. A34.
O estabelecimento do cânone fala muito
mais pelas ausências e silenciamentos impostos do que por aqueles contemplados
para constituí-lo. Sua rigidez está conotada aos espaços de poder em disputa. Assim,
é fundamental questionar a homogeneização do cânone, “ignorar essa abertura é
reforçar o papel da literatura como mecanismo de distinção e hierarquização
social, deixando de lado as suas potencialidades como discurso desestabilizador
e contraditório”, afirma a ensaísta brasileira Regina Dalcastagnè no livro “Literatura
Brasileira Contemporânea: um território contestado” (2012, p. 12).
Nas literaturas africanas de língua
portuguesa, a ensaísta brasileira Laura Cavalcante Padilha, no artigo “A
diferença interroga o cânone”, chama atenção de obras que contribuíram para a
constituição deste cânone, são as antologias “No reino de Caliban” (1975), de
Manuel Ferreira, e “Entrevistas com Escritores” (1991), de Michel Laban. Ela
afirma que:
“Lembrando o fato de que o acervo
crítico dessas literaturas se ter forjado inicialmente fora da África – na
Europa e nas Américas, com Portugal e Brasil à frente –, começo a questionar
até que ponto, o cânone “consagrado” por outras vozes que não as africanas,
submeteu-se aos mesmos mecanismos de dominação e poder que sempre tiveram como
meta elidir as diferenças, sobretudo se o objeto recortado são questões como de
gênero e raça” (2002, p. 164).
Ou seja, na obra de Ferreira temos 36
escritores e, dentre eles, apenas uma mulher (Yolanda Morazzo), omitindo-se a
questão de raça. Quase 20 anos depois, a seleção de Laban inclui 25 escritores,
entre eles, apenas uma mulher, Orlanda Amarilis. Como já afirmamos em outros
momentos, o negro e a mulher estão fora do cânone literário cabo-verdiano, por
isso, a pertinência de interrogar o cânone e a pergunta que incomoda a quem
interessa a manutenção do status quo: onde estão aqueles que sempre foram
silenciados e excluídos?
A intelectual indiana Gayatri
Chakravorty Spivak é uma das mais lúcidas vozes no combate à situação da
mulher, voz subalternizada e excluída do jogo do poder. Para Spivak (2010), essa
condição subalterna forçada mantém o silenciamento de sua voz e ainda assim
quando consegue se pronunciar não é escutada. A pergunta de Spivak: pode o
subalterno falar? O sujeito subalterno feminino não é sujeito da sua história,
não tem voz e não pode falar, falam por ele, o que se configura uma violência
epistêmica.
E perguntamos: se a mulher não pode
falar, será que a mulher negra pode falar?
Diante da heteronormatividade presente
nas sociedades patriarcais, logo brancocêntricas, não é de se estranhar a
ausência de uma escritora negra no cânone literário cabo-verdiano. Eneida Nelly
desafia esse cânone e os seus pesquisadores quando lança o seu único e
derradeiro livro de poesia, “Sukutam” (Escuta-me), em 2011. Primeiro pela
escrita em língua materna cabo-verdiana, que já conta com uma vasta produção
que é ignorada pelos especialistas da literatura de Cabo Verde – os brasileiros
que o digam, restritos à produção em língua portuguesa. Neocolonialismo? Por
que não? Segundo, nos 50 poemas do livro, Nelly desvela a mundivivência de uma
mulher negra, pobre, da zona rural da Ilha de Santiago. Estão ali a denúncia
social e a sensibilidade feminina ao retratar o cotidiano de dificuldades e de
resistência das manifestações culturais negras das camadas marginalizadas.
O papel pioneiro exercido por Eneida
Nelly ao trazer o gênero, a raça e a autoria feminina em crioulo, demonstra a
necessidade de reavaliação do cânone e da postura do pesquisador brasileiro de
literatura cabo-verdiana, restrito à produção em língua portuguesa. Diante das
adversidades da vida e do meio literário, seria surpresa o seu suicídio meses após
a publicação do livro? Tal abertura pode oferecer outras abordagens para a
literatura de Cabo Verde, contribuindo para sua diversidade. A poesia de Eneida
Nelly escancara o desejo de ser ouvida. Mas, deixaremos o subalterno falar?
Marcadores:
Cabo Verde,
crítica literária,
Eneida Nelly,
Jornal A Nação,
literatura cabo-verdiana,
literaturas africanas de língua portuguesa,
Ricardo Riso
Abelardo Rodrigues – Memória da noite revisitada & outros poemas (resenha)
Abelardo
Rodrigues – Memória da noite revisitada & outros poemas
Nós
somos daqueles que se recusam a esquecer.
Nós
somos daqueles que recusam a amnésia mesmo que seja como uma saída.
(Aimé
Césaire)
Para as comunidades negras na diáspora
africana, a memória é parte essencial da constituição e da afirmação
identitária em sociedades as quais a integração de negras e negros até hoje
passa por turbulências. Ainda que o período de discriminação explícita e de
base jurídica já tenha passado, caso dos EUA, neste e nos demais países do
continente americano, reivindicar uma identidade negra, exaltar seus feitos e
propor a revisão crítica da história ou pelo simples reconhecimento da
contribuição negra para a formação das nações são bandeiras de negociações árduas
e exaustivas na disputa pela hegemonia. Por isso, a recorrência à memória é uma
maneira de combater tudo aquilo que é imposto à população negra que, através da
transmissão oral de diferentes agentes, distantes do academicismo de origem
eurocêntrica, transmitem seus ensinamentos e mantêm vivos os percursos da
história de negras e negros em condições adversas nas sociedades do Novo Mundo.
O excerto de Aimé Césaire como epígrafe
assinala a resistência dos negros americanos, da denúncia de um
passado/presente de opressão aos quais os movimentos sociais negros não deixam
diluir-se no tempo. Apesar das (nossas) vozes não alcançarem o volume auditivo
das instâncias do poder, o balbucio de um objeto que insiste em ser sujeito
está sempre presente, marcando o lugar da sua fala que subverte a ordem das
vozes ditas legitimadas. O ensaísta uruguaio utiliza a metáfora dos planetas
sem boca, de Lacan, para ilustrar essa condição de repressão (ACHUGAR, 2006, p.
20), porém, o ato de balbuciar demonstra a insubmissão àquilo que querem que o
Outro seja, que “balbuciar não é uma carência, mas uma afirmação” (idem, ibidem,
p. 24). A audição desse balbucio demonstra que os “espaços incertos” precisam
ser repensados, que outras versões da História necessitam vir à tona. Insere-se
aqui a importância da estreia literária de Abelardo Rodrigues com “Memória da
noite” e que completa trinta e cinco anos celebrados com a reedição de “Memória
da noite revisitada e outros poemas”, uma iniciativa que contou com a
participação de Marciano Ventura e o Ciclo Contínuo.
Originalmente lançado em 1978,
arrisco-me a dizer que “Memória da noite” pode ser enquadrado como integrante
de uma literatura de fundação, uma vez que marca a presença explícita de um
sujeito lírico negro dirigindo-se a um leitor negro com a preocupação de
conscientizá-lo e participá-lo das circunstâncias específicas das relações
étnico-raciais na sociedade brasileira. Trata-se de um livro-denúncia, da voz
sufocada pela escravidão, posterior democracia racial e de uma cruel ditadura
que considerava apontar o racismo no Brasil como passível de punição de acordo
com a Lei de Segurança Nacional (artigo 33º do Decreto-Lei nº 510, de
20/03/1969). Entretanto, o discurso homogêneo da ditadura, após longo tempo,
começa a sofrer com os questionamentos e a lenta rearticulação dos movimentos
sociais, dentre eles, o movimento social negro, que passa por uma onda de novas
instituições e grupos desabrochando no decorrer dos anos 1970 em várias
capitais do país, tais como Grupo Palmares (Porto Alegre, 1971), CECAN (Centro
de Cultura e Arte Negra, São Paulo, 1972), SINBA (Sociedade de Intercâmbio
Brasil-África, Rio de Janeiro, 1974), IPCN (Instituto de Pesquisas das Culturas
Negras, Rio de Janeiro, 1975), o bloco Ilê Ayê (Salvador, 1976). Além de
movimentos que tinham a literatura como grande importância, casos dos coletivos
“Garra Suburbana” que publicou a antologia “Incidente Normal” (RJ) e GENS
(Grupo de Escritores Negros de Salvador). Também destaque para o jornal “Árvore
da Palavra” e revista “Tição”, além de antologias como “Coletânea de Poesia
Negra”, organizada pelo Centro de Estudos Culturais Afro-brasileiro Zumbi em
1976 e “Negrice I” no ano de 1977, assim como as lutas pelos direitos civis nos
EUA e a descolonização dos países africanos, em especial os de língua
portuguesa (PEREIRA, pp. 44-49; CUTI, pp. 126-127). Para além de livros de
diferentes representantes da literatura negro-brasileira e seus cuidados com a
linguagem, demonstrando a pluralidade da literatura negro-brasileira, casos de
Adão Ventura, Oliveira Silveira, José Carlos Limeira, além de nomes mais
rodados como Carlos de Assumpção, Oswaldo de Camargo e Eduardo de Oliveira.
Todas essas manifestações estimularam os contatos entre os partícipes do
movimento negro.
Porém, o ano de 1978 é especial para a
literatura negro-brasileira em razão dos lançamentos dos livros do já citado
Abelardo Rodrigues, de “Poemas da Carapinha”, primeiro livro de poesia de Luiz
Silva, o Cuti, e do primeiro volume que se tornaria a série “Cadernos Negros”.
Também nesse ano começam as atividades do MNUCDR (Movimento Negro Unificado
Contra a Discriminação Racial) em São Paulo e a célebre manifestação contra o
racismo nas escadarias do Teatro Municipal, no mês de julho. Adequados à
urgência de seu tempo, os escritores que participam desse período possuem uma
postura incisiva. O prefácio de estreia de “Cadernos Negros” coloca-nos a par
da intensidade da época:
A África está se libertando! já
dizia Bélsiva, um dos nossos velhos poetas. E nós brasileiros de origem
africana, como estamos?
Estaremos no limiar de um novo
tempo. Tempo de África vida nova, mais justa e mais livre e, inspirados por
ela, renascemos arrancando as máscaras brancas, pondo fim à imitação.
Descobrimos a lavagem cerebral que nos poluía e estamos assumindo nossa negrura
bela e forte. Estamos limpando nosso espírito das idéias que nos enfraquecem e
que só querem nos dominar.
‘Cadernos Negros’ marca passos
decisivos para nossa valorização e resulta de nossa vigilância contra as idéias
que nos confundem, nos enfraquecem e nos sufocam. As diferenças de estilo,
concepções de literatura, forma, nada disso pode mais ser muro erguido entre
aqueles que encontram na poesia um meio de expressão negra. Aqui se trata da
legítima defesa dos valores do povo negro. A poesia como verdade, testemunha do
nosso tempo. (ALVES, 2012, p. 222)
Como dito anteriormente, a efervescência
do continente africano é mais um estímulo para os negros daqui fortalecerem-se
em grupos, propor discussões e partir para ações contra o sistema racista
brasileiro no nonagésimo aniversário da abolição da escravatura. Olhar para a
África independente é pensar a condição do negro no Brasil, a sua identidade, a
sua memória e o que diz a história oficial. Problematizar essas questões e
tensioná-las diante do mito da democracia racial é um dos objetivos imediatos
dos escritores negros. Por isso, o sujeito lírico de Abelardo Rodrigues em
“memória da noite...” é o “timoneiro de um novo tempo” (RODRIGUES, 2012, p.
20), condutor de vozes até então silenciadas. A preocupação maior dos poemas
que formam o corpo deste livro é com a construção identitária do negro, o
revisitar de sua memória trazendo o tensionamento dos apagamentos da história,
uma vez que “a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade”
(POLLAK, 1992, p. 204), trazê-la à tona é entrar num território de disputas
intensas, já que “a memória e a identidade são valores disputados em conflitos
sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos
políticos diversos” (idem, ibidem, p. 205). Dessa maneira será recorrente a
presença do vocábulo “grito” repetido à exaustão em seus poemas, como forma de
se fazer ouvir, pois estamos em um quadro de ditadura e de uma identidade negro-brasileira
massacrada pelos séculos de escravidão e pela condição subalterna permanente
que se encontram os negros no pós-abolição: “Gestos/ por que não contá-los/ gritos/
por que não libertá-los,/ irmão?” (RODRIGUES, 2013, p. 19). Rompendo a barreira
da asfixia o sujeito lírico enfatiza: “quero o jorro de minha garganta/ limpa
dessas teias seculares// Jugulares veias gritantes/ devem ser meus versos” (idem,
ibidem, p. 18).
O leitor está diante de uma poesia
comprometida em denunciar os séculos de opressão, o poeta realiza com a versificação
livre, muitas vezes em estrofe única, a melhor forma para atingir o seu leitor
negro e atentá-lo para a ruptura do tempo presente: “basta que façamos do
sopro/ um vendaval” (idem, ibidem, p. 22). O conteúdo prevalece em relação à
forma, é a urgência da palavra poética levando o dizer da Noite, pois “o
silêncio do poeta/ é o trovão das palavras silenciosas/ O frio do poeta/ é o
calor do conteúdo/ é a palavra ‘negro’ posta/ em pratos limpos” (idem, ibidem, p.
39). A afirmação identitária combate “as senzalas-prisões/ que permanecem/
corroendo nossas mentes” (idem, ibidem, p.42), porém o sujeito lírico “com seu
grito acordou/ nossas mentes adormecidas/ lançando palavras de escárnio/ aos
velhos livros/ nos quais aprendemos/ o beabá da servidão” (idem, ibidem, p.
61).
Somente com a emergência de novos
agentes sociais que o discurso hegemônico é desestabilizado, reescrever a
narrativa nacional passa por uma árdua negociação com diversos setores da
sociedade, principalmente os intelectuais e os políticos, implica
uma batalha pelo discurso e pela
representação. Implica, de fato, uma batalha por ocupar a posição do que
tem/possui a história, do que sabe e do que escolhe. (...) Implica o desafio de
abandonar as regras do jogo vigentes que eram vistas, de modo incontestável,
até bem pouco tempo. Implica um desafio e uma utopia. A utopia de tentar a
transformação do autoritarismo próprio do discurso nacional homogeneizador. O
desafio de construir os múltiplos cenários da memória nacional como um lugar
(...) onde diferentes concepções da nação disputam e negociam entre si
(ACHUGAR, 2006, p. 163)
O livro “memória da noite...” de
Abelardo Rodrigues está inserido nesse processo de negociação, contribui para
tentar resgatar a memória coletiva negra silenciada na longa noite de opressão
e atua contra o esquecimento imposto pela ordem racista brasileira. Uma poesia
marcada pelo enfrentamento direto da branquitude que a tudo domina, contra o
embranquecimento dos negros, que olha para o passado de matriz africana como
fortalecimento do seu capital simbólico. E aqui cabe um interesse especial de
minha parte que ora propõe este visitar pelo livro de Rodrigues, que é a
aproximação do escritor negro-brasileiro com os autores dos países africanos de
língua portuguesa.
Notória a influência do modernismo
brasileiro para a conscientização nacional de angolanos, moçambicanos,
cabo-verdianos etc. propalada pelos escritores africanos expoentes das décadas
de 1930 a 1950 como fundamental para a construção da identidade nacional e de
uma postura de crítica contrária ao colonialismo português. Exemplos explícitos
são os de Agostinho Neto (Angola) e José Craveirinha (Moçambique). Esse período
é bastante celebrado pelos estudiosos de literaturas africanas de língua
portuguesa aqui no Brasil.
Entretanto, estranho o fato de um
segundo momento de suma importância para essa relação entre a literatura
negro-brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa que é o final
dos anos 1970. O excerto do prefácio de Cadernos Negros supracitado evidencia o
quanto a libertação dos países africanos de língua portuguesa atualizam o
questionamento da condição do negro no Brasil: ele está liberto? Ou “E nós
brasileiros de origem africana, como estamos?” A confluência tempo e espaço é
de essencial importância para as comunidades negras e mostra uma característica
da diáspora africana: que é a relação com outros negros de diferentes países em
diversos lugares do mundo. O processo de independência dos países africanos, de
certa forma, torna-se mais um motivo para que os negros brasileiros olhem para
a sua cidadania na sociedade e partam para a denúncia do racismo e
reivindicação para solução de problemas sociais que afligem diretamente a
população negra.
Nessa perspectiva, não causa
estranhamento a influência de Agostinho Neto na poética de Abelardo Rodrigues
que até dedica um poema ao primeiro presidente de Angola intitulado “Sentinela”,
e destacado por Hélio Pinto Ferreira na primeira edição e Oswaldo de Camargo na
atual. Tal como a poesia de Neto, Rodrigues propõe o resgate das heranças
culturais negras, é contrário à assimilação imposta pelo colonizador branco,
dirige-se a um eu coletivo que se quer insubmisso em poéticas de devir, de
poetas que compreendem a urgência do tempo que lhes coube viver: “destruindo
coloniais ideias (...) alimentando a hora e o dia/ em que teremos nossa
humanidade/ resgatada” (RODRIGUES, 2013, p. 48), como em Rodrigues; enquanto em
Neto, “Eu já não espero/ sou aquele por quem se espera/ (...) teus filhos/ com
medo de te chamarmos Mãe// (...) Amanhã/ entoaremos hinos à liberdade/ quando
comemorarmos/ a data da abolição desta escravatura// Nós vamos em busca de luz
(...)” (NETO, 1986, p. 13-14). Também podemos falar de imagens dissonantes,
raras neste livro de Rodrigues em razão da proposta incisiva e de engajamento
de combate ao racismo, mas que o aproximam de José Craveirinha. Rodrigues em
“Moendas”: “Eles transitam sonhos parasitas/ são corpos mágicos/ vivendo o chão
espinhoso anestesiador” (RODRIGUES, 2013, p. 35) ou no poema “Futuro”:
“Abraçam-se/ beijam-se paladares de um novo dia/ quem são estes homens que
chocam ovos verdes?/ quem são estes homens negros e mulatos/ varando a lassidão
vítrea da paz?” (idem, ibidem, p. 23) desvelam a angústia de defrontar-se com o
racismo brasileiro e mostra a sua mensagem corrosiva, assim como o moçambicano
José Craveirinha que expande a semântica ao criar imagens surreais: “Noites
enjoadas de um milhão de angústias/ racham-me as unhas na lascívia das macias/ paredes
de cimento (mentira não são macias) caiado/ e no amoroso cárcere ensurdecedor
de silêncios (...)” (CRAVEIRINHA, 1980, p. 15). Ou seja, fica evidenciada a
aproximação desse diálogo dos negros brasileiros com as literaturas africanas
serve como fator de coragem para a afirmação identitária negra brasileira, que
teve a oportunidade de ler obras de Agostinho Neto, como “Poemas de Angola”,
aqui publicado pela Codecri, e antologias organizadas por Mário Pinto de
Andrade, tais como “Na noite grávida dos Punhais” e “O canto armado”, todos
títulos dos anos 1970. Agora, por que esse diálogo encontrado na poesia de
Abelardo Rodrigues, em “Cadernos Negros” e em tantos outros escritores dos anos
1970/80 não serve como estímulo para estudos comparativos entre essas
literaturas? Até quando ficaremos presos ao referencial modernista para as
literaturas africanas? Não seria caminho natural a origem africana de nossos
escritores negros para buscar vestígios, investigar semelhanças no texto
literário?
Para finalizar, destaco a importância da
retomada da obra de um autor fundamental para a literatura negro-brasileira
contemporânea, que é Abelardo Rodrigues, dando oportunidade às novas gerações
de desfrutar de um momento crucial da poética negro-brasileira e de como a
postura combativa deste autor ainda inspira muitos das autoras negras e autores
negros que sentem a obrigação do fazer do texto literário como espaço
ininterrupto de denúncia do racismo sistêmico brasileiro. “Memória da noite
revisitada & outros poemas” é um livro de inquietação, de um poeta
angustiado e comprometido com a população negra que utiliza a literatura como
arma de combate para uma sociedade justa e igualitária. Após 35 anos, ter a
oportunidade de acesso a uma obra completa desse marcante período do movimento
literário negro ainda é raro, mas que faço votos para que outras obras sejam
reeditadas e outras editoras demonstrem interesse por esse importante trabalho
de memória da literatura negro-brasileira. Por enquanto, meus parabéns para
Marciano Ventura e o Ciclo Contínuo, e principalmente para Oswaldo de Camargo e
Abelardo Rodrigues, dois nomes essenciais dessa trajetória.
Bibliografia:
ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros
sobre Arte, Cultura e Literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
ALVES, Miriam. Cadernos Negros
(número 1): estado de alerta no fogo cruzado. In: FIGUEIREDO, Maria do Carmo
Lanna; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Orgs.). Poéticas afro-brasileiras. 2ª ed. Belo Horizonte: Mazza Edições;
Editora PUC Minas, 2012. pp. 221-240.
CRAVEIRINHA, José. Cela 1. Lisboa: Edições 70, 1980.
CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.
NETO, Agostinho. Sagrada Esperança. Luanda: União dos
Escritores Angolanos, 1986.
PEREIRA, Amauri Mendes. Trajetórias e perspectivas do Movimento
Negro Brasileiro. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
POLLAK, Michael. Estudos históricos. Rio de Janeiro, vol.
5, n. 10, 1992, p. 200-212.
RODRIGUES, Abelardo. Memória da noite revisitada & outros
poemas. 2ª ed. São Paulo: Edição do Autor, 2013.
Assinar:
Postagens (Atom)