terça-feira, 26 de novembro de 2013

Alberto Guerra Naranjo - Com Tato Cubano (Lançamento RJ)

 
Lançamento do livro COM TATO CUBANO, de Alberto Guerra Naranjo, abrindo a coleção Cabeças Olmecas, destinada a escritorxs afro-latinos. Mais uma publicação da Kitabu Livraria e Editora.



sábado, 23 de novembro de 2013

Alberto Guerra Naranjo - Com Tato Cubano (Kitabu Editora)

A Kitabu Livraria e Editora inicia a coleção Cabeças Olmecas com o afro-cubano Alberto Guerra Naranjo e o seu livro de contos COM TATO CUBANO. Esta coleção propõe "divulgar, dialogar, mas principalmente disseminar a produção literária de las Hermanas e Hermanos afro-latinos no país".
 


Segue texto de orelha de capa de autoria de Ricardo Riso.
Vez em quando o mercado editorial brasileiro contempla o público leitor com algum escritor do Caribe ou da América Latina.
No caso da pequena ilha desafiadora do Tio Sam, logo percebo a melanina pouco acentuada dos autores e a ausência dos entraves das relações raciais nos textos literários.
Diante das dificuldades impostas pelo mercado editorial, o pesquisador de literaturas negro-diaspóricas converte-se em um arqueólogo, procurando vestígios da presença dos negros escritores, uma vez que eles são raros nos cânones das literaturas dos países americanos.
Um olhar mais atento perceberá o absurdo dessa situação, pois eles se destacam desde o Harlem Renaissance até os dias atuais, tais como Langston Hughes, Aimé Césaire, Zora Neale Hurston, Nicolas Guillén, Manuel Zapata Olivella, Eulália Bernard, Patrick Chamoiseau, entre tantos outros.

Agora, deparo-me com o cubano Alberto Guerra Naranjo (1963) na pequena, porém de grande consistência, recolha de textos de “com tato cubano”. São quatro contos incessantes, a partir de uma escrita fragmentada, espiralada, de ritmo efervescente, transgredindo espaço e tempo, encadeando situações díspares, por vezes irônicas, delineadas por diferentes narradores que se encontram com coerência pela habilidade narrativa de Naranjo.

Relevante a maneira como as tensões raciais surgem nos contos. São situações comuns aos negros da diáspora, desvelam-se diante da percepção que as relações raciais do cotidiano cubano estão distantes de aceitar a diferença.

A literatura negro-cubana de Alberto Guerra Naranjo contribui ao questionar as imagens que temos de Cuba, rasurando as ideias fixas de certa propaganda e propõe o desafio à ressignificação da colonialidade do poder que anula a diferença.

Sensível às lacunas do mercado editorial que a Coleção Cabeças Olmecas surge para preencher, diversificar e potencializar as estantes, enfatizando a tradução de autores negro-diaspóricos em prosa e poesia, inéditos ou dispersos em antologias publicadas no Brasil. Um excelente passo inicial foi dado com Alberto Guerra Naranjo.

Ricardo Riso




Alberto Guerra Naranjo (Havana, Cuba, 1963) é graduado em História e Ciências Sociais, professor de roteiros audiovisuais do Instituto Superior de Arte da Universidade de Havana.
Produtor cultural e coordenador dos espaços Toma del Cuento e Sin Azúcar. Coordenador do grupo de criação literária on line Café Naranjo.
Publicou os livros de contos Disparos en el aula (Extramuros, 1992), Aporías de la feria (Extramuros, 1994), Blasfemia del escriba (Letras Cubanas, 2000 e 2002) e o romance La Soledad del tiempo (Union, 2009).
Possui contos publicados em várias revistas e antologias nacionais e internacionais, tem obras traduzidas para inglês, francês, italiano, alemão, português e dinamarquês.
É realizador de projetos audiovisuais e obteve como roteirista o prêmio internacional Broad Casting Caribe, como melhor obra do ano de 2011 com Los Heraldos Negros.
Obteve vários prêmios em concursos literários com destaque para o prêmio da Gaceta de Cuba, em 1997 e 1999, o único escritor a recebê-lo até o momento.

domingo, 15 de setembro de 2013

Entrevista Ricardo Riso para jornal A Capital (Angola)


Entrevista de Ricardo Riso para o jornal “A Capital”, de Luanda, Angola, com a primeira parte publicada no caderno Artes, de 27 de julho de 2013, pp. 32-34, e a derradeira parte no mesmo caderno, de 17 de agosto de 2013, pp. 32-33.

 
Pergunta:- O ministro da Educação de Angola, Pinda Simão, disse, no dia 10 do corrente mês, na sede da União dos escritores Angolanos, que Angola ainda está aprofundar a reflexão sobre o acordo ortográfico que considera positivo, mas que pensa haver aspectos dos povos de Angola que devem ser tidos em conta e que o acordo poria de parte. O que tem a comentar sobre este facto?

O novo acordo ortográfico gerou enorme polêmica aqui no Brasil, muito pela sua ineficiência e que em  nada contribui para solucionar o problema da educação no país. Trata-se de algo menor diante de tantas carências que temos e que precisam de soluções emergenciais nas áreas de saúde e educação. Creio que em Angola seja assim também. Isto é apenas mais um dado que reflete o total descompasso do brancocentrismo da elite com o restante da população, assim como a manutenção da dominação pela língua; a língua como processo de seleção e exclusão. Além disso, há o agravante dos gastos estratosféricos com as reedições de livros didáticos para que estejam conforme as novas regras. Enquanto isso, escolas permanecem desaparelhadas e os professores precisam usar a criatividade para ter condições mínimas de trabalho.

P:- Será que podemos estar diante de uma crise sobre a ratificação e implementação do acordo ortográfico na lusofonia?

Precisamos sim questionar este acordo. Por que temos que falar e escrever da mesma maneira? Por que a referência/submissão a Portugal? O que é lusofonia? Há espaço para o negro na lusofonia? A quem interessa? Para que precisamos de um novo acordo? Não estamos nos comunicando? Precisamos de menos ordens, normas, obediências e afins.

P:- Como classifica as literaturas africanas de língua portuguesa?

Toda classificação é arbitrária e a maneira vaga como foi colocada a pergunta deixa-me em difícil posição. Penso que podemos problematizar esse grande guarda-chuva denominado literaturas africanas de língua portuguesa. Ser “tudólogo” em literaturas africanas exige que escolhas sejam feitas. Sendo assim, começamos a perceber as exclusões. As literaturas de Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe são as maiores prejudicadas nesse processo.

Pensando na Academia, no caso a brasileira, por que não podemos estudar a literatura angolana, a cabo-verdiana, a moçambicana, a guineense ou a são-tomense, e a partir daí nos aprofundarmos em cada uma delas? Outra questão: por que somente as literaturas produzidas em língua portuguesa? Por que esse neocolonialismo acadêmico? Já que por exigência acadêmica somos obrigados a saber inglês, francês, espanhol, entre outras línguas europeias, seria interessante que o pesquisador das literaturas de cada país incorporasse a literatura angolana em quimbundo, a literatura cabo-verdiana crioula e assim em diante. No caso de Cabo Verde há uma vasta produção em crioulo que é ignorada pela crítica brasileira. Por que isto? Penso que é urgente rever esta posição, até como respeito ao pluralismo linguístico desses países africanos.

P:- Acha que elas estão no mesmo nível de concepção estético-discursiva, divulgação de livros e autores no Brasil? Se é que existe essa divulgação na terra do rei pelé?

Dentro das suas especificidades temporais e históricas, elas têm o seu valor no plano estético, basta partir para o texto literário. Creio ser desnecessária a comparação. A respeito da divulgação, muito já foi feito e a Lei 10.639/2003 (obriga o ensino de História e culturas africanas e afro-brasileira em todo a educação básica) foi um grande estímulo e incentivador para o mercado editorial, assim como para os professores que passaram a se interessar por essas temáticas. Há dez anos, chegávamos às livrarias e encontrávamos os livros de autores africanos em lugares pouco privilegiados. Hoje, temos bancadas ou estantes sobre assuntos africanos e alguns autores luso-descendentes ocupam posições de destaque nas vitrines. Importante frisar o trabalho crítico desenvolvido nos cursos de pós-graduação ao longo dos anos que contribuíram para o desenvolvimento desse processo. Porém, ainda estamos distantes do que seria uma boa divulgação de autores africanos, muito em razão da restrição ao reconhecido cânone luso-descendente do mercado editorial e das universidades. E no caso angolano, isso é gritante. A pluralidade de autores está longe de ser atingida, levando em consideração critérios como raça e gênero. Para conhecer outros autores, é preciso que o pesquisador saia da inércia e se transfigure em um arqueólogo. Hoje temos o Facebook, revistas como a Literatas e blogs como o de minha autoria. Buscar outros autores que não constam no cânone estabelecido, pode trazer surpresas agradáveis.

P: Quais os nomes que mais lhe ressalvam nesta literatura, tanto na velha como nova gerações?

Creio que sua pergunta esteja direcionada à literatura angolana. Bom, é importante para o pesquisador conhecer o sistema literário em sua plenitude. Hoje vejo nos congressos que participo poucos trabalhos a respeito dos textos fundacionais da literatura angolana, sinto falta de Cordeiro da Mata, Castro Soromenho... Necessário olharmos para o passado e resgatarmos nomes que foram ostracizados e não ficarmos dependentes do cânone. Isso é um ponto essencial para o investigador. Avançando um pouco no tempo, deparamo-nos com a pouca referência ao nome de Viriato da Cruz, por exemplo. Lembrando que falo daqui do Brasil. A geração dos anos 40/50 é essencial. Não falar de literaturas africanas sem mencionar essa época, em particular, a antologia “Poesia negra de expressão portuguesa”, organizada por Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro é um erro gravíssimo. Tenho especial carinho por esse período. Um texto que gosto de lembrar e divulgar é o “Mestre Tamoda”, de Uanhenga Xitu. Um personagem fascinante!

Com receio de esquecer algum dos autores atuais, mas já como uma longa trajetória, aprecio muito e vejo como nomes incontornáveis da poesia Trajanno Nankhova Trajanno, Lopito Feijoó, João Tala, João Maimona, Conceição Cristóvão, José Luis Mendonça... na prosa, os contos de Tala, Roderick Nehone, o Carmo Neto de “Degravata”... dos mais novos, gosto particularmente de Abreu Paxe, inclusive as análises críticas deste, Akiz Neto, Antonio Pompílio, Pombal Maria, Nok Nogueira... mas, vejo muita pretensão em outros nomes que não atingem o conseguimento estético almejado, tornando suas poéticas exaustivas... agora, o gênero é que fica comprometido na literatura angolana... houve Alda Lara, agora a Paula Tavares, a Isabel Ferreira... a pouca visibilidade da escrita feminina angolana é algo que precisa ser tensionado, principalmente na constituição de seu cânone e de antologias angolanas recentes. Do publicado aqui não preciso dizer, muitos brasileiros já dizem – ou só dizem – sobre essas obras e autores.

 
P:- Falando das novas gerações, acredita que as novas gerações tem pouco ou nada a oferecer a literatura angolana? Até que ponto está afirmação serve de incentivo aos novos autores angolanos?

Toda nova geração tem algo a oferecer e o tempo é o melhor filtro. Caso contrário, pararemos no tempo. O que é necessário é que os jovens literatos leiam, leiam muito dos grandes nomes espalhados pelo mundo e também conheçam os grandes autores angolanos. Mas, uma leitura concentrada, assim como o ato da escrita... sem pressa, estudada... vejo como o maior problema entre os jovens é a rapidez em publicar. Talvez pela facilidade da internet, o “curtir” do Facebook, necessidade de visibilidade, status... é um caminho perigoso. A palavra poética precisa ser lapidada com calma e é essencial a troca com outros autores.

P:- Em Angola temos estado a assistir um forte conflito de gerações. Até que ponto esse conflito é prejudicial e/ou ajuda os novos autores?  

A literatura é um espaço de poder, não podemos perder isto de vista. Sendo assim, os conflitos sempre existirão e serão múltiplos: de tendências literárias, gênero, classe, raça, etário. Temos que estar atentos às reivindicações dos mais novos. Há o ímpeto da juventude, que pode ser bom ou ruim, e inserido nisso podem estar alguns problemas da máquina literária, tais como a dificuldade em publicar, os prêmios literários viciados, invisibilidade nas tertúlias e cadernos literários...

P:- Que responsabilidade tem os escritores de gerações consolidadas  na afirmação de novos autores e/ou gerações?

A responsabilidade desses autores está presente nas suas obras, nos desafios com a linguagem e o compromisso com a palavra depurada que cada um se comprometeu; é responsabilidade sim dos mais novos conhecerem essas obras. É claro que o contato e o incentivo aos mais novos é sempre um fator relevante, de apoio e fortalecimento para os mais novos. Penso que é sempre frutífero o convívio entre os escritores de diversas gerações. Não se deve separá-los ou alimentar inimizades.

P:- Enquanto isso, cada vez é mais visível a promoção de autores africanos luso-descendentes. O que se passa? será que há descriminação na promoção das nossas literaturas a nível de Portugal e Brasil?

Em 2012, eu e a pesquisadora Geny Ferreira Guimarães (doutoranda em Geografia/UFBA) apresentamos, na UFOP/Minas Gerais, um exaustivo levantamento de autores africanos de língua portuguesa publicados no Brasil, intitulado: “Mercado editorial brasileiro: seus entraves para a aplicação da lei 10.639/2003 e o permanente não reconhecimento do negro escritor”. Nosso levantamento reuniu 115 livros das literaturas africanas de língua portuguesa (romance, contos, poesia e infantil) lançados de 1962 a outubro de 2012. Da literatura angolana levantamos 62 livros, sendo que 48 obras são do cânone luso-descendente (Pepetela, Ruy Duarte de Carvalho, José Eduardo Agualusa, Luandino Vieira e Ondjaki). Ou seja, 77% da literatura angolana publicada no Brasil durante o período pesquisado resume-se a cinco autores, quadro ainda mais agravante após 2003, ano da lei 10.639. E não há como se estranhar este dado? Onde está o escritor negro angolano? Nos catálogos das editoras brasileiras é que ele não se encontra. Quem racializa a questão? E a situação só não atinge algo perto do zero porque editoras especializadas em temáticas afro-brasileiras se preocupam com essa disparidade, casos da Mazza, Nandyala e Pallas. Por outro lado, hoje temos editoras com forte suporte financeiro, de divulgação e obras com qualidade gráfica invejável que se escoram no conceito da lusofonia. Entretanto, a lusofonia nada mais é que a renovação da discriminação ao negro escritor. Enquanto elas tentam fugir da estigmatização de autores africanos, eliminam as representações nacionais e continentais e incorporam um discurso diluído na lusofonia. Essas novas editoras mantêm a discriminação de raça e de gênero, fato já denunciado anteriormente pela Drª Laura Cavalcante Padilha (UFF) no seu brilhante artigo “A diferença interroga o cânone” que, ao se referir à constituição do cânone das literaturas africanas, cita as antologias “No reino de Caliban” (1975), de Manuel Ferreira, e “Entrevistas com Escritores” (1991), de Michel Laban, diz o seguinte: “Lembrando o fato de que o acervo crítico dessas literaturas se ter forjado inicialmente fora da África – na Europa e nas Américas, com Portugal e Brasil à frente –, começo a questionar até que ponto, o cânone ‘consagrado’ por outras vozes que não as africanas, submeteu-se aos mesmos mecanismos de dominação e poder que sempre tiveram como meta elidir as diferenças, sobretudo se o objeto recortado são questões como de gênero e raça” (2002, p. 164). Mudamos nesse sentido? De maneira nenhuma e só vamos fortalecendo a exclusão. E se analisarmos teses, dissertações e comunicações nas universidades e congressos de literaturas africanas, o que constataremos?

P:- As nossas literaturas africanas de língua portuguesa, francófonas são estudadas nas universidades brasileiras?

Infelizmente, desconheço a respeito das francófonas. De uma maneira geral, escritores e/ou pensadores negros não são traduzidos pelo mercado editorial brasileiro. E quando não são traduzidos, a circulação desses textos é excessivamente restrita. Nesse ponto, considero importante a relação mercado editorial/universidade como forma de práticas de biopoder, o que dificulta a inserção de novos autores e outras bases epistemológicas nas universidades. Quando muito, temos casos isolados como o de Chinua Achebe. Um nome reconhecido no mundo como Wole Soyinka somente teve a sua primeira obra aqui publicada no ano passado. A íntegra de “Cahiers d’un retour au pays natal” de Aimé Césaire somente ano passado ganhou uma edição brasileira. Temos uma obra de Patrick Chamoiseau, de outros negros, mas dispersas nos catálogos das editoras... Nomes consagrados da luta antirracista nos EUA, do Harlem Renaissance, da Negritude, afro-americanos de línguas espanhola, inglesa ou francesa são raríssimos por aqui, assim como de outros países africanos. Até textos de líderes africanos como Amílcar Cabral, Stevie Biko e Samora Machel não são reeditados há anos. Ou seja, essas ausências não são gratuitas. No caso angolano, o livro “Sagrada Esperança”, de Agostinho Neto, foi lançado em comemoração ao primeiro decênio de Angola independente. Desde então...

No que diz respeito às universidades, muito já foi feito nas públicas graças aos esforços e competência dos nossos professores consagrados que todos nós sabemos seus nomes. Entretanto, há uma realidade entre os grandes centros universitários de literaturas africanas de língua portuguesa e outras universidades públicas e particulares, distantes do eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Belo Horizonte. Ainda ocorre certa rejeição às literaturas africanas, quando muito são encaixadas em “literaturas de expressão portuguesa”. Importante frisar que são raras as disciplinas de literaturas africanas nas grades de graduação dos cursos de Letras espalhados pelo país; nos cursos de pós-graduação a situação é um pouco melhor. Ou seja, já avançamos bastante nesse sentido.

Entretanto, há outro problema no que diz respeito à circulação da crítica literária produzida nos países africanos de língua portuguesa. Sinto falta de maior contato de ensaios críticos de angolanos como Luis Kandjimbo, Francisco Soares e Abreu Paxe, dos moçambicanos Francisco Noa e Lucilio Manjate, do cabo-verdiano José Luis Hopffer Almada e das epístolas de Timóteo Tio Tiofe. Esse estranho distanciamento reflete-se na crítica produzida no Brasil. Quais serão os seus motivos?

P:- Quais são os autores mais referenciados e porque?

As duas últimas edições do Encontro Internacional de Professores de Literaturas Africanas (UFRJ, 2007 e UFOP-PUC/MG, 2010) oferecem um bom parâmetro para percebermos o que vem sendo estudado pelo país. O cânone luso-descendente, e acrescento o moçambicano Mia Couto, foi predominante nas comunicações. Por isso, insisto na relação universidades/mercado editorial. A justificativa cômoda diz que são os autores publicados aqui. Mas, não causa estranheza as análises críticas concentradas nos escritores luso-descendentes? Estamos falando de literaturas africanas, e até quando o escritor luso-descendente será o porta-voz dessas literaturas? O que essa ausência quer dizer? Como há um desprezo das universidades brasileiras por nossa literatura negra, será que o nosso pesquisador carrega o seu olhar brancocêntrico para as literaturas africanas e isso o impede de investigar os textos de autores negros africanos? Com a doença psíquica do racismo, o pesquisador branco, instruído desde os bancos escolares a não reconhecer o negro como escritor, ao lidar com as literaturas africanas percebe-se diante de um dilema que tem dificuldade de resolver, logo, escora-se naqueles que lhe são fenotipicamente parecidos e ideologicamente próximos. Talvez por isso o discurso da mestiçagem constante na obra de Mia Couto ofereça o conforto necessário e seja ovacionado por aqui. A internet facilitou o contato entre os pesquisadores e os escritores africanos. Podemos ser independentes ao mercado editorial. Hoje nos relacionamos diretamente com os autores. Minha trajetória é um exemplo disso. Entre livros e arquivos em pdf, tenho um pouco mais de duas centenas de títulos de prosa e poesia graças a generosidade dos escritores, que agradeço a todos. Quem presta um excelente trabalho para o deslocamento do cânone é a revista moçambicana “Literatas”, idealizada por jovens autores que perceberam essas restrições e decidiram encarar a ordem vigente.

No que diz respeito às pesquisas nas universidades, acompanho com muito interesse as investigações da Drª Lívia Natália, Dr. Jesiel Oliveira e Dr. José Henrique Freitas, todos da UFBA, assim como o Dr. Amarino Queiróz (UFRN) e a Drª Ana Lucia Silva Souza (UNILAB). Esses competentíssimos pesquisadores encontram-se à margem dos grandes centros e propõem linhas investigativas “incomuns” e comparativos não estimulados no Sudeste como entre as literaturas africanas e a literatura negro-brasileira. Além disso, ampliam as discussões ao apresentarem outras bases epistemológicas, oxigenando as literaturas africanas. Também não posso esquecer da trajetória pioneira da relação das literaturas africanas com demais literaturas negras realizadas pela Drª Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC-MG) e Drª Florentina Silva Souza (UFBA). Vejo como a melhor maneira de homenagearmos nossos principais pesquisadores é com a expansão e a diversidade nas linhas investigativas, e não a cômoda reprodução do que já é/foi feito com excelência por eles. Urge a cura do complexo de papagaio residente na maioria dos jovens doutores e mestres de literaturas africanas no Brasil.

Importante frisar que a questão de gênero de certa maneira é melhor resolvida. Temos Paulina Chiziane, Paula Tavares, Isabel Ferreira, Vera Duarte, Dina Salústio, Odete Costa Semedo, Conceição Lima, entre as contemporâneas... nomes restritos, mas, e para não me acusarem de essencialista, destaco as ausências de Maria Helena Sato e Carlota de Barros, duas escritoras cabo-verdianas de grande valor. Porém, e o negro escritor?

P:- Ricardo Riso é um grande activista de luta contra o racismo na cultura, especificamente na literatura, há racismo na literatura brasileira e como vocês combatem esse fenómeno?

Sou apenas mais um negro ciente da minha condição enquanto negro em uma sociedade racista como a brasileira, que conseguiu não se tornar mais um dado estatístico do genocídio que afeta a juventude negra; ciente do corpo-natureza pré-concebido pelos olhares sociais que vêm em mim os atributos físicos e sexuais, jamais o intelecutal ou relacionado a qualquer atividade que exija o mínimo de reflexão; ciente dos entraves no mercado de trabalho; ciente das dificuldades dessa condição de ser negro nos bancos escolares; ciente dos entraves de ser um pesquisador negro com temática negra no território hostil que é a universidade brasileira, da ousadia de deslocar-me de objeto para sujeito, a todo instante sendo chamado atenção por ostentar um discurso militante, como se essa violenta censura epistêmica não fosse militante; um negro atento às violências no campo do simbólico nos meios de comunicação; e, desde sempre, temeroso com a próxima blitz policial, já que minha cor representa a marca da suspeita. Conforme o poema de Éle Semog, “Do Ser”: “Sou universalmente negro/ Na ponta deste lápis/ No âmago desta alma// Sou universalmente livre/ Em cada canto/ Desta raça/ Em cada labirinto desta prisão”. Essas são algumas das questões que passam pelo cotidiano de um negro inserido na farsa da democracia racial.

Sendo assim, quando você me pergunta se há racismo na literatura brasileira, eu preciso dizer que o Brasil republicano, desde sua proclamação, não preocupou-se em inserir os negros na sociedade, mas sim em como resolver o problema dos negros, tanto que “intelectuais” da época apostavam em diferentes formas de embranquecimento da população: pela entrada de imigrantes europeus, pelos cruzamentos inter-raciais em que o fenótipo do europeu prevaleceria, pela esterilização compulsória e permanente, pelo abandono à própria sorte dos negros e sem condições de emprego ou acesso à saúde, ou educação. Os responsáveis atuaram em múltiplas áreas e até hoje são “nomes respeitáveis do pensamento nacional”, dentre outros, Silvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Renato Kehl, Monteiro Lobato, Belizário Penna... A doença psíquica do racismo é tão forte que Joaquim Batista Lacerda representou o país como “delegado oficial do Brasil” durante o Universal Races Congress, dentre outros presentes estavam Franz Boas e W. E. B. Du Bois, em Londres, em 1911, e teve o disparate de dizer que em menos de um século negros e mestiços desapareceriam da população brasileira. Bom, essa ideia é tão forte e tão presente entre a nossa elite que basta olhar para as novelas brasileiras e veremos que esse ideal ainda é almejado. Ou seja, a literatura brasileira, elitista como é da sua natureza, não pode ter negros no seu cânone. E assim, embraquecem Machado de Assis

Sendo assim, a questão é: o que o leitor angolano conhece da literatura brasileira engloba algum escritor negro-brasileiro? O que o leitor angolano conhece da literatura produzida por negros brasileiros? Mudando um pouco o prisma: o pesquisador brasileiro que estuda a literatura angolana propõe o comparativo com a literatura negro-brasileira? Ou seja, se dependermos daquilo que é reconhecido como literatura brasileira, o leitor angolano jamais conhecerá um autor negro-brasileiro.

As escritoras e os escritores negros para quebrar esse círculo ininterrupto e fechado de exclusão atuam com meios próprios para divulgação, distribuição e formas de atingir o seu público leitor, em sua maioria formado por negros. Sim, existe um leitor negro que a literatura canônica sempre ignorou, pois não percebe o negro como consumidor de literatura nem como escritor. A literatura negro-brasileira visualiza um leitor negro, algo que o cânone jamais conseguiu, por isso, a insistência de personagens negros subalternizados e estereotipados nos textos nacionais, o que reflete as posições étnico-raciais no país. Os autores negros divulgam suas obras nas redes formadas pelos movimentos sociais negros, na internet através de blogs e redes sociais e assim “traficamos” esses livros. Hoje temos editoras próprias, mas boa parte das obras ainda são financiadas pelos próprios autores, as famosas edições de autor. Com o livro pronto, o escritor vende de forma “artesanal”, ou em espaços específicos como a “Kitabu – Livraria Negra”, de Heloísa Marconde e Drª Fernanda Felisberto, no Rio de Janeiro. Outro dado importante para a constituição dessa rede é a publicação coletiva, frisando que a opção pelo coletivo é oriunda da dificuldade de aceitação pelas grandes editoras que não querem ter nos seus catálogos títulos que demonstrem as tensões raciais no Brasil, assim como os altos custos gráficos que são extremamente pesados para boa parte dos escritores negros. Nesse sentido, a série “Cadernos Negros” ocupa lugar de destaque. Desde 1978 que esta série publica negras e negros intercalando poesia em um ano e no seguinte, contos. Cadernos Negros é um referencial obrigatório para o escritor e o leitor negro; em Cadernos Negros deparamo-nos com a diversidade da literatura brasileira. Contudo, apesar de atingir neste ano a 36ª edição, a série ainda enfrenta problemas com a divulgação e distribuição de seus exemplares, contando com as diferentes redes negras do país e no estrangeiro. Uma outra ação que merece destaque é o site “Ogum’s Toques”, coordenado por Guellwaarr Adún e que sou colaborador. A proposta de Ogum’s Toques é divulgar as literaturas negras no mundo, em qualquer língua. Literatura que expõe as dificuldades da mulher negra, do homem negro na diáspora ou em África, estará na Ogum’s Toques. Por um humanismo que contemple as diferenças conforme proclamava Aimé Césaire, pela pluriversalidade contra as restrições da universalidade do sul-africano Mogobe Ramose, Ogum’s Toques representa tudo isso. De suma importância e que não poderia ficar de fora é o portal “Literafro”, organizado pelo Dr. Eduardo de Assis Duarte (UFMG). Neste portal estão catalogados mais de duzentos autores negro-brasileiros com biobibliografias, textos críticos e excertos de textos literários.

P:- Quer dizer que o Canone literário no Brasil é escolhido com base na pigmentação da pele? Quais os grandes autores negros brasileiros?

Você sabia que Machado de Assis era negro? Os autores negros não são inseridos no cânone da literatura brasileira. Os poucos que são aceitos, casos de Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto, têm suas vivências de negros completamente excluídas das análises literárias. São embranquecidos. Convivemos com absurdos de que Machado não tocava na questão racial e olhava com desdém o processo abolicionista. Pura mentira e injúria! O olhar atento de Machado ao problema do negro está presente nos seus romances, contos, crônicas e poemas. O Dr. Eduardo de Assis Duarte fez uma brilhante pesquisa que redundou no livro “Machado afro-descendente”, de 2007. Este livro é ignorado pelas universidades brasileiras. Nele, Duarte demonstra com perspicácia como Machado estava atento aos problemas do negro antes e depois da abolição. Além disso, há uma incapacidade da intelectualidade e dos meios de comunicação de admitirem o nosso maior escritor como negro. No que diz respeito à representação de Machado, recentemente, a Caixa Econômica Federal divulgou um comercial televiso que o ator que representava o escritor era branco, quase um caucasiano. Óbvio que as organizações que formam o movimento social negro protestaram e o comercial precisou ser refeito e foi novamente ao ar com um Machado negro. Precisava disso? O que motiva o embranquecimento do escritor? Já Cruz e Sousa sofre(u) com a doença psíquica do racismo dos críticos literários que insistem na brancura de sua poesia e ignoram os seus diversos poemas que denunciam o racismo e o problema do negro. “Emparedado”, “Caveira” estão entre esses poemas. Chega a ser desonestidade com a obra de Cruz e Sousa falar essas verdadeiras bobagens. Enquanto Lima Barreto muitas vezes é tratado como o louco, o bêbado que não sabia escrever. Todas as características do modernismo brasileiro já estão presentes em sua obra, e ele é considerado um pré-modernista. Por quê? Mas, Lima Barreto denunciou a hipocrisia da elite carioca, e a denúncia do racismo é central em textos como “Clara dos Anjos” e “Recordações do escrivão Isaías Caminha”. Os angolanos conhecem a obra de Lima Barreto?

Necessário destacar que o véu branco à frente da crítica brasileira impediu-a de analisar a ausência do escritor negro e de como a personagem negra era representada na nossa literatura. Somente a partir da análise de brasilianistas que essas ausências na literatura brasileira vieram à tona, casos dos pioneiros trabalhos de Roger Bastide (A poesia afro-brasileira, 1944), Raymond Sayers (O negro na literatura brasileira, 1958), Gregory Rabassa (O negro na ficção brasileira, 1965) e David Brookshaw apresenta “Raça e Cor na literatura brasileira” em 1983. Por causa desse silenciamento da crítica brasileira, os escritores negros, principalmente a partir da geração dos anos 1970, passaram a desenvolver ensaios questionando o cânone literário e a defender a existência de uma literatura negra no Brasil. Desde então, vários autores sentiram a necessidade de entrar para a Academia e realizar esse debate nesse espaço de poder. Conceição Evaristo e Cuti são exemplos de escritores negros que se tornaram doutores em literatura, aquela na UFF, este na UNICAMP, como forma de “legitimar” os seus discursos.

Alguns nomes que posso destacar são os de Luiz Gama, que foi vendido como escravo por seu pai branco, depois tornou-se poeta, advogado e abolicionista. Ele sim o verdadeiro “Poeta dos Escravos”. Momentos pioneiros da literatura brasileira vieram de autores negros: o primeiro romance escrito no Brasil veio de um negro, Teixeira e Sousa, assim como a primeira mulher a escrever um romance foi Maria Firmina dos Reis em 1858. Outros nomes marcantes no decorrer do século XX foram Lino Guedes, Solano Trindade, Eduardo de Oliveira, Oswaldo de Camargo, o fenômeno Carolina Maria de Jesus que vendeu cem mil exemplares da primeira edição de “Quarto de despejo” em 1960, posteriormente traduzido para mais de uma dezena de idiomas. Os angolanos conhecem Carolina Maria de Jesus? Porém, é a partir dos anos 1970, durante a ditadura e lembrando que abordar o racismo enquadrava a pessoa na Lei de Segurança Nacional, e no decorrer dos anos 1980 que coletivos negros começam a se rearticular e destacar seus escritores, caso do Grupo Palmares (Porto Alegre/RS), Gens (Salvador/BA), Garra Suburbana e Negrícia (Rio de Janeiro), Cadernos Negros e Quilombhoje (São Paulo/SP). Literatura e movimento social negro atuam lado a lado e na distensão da ditadura fortalecem organizações como CECAN, MNUCDR, IPCN, SINBA, GTAR e jornais como Árvore da Palavra, do MNU, Tição, entre outros. Os 90 anos da Abolição, em 1978, foi uma data marcante nesse processo. Também temos que considerar as influências e contatos externos: as lutas pelos direitos civis nos EUA e a descolonização dos países africanos, principalmente os de língua portugesa, foram eventos motivadores para os negros brasileiros. Há uma aura de solidariedade negra no Atlântico negro. Assim, nomes como José Craveirinha e Agostinho Neto influenciaram os autores negros brasileiros e contribuíram no resgate de África como capital simbólico para nós. Autores marcantes desse processo são Éle Semog, José Carlos Limeira, Cuti, Jamu Minka, Oliveira Silveira, Adão Ventura, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues, Márcio Barbosa, Jônatas Conceição, Geni Guimarães, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Arnaldo Xavier, Edimilson de Almeida Pereira, Lia Vieira, Ronald Augusto... a partir dos anos 90 consolidam-se Conceição Evaristo, Lande Onawale, Lepê Correia, Cristiane Sobral, Cidinha da Silva...

P:- Um dos principais produtos da relação África- Brasil devia ser a cultura. Acha que o Brasil dá a África em igual proporção ao que a África e países como Angola deram ao Brasil durante séculos, culturalmente?

Dentro do nosso processo de rejeição ao passado africano e ao negro brasileiro, tanto que por aqui transforma-se o que é oriundo da cultura negra em mestiço e assim vira identidade nacional, caso do samba, e assim naturaliza-se certo desprezo das políticas culturais voltadas para os países africanos. Quando acontecem, tendem para a valorização do exótico e das representações estereotipadas. Mas, o que os angolanos conhecem da cultura negro-brasileira? Há interesse desse intercâmbio por parte dos angolanos?

P:-Como a África no geral, e Angola em particular, é vista hoje no Brasil, principalmente pelas Meios de Difusão Massiva, depois do longo tempo de guerra civil?

A visão de África de uma forma geral, e de Angola não foge da extrema estereotipia, da África selvagem que aparece sempre no “Globo Repórter”. Nas escolas temos que começar pontuando que Angola e outros países falam português, que passaram por uma guerra de independência, depois civil... é tudo muito raso por aqui. Exceto os pesquisadores, para a população em geral falar de África ainda é falar de miséria, fome, guerra...

P:- Porquê que os mídias africanos têm dificuldade de penetração no Brasil?

Creio que pelo apontado anteriormente. Não há interesse do Brasil em aproximar-se dos países africanos. E a maioria dos canais que buscam esse contato com os africanos são os que lidam com a cultura negra,

P:-Na relação com as antigas colónias portuguesas, o Brasil supera Portugal, pela influência dos mídias e produtos culturais como a música, cinema, literatura e televisão, além do poder económico. Acha que o Brasil tem aproveitado essa hegemonia e superioridade da melhor forma?

Percebo práticas neocoloniais que em nada favorecem Angola e Moçambique, por exemplo. Para além da nefasta ideologia dos canais de televisão que levam os seus péssimos produtos. Tenham cuidado!

P:- O mundo vive o fenómeno das manifestações anti-governamentais. Na sua observação o que se está passar?

No caso brasileiro, vejo sobretudo a explosão de uma profunda crise de representação partidária e de movimentos sindicais. Após longo silenciamento, o Padrão Fifa estimulou a população a analisar a falta desse padrão nos transportes, na saúde, na educação, nos serviços como saneamento... percebeu o excesso de ordem ao qual estamos submetidos e quase nada em troca. Um pouco de desordem faz bem à saúde democrática, ainda tão fragilizada no país. Chama atenção a heterogeneidade de reivindicações, cenário normal diante de tantos absurdos e governança voltada para a elite. E as pautas negras estão inseridas nesse processo, dentre tantas necessidades urgentes, temos como maior preocupação o genocídio da juventude negra. Os índices só aumentam com o passar dos anos e vários meninos são mortos pela Polícia Militar sem nenhum motivo aparente. A triste realidade dos negrotérios, neologismo de Éle Semog, é algo que precisa terminar. Porém, matar negros não causa indignação à população nem vira notícia de televisão ou primeira capa de jornal. É algo natural.

P:-Esta é apenas uma questão de desigualdade social. Ou uma mudança progressiva na relação social ao nível do mundo?

No Brasil é um problema racial que a esquerda política jamais quis participar. Em relação ao mundo, o modelo neoliberal já mostrou o seu esgotamento e a ampliação descarada das desigualdades. Por isso, a urgência dos conflitos e manifestações.

P:- Quando restam grandes desigualdades sociais e desafios culturais dos países lusófonos, como caracteriza a sociedade brasileira hoje?

Com uma dificuldade imensa de encarar os seus problemas e em apresentar solucões. Reina a histeria e a hipocrisia na defesa de privilégios enraizados desde o tempo colonial. Ações afirmativas para negros, bolsas-família, novos direitos trabalhistas para empregadas domésticas são alvos de intensa campanha contrária e insatisfação das classes abastadas.


P:- Ricardo Riso, tanto quanto soubemos os negros no Brasil e América tem sido descriminados e até hoje há grandes dificuldades de inserção social. Quais as estratégias que vocês tem para inverter a situação? Pode nos falar das ideias pan-americanistas hoje? O que a África precisa de ouvir de vós?

W. E. B. Du Bois no sermão “Sobre as nossas lutas espirituais”, no seu imprescindível “As almas da gente negra”, aponta para o problema de “ser negro e americano sem ser amaldiçoado e cuspido por seus camaradas, sem ter as portas da Oportunidade brutalmente batidas na cara”. Nós, afro-americanos, ainda avançamos para a construção de um diálogo pan-americano. O problema do racismo é mundial, atravessa espaços e o tempo, por isso, é pertinente quando o historiador cubano Carlos Moore fala do protorracismo, das origens dos enfrentamentos raciais entre melanodermos e leucodermos na antiguidade e como isso foi crescendo no decorrer dos séculos. Não sinto-me confortável para dizer algo aos angolanos e/ou africanos no sentido de soluções. O que precisamos é de aproximação, de cooperação, do resgate e atualização de uma luta pan-africana antirracista.

 

 

 

 
 

José Carlos Limeira e Éle Semog: Ogum's Toques do Escritor (vídeos e fotos)


No dia 23 de agosto de 2013, José Carlos Limeira e Éle Semog participaram do evento Ogum’s Toques do Escritor, organizado pelo coletivo literário Ogum’s Toques no CEAO/UFBA, Salvador, Bahia. A ocasião foi uma forma de homenagear os trinta anos do livro “Atabaques” e trinta e quatro anos de “O Arco-Íris Negro”, as duas parcerias desses autores. Fui honrado com a mediação da mesa.

Seguem os dois links para o debate:


 

Algumas fotos do evento.

 








segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Vera Duarte e Ungulani Ba Kha Khosa na UFMG


sexta-feira, 30 de agosto de 2013

FLIAFRO Rio de Janeiro 2013


Participarei como coordenador da mesa LITERATURA CABO-VERDIANA com a presença da escritora Vera Duarte e Dra. Maria Teresa Salgado, como debatedora.
 

Eduardo White: universidades, bienais do livro e mercado editorial


Eduardo White, escritor moçambicano, expõe sua indignação acerca de alguns problemas que envolvem a relação escritores africanos-mercado editorial-bienais do livro-universidades brasileiras. A postagem foi feita no Facebook e autorizada para publicação aqui.

Caro Ricardo Riso, já ligeiramente corrigido o meu texto, quanto 'a questão que me puseste e muito bem:

 

Não esta' em causa o lançamento dos livros de dois escritores de muito mérito e da minha geração com quem não tenho divergências nenhumas a não ser as que sempre tivemos e haveremos de ter e ao longo das nossas vidas e salutarmente.

 

Ninguém pode tirar o mérito aos distintos confrades que ai e muito bem vão representar Moçambique.

 

O que é facto é que a vossa Bienal do Livro é a mais importante feira no espaço dos falante e dos "escreventes" da Língua Portuguesa e um mercado que pode possibilitar a ponte definitiva para o intercambio das culturas dos nossos Países. Depois dessa seguem-se todas as outras que ocorrem em Portugal, Angola e Cabo-Verde.

 

O que me vem indignando desde há algum tempo a esta parte é a quantidade de mestrados e teses que se tem feito no Brasil sobre a minha obra e sobre a orientação de duas Professoras Doutoras que ai vão estar como palestrantes de quem em seu nome, inclusivamente, tenho recebido alguns dos seus Doutores em Maputo, nunca se terem dignado, jamais, a dirigirem-me uma tese por correio ou um convite para qualquer dessas sessões ou defesas de teses ou mestrados e ou organizado contactos com os meritíssimos leitores que ai tenho no Brasil. Ao longo deste tempo todo e como você poderá pesquisar na Internet só me tenho surpreendido.

 

Inclusivamente, bem nos recentes anos ai esteve um delegação com o Luis Abel dos Santos Cezerilo em que a minha obra era um dos temas em debate e em Maputo fiquei para trás. E como esse exemplo existem vários, tanto cá, como em Portugal, como com vários convites que me chegam pelos canais que deveriam chegar, toda a gente sabe qual, e vão outras pessoas em minha representação.

 

Mas isso é de outro fórum.

 

O que eu fico surpreendido é que Alcance pretende internacionalizar um autor que já está quase meio internacionalizado, passe-se a expressão, e desconhece tudo sobre o autor que tinha.

 

Os meus livros, tanto da Texto Editora como da Alcance Editores, são todos impressos em Portugal e não se justifica que não tenha eu um único livro actual com prémios ganhos, este ano, aqui e lá, no mercado Português. E nem hajam, igualmente, os que editei em Portugal no mercado Português. E se os há alguns sou eu que os levo e os deixo porque faço eu o trabalho que as editoras deveriam fazer. Comprova a MIL, Movimento Internacional da Língua Portuguesa com a doação que fiz dos Nudos por achar aquele Movimento com pernas para andar.

 

Se esse acontecimento que agora decorre no Brasil e que aplaudo vivamente tem em vista uma maior participação dos autores africanos e afro-brasileiros na Bienal do Livro, como se justifica que os meus livros, faz anos, nunca tenham surgido nas feiras dos livros, como aconteceu bem há' pouco tempo em Lisboa? E no Brasil?

 

Há qualquer coisa que está errado.

 

Da Prof. Dra. Carmen Tindo' Secco e outras, bem antes de eu seguir para Portugal para receber o Prémio Gloria de Sant'Anna de que existem duvidas quanto 'a legitimidade das razões do mesmo me ter sido atribuído, dei de caras com um dos seus orientandos na Livraria Conhecimento, em Maputo, que procurava pelo meu ultimo livro para levar para o Brasil para um trabalho na Universidade onde ela lecciona.

 

Pergunto:

 

Que papel tem então África e os seus autores de Língua Portuguesa nessas reuniões aonde a gente não participa mas estão lá eles?

 

E a CPLP, o que faz?

 
Desculpa este atabalhoado todo, mas estou cansado de ver nitidamente o que se passa e de estar calado e por isso o "mito" - e todas as catalogações - de que o Eduardo White temperamentalmente é um autor irreverente e uma serie de bujardas a meu respeito.

 

Eu é que represento o meu trabalho e se o meu me confere o direito de o representar, então sou eu e não eles.

 

E não me vou calar perante o que se esta' a passar comigo vivo porque depois de morto a única herança e a melhor memoria de mim que deixarei para os meus filhos e netos que já' os tenho, e' apenas esta loucura minha de me ter casado com a escrita."

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Ogum's Toques dos escritores: Éle Semog e José Carlos Limeira



‪#‎OgumsToques‬ : Ogum's Toques dos escritores Éle Semog e José Carlos Limeira.

"A ação dos literatos foi fundamental para a rearticulação dos movimentos sociais negros durante a década de 1970. Autoras e autores reuniam-se em coletivos, trocavam informações em diferentes cidades, mimeografavam seus textos e distribuíam em bailes black music, por exemplo, e outros espaços negros.

Rompia-se a asfixia da ditadura militar com seus poemas e contos que denunciavam de forma explícita a farsa da democracia racial, assim como a discriminação a negras e negros como integrante do cotidiano brasileiro. Como parte histórica incontornável desse processo encontravam-se Éle Semog e José Carlos Limeira. Com atuações marcantes nos movimentos negros, desde cedo desenvolveram uma escrita negra, até que um vai ao encontro “daquele contínuo muito estranho que não saía da biblioteca” e começavam ali uma das mais representativas parcerias da literatura negro-brasileira. A união rendeu dois livros: “O Arco-Íris Negro”, de 1979, e “Atabaques” em 1983.

Para celebrar os 30 anos de “Atabaques”, conhecer como foi aquele encontro, ser escritor negro em plena ditadura e como manter a resistência literária no decorrer de tanto tempo, Ogum’s Toques do Escritor convida o público para reviver essa parceria em um bate-papo com Éle Semog e José Carlos Limeira. Uma excelente oportunidade para conhecermos as trajetórias desses dois autores e um pouco da história da literatura negro-brasileira contemporânea, que passa pelas suas escritas imprescindíveis, plenas de inquietação, conscientização e inquestionável apuro estético."
-Ricardo Riso-

A mediação ficará a cargo de Ricardo Riso.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Eneida Nelly e o cânone


Eneida Nelly e o cânone
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 308, 25 de julho de 2013, p. A34.
O estabelecimento do cânone fala muito mais pelas ausências e silenciamentos impostos do que por aqueles contemplados para constituí-lo. Sua rigidez está conotada aos espaços de poder em disputa. Assim, é fundamental questionar a homogeneização do cânone, “ignorar essa abertura é reforçar o papel da literatura como mecanismo de distinção e hierarquização social, deixando de lado as suas potencialidades como discurso desestabilizador e contraditório”, afirma a ensaísta brasileira Regina Dalcastagnè no livro “Literatura Brasileira Contemporânea: um território contestado” (2012, p. 12).
Nas literaturas africanas de língua portuguesa, a ensaísta brasileira Laura Cavalcante Padilha, no artigo “A diferença interroga o cânone”, chama atenção de obras que contribuíram para a constituição deste cânone, são as antologias “No reino de Caliban” (1975), de Manuel Ferreira, e “Entrevistas com Escritores” (1991), de Michel Laban. Ela afirma que:
“Lembrando o fato de que o acervo crítico dessas literaturas se ter forjado inicialmente fora da África – na Europa e nas Américas, com Portugal e Brasil à frente –, começo a questionar até que ponto, o cânone “consagrado” por outras vozes que não as africanas, submeteu-se aos mesmos mecanismos de dominação e poder que sempre tiveram como meta elidir as diferenças, sobretudo se o objeto recortado são questões como de gênero e raça” (2002, p. 164).
Ou seja, na obra de Ferreira temos 36 escritores e, dentre eles, apenas uma mulher (Yolanda Morazzo), omitindo-se a questão de raça. Quase 20 anos depois, a seleção de Laban inclui 25 escritores, entre eles, apenas uma mulher, Orlanda Amarilis. Como já afirmamos em outros momentos, o negro e a mulher estão fora do cânone literário cabo-verdiano, por isso, a pertinência de interrogar o cânone e a pergunta que incomoda a quem interessa a manutenção do status quo: onde estão aqueles que sempre foram silenciados e excluídos?
A intelectual indiana Gayatri Chakravorty Spivak é uma das mais lúcidas vozes no combate à situação da mulher, voz subalternizada e excluída do jogo do poder. Para Spivak (2010), essa condição subalterna forçada mantém o silenciamento de sua voz e ainda assim quando consegue se pronunciar não é escutada. A pergunta de Spivak: pode o subalterno falar? O sujeito subalterno feminino não é sujeito da sua história, não tem voz e não pode falar, falam por ele, o que se configura uma violência epistêmica.
E perguntamos: se a mulher não pode falar, será que a mulher negra pode falar?
Diante da heteronormatividade presente nas sociedades patriarcais, logo brancocêntricas, não é de se estranhar a ausência de uma escritora negra no cânone literário cabo-verdiano. Eneida Nelly desafia esse cânone e os seus pesquisadores quando lança o seu único e derradeiro livro de poesia, “Sukutam” (Escuta-me), em 2011. Primeiro pela escrita em língua materna cabo-verdiana, que já conta com uma vasta produção que é ignorada pelos especialistas da literatura de Cabo Verde – os brasileiros que o digam, restritos à produção em língua portuguesa. Neocolonialismo? Por que não? Segundo, nos 50 poemas do livro, Nelly desvela a mundivivência de uma mulher negra, pobre, da zona rural da Ilha de Santiago. Estão ali a denúncia social e a sensibilidade feminina ao retratar o cotidiano de dificuldades e de resistência das manifestações culturais negras das camadas marginalizadas.

O papel pioneiro exercido por Eneida Nelly ao trazer o gênero, a raça e a autoria feminina em crioulo, demonstra a necessidade de reavaliação do cânone e da postura do pesquisador brasileiro de literatura cabo-verdiana, restrito à produção em língua portuguesa. Diante das adversidades da vida e do meio literário, seria surpresa o seu suicídio meses após a publicação do livro? Tal abertura pode oferecer outras abordagens para a literatura de Cabo Verde, contribuindo para sua diversidade. A poesia de Eneida Nelly escancara o desejo de ser ouvida. Mas, deixaremos o subalterno falar?

Abelardo Rodrigues – Memória da noite revisitada & outros poemas (resenha)

Abelardo Rodrigues – Memória da noite revisitada & outros poemas
Nós somos daqueles que se recusam a esquecer.
Nós somos daqueles que recusam a amnésia mesmo que seja como uma saída.
(Aimé Césaire)

Para as comunidades negras na diáspora africana, a memória é parte essencial da constituição e da afirmação identitária em sociedades as quais a integração de negras e negros até hoje passa por turbulências. Ainda que o período de discriminação explícita e de base jurídica já tenha passado, caso dos EUA, neste e nos demais países do continente americano, reivindicar uma identidade negra, exaltar seus feitos e propor a revisão crítica da história ou pelo simples reconhecimento da contribuição negra para a formação das nações são bandeiras de negociações árduas e exaustivas na disputa pela hegemonia. Por isso, a recorrência à memória é uma maneira de combater tudo aquilo que é imposto à população negra que, através da transmissão oral de diferentes agentes, distantes do academicismo de origem eurocêntrica, transmitem seus ensinamentos e mantêm vivos os percursos da história de negras e negros em condições adversas nas sociedades do Novo Mundo.
O excerto de Aimé Césaire como epígrafe assinala a resistência dos negros americanos, da denúncia de um passado/presente de opressão aos quais os movimentos sociais negros não deixam diluir-se no tempo. Apesar das (nossas) vozes não alcançarem o volume auditivo das instâncias do poder, o balbucio de um objeto que insiste em ser sujeito está sempre presente, marcando o lugar da sua fala que subverte a ordem das vozes ditas legitimadas. O ensaísta uruguaio utiliza a metáfora dos planetas sem boca, de Lacan, para ilustrar essa condição de repressão (ACHUGAR, 2006, p. 20), porém, o ato de balbuciar demonstra a insubmissão àquilo que querem que o Outro seja, que “balbuciar não é uma carência, mas uma afirmação” (idem, ibidem, p. 24). A audição desse balbucio demonstra que os “espaços incertos” precisam ser repensados, que outras versões da História necessitam vir à tona. Insere-se aqui a importância da estreia literária de Abelardo Rodrigues com “Memória da noite” e que completa trinta e cinco anos celebrados com a reedição de “Memória da noite revisitada e outros poemas”, uma iniciativa que contou com a participação de Marciano Ventura e o Ciclo Contínuo.
Originalmente lançado em 1978, arrisco-me a dizer que “Memória da noite” pode ser enquadrado como integrante de uma literatura de fundação, uma vez que marca a presença explícita de um sujeito lírico negro dirigindo-se a um leitor negro com a preocupação de conscientizá-lo e participá-lo das circunstâncias específicas das relações étnico-raciais na sociedade brasileira. Trata-se de um livro-denúncia, da voz sufocada pela escravidão, posterior democracia racial e de uma cruel ditadura que considerava apontar o racismo no Brasil como passível de punição de acordo com a Lei de Segurança Nacional (artigo 33º do Decreto-Lei nº 510, de 20/03/1969). Entretanto, o discurso homogêneo da ditadura, após longo tempo, começa a sofrer com os questionamentos e a lenta rearticulação dos movimentos sociais, dentre eles, o movimento social negro, que passa por uma onda de novas instituições e grupos desabrochando no decorrer dos anos 1970 em várias capitais do país, tais como Grupo Palmares (Porto Alegre, 1971), CECAN (Centro de Cultura e Arte Negra, São Paulo, 1972), SINBA (Sociedade de Intercâmbio Brasil-África, Rio de Janeiro, 1974), IPCN (Instituto de Pesquisas das Culturas Negras, Rio de Janeiro, 1975), o bloco Ilê Ayê (Salvador, 1976). Além de movimentos que tinham a literatura como grande importância, casos dos coletivos “Garra Suburbana” que publicou a antologia “Incidente Normal” (RJ) e GENS (Grupo de Escritores Negros de Salvador). Também destaque para o jornal “Árvore da Palavra” e revista “Tição”, além de antologias como “Coletânea de Poesia Negra”, organizada pelo Centro de Estudos Culturais Afro-brasileiro Zumbi em 1976 e “Negrice I” no ano de 1977, assim como as lutas pelos direitos civis nos EUA e a descolonização dos países africanos, em especial os de língua portuguesa (PEREIRA, pp. 44-49; CUTI, pp. 126-127). Para além de livros de diferentes representantes da literatura negro-brasileira e seus cuidados com a linguagem, demonstrando a pluralidade da literatura negro-brasileira, casos de Adão Ventura, Oliveira Silveira, José Carlos Limeira, além de nomes mais rodados como Carlos de Assumpção, Oswaldo de Camargo e Eduardo de Oliveira. Todas essas manifestações estimularam os contatos entre os partícipes do movimento negro.
Porém, o ano de 1978 é especial para a literatura negro-brasileira em razão dos lançamentos dos livros do já citado Abelardo Rodrigues, de “Poemas da Carapinha”, primeiro livro de poesia de Luiz Silva, o Cuti, e do primeiro volume que se tornaria a série “Cadernos Negros”. Também nesse ano começam as atividades do MNUCDR (Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial) em São Paulo e a célebre manifestação contra o racismo nas escadarias do Teatro Municipal, no mês de julho. Adequados à urgência de seu tempo, os escritores que participam desse período possuem uma postura incisiva. O prefácio de estreia de “Cadernos Negros” coloca-nos a par da intensidade da época:
A África está se libertando! já dizia Bélsiva, um dos nossos velhos poetas. E nós brasileiros de origem africana, como estamos?
Estaremos no limiar de um novo tempo. Tempo de África vida nova, mais justa e mais livre e, inspirados por ela, renascemos arrancando as máscaras brancas, pondo fim à imitação. Descobrimos a lavagem cerebral que nos poluía e estamos assumindo nossa negrura bela e forte. Estamos limpando nosso espírito das idéias que nos enfraquecem e que só querem nos dominar.
‘Cadernos Negros’ marca passos decisivos para nossa valorização e resulta de nossa vigilância contra as idéias que nos confundem, nos enfraquecem e nos sufocam. As diferenças de estilo, concepções de literatura, forma, nada disso pode mais ser muro erguido entre aqueles que encontram na poesia um meio de expressão negra. Aqui se trata da legítima defesa dos valores do povo negro. A poesia como verdade, testemunha do nosso tempo. (ALVES, 2012, p. 222)

Como dito anteriormente, a efervescência do continente africano é mais um estímulo para os negros daqui fortalecerem-se em grupos, propor discussões e partir para ações contra o sistema racista brasileiro no nonagésimo aniversário da abolição da escravatura. Olhar para a África independente é pensar a condição do negro no Brasil, a sua identidade, a sua memória e o que diz a história oficial. Problematizar essas questões e tensioná-las diante do mito da democracia racial é um dos objetivos imediatos dos escritores negros. Por isso, o sujeito lírico de Abelardo Rodrigues em “memória da noite...” é o “timoneiro de um novo tempo” (RODRIGUES, 2012, p. 20), condutor de vozes até então silenciadas. A preocupação maior dos poemas que formam o corpo deste livro é com a construção identitária do negro, o revisitar de sua memória trazendo o tensionamento dos apagamentos da história, uma vez que “a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade” (POLLAK, 1992, p. 204), trazê-la à tona é entrar num território de disputas intensas, já que “a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos” (idem, ibidem, p. 205). Dessa maneira será recorrente a presença do vocábulo “grito” repetido à exaustão em seus poemas, como forma de se fazer ouvir, pois estamos em um quadro de ditadura e de uma identidade negro-brasileira massacrada pelos séculos de escravidão e pela condição subalterna permanente que se encontram os negros no pós-abolição: “Gestos/ por que não contá-los/ gritos/ por que não libertá-los,/ irmão?” (RODRIGUES, 2013, p. 19). Rompendo a barreira da asfixia o sujeito lírico enfatiza: “quero o jorro de minha garganta/ limpa dessas teias seculares// Jugulares veias gritantes/ devem ser meus versos” (idem, ibidem, p. 18).
O leitor está diante de uma poesia comprometida em denunciar os séculos de opressão, o poeta realiza com a versificação livre, muitas vezes em estrofe única, a melhor forma para atingir o seu leitor negro e atentá-lo para a ruptura do tempo presente: “basta que façamos do sopro/ um vendaval” (idem, ibidem, p. 22). O conteúdo prevalece em relação à forma, é a urgência da palavra poética levando o dizer da Noite, pois “o silêncio do poeta/ é o trovão das palavras silenciosas/ O frio do poeta/ é o calor do conteúdo/ é a palavra ‘negro’ posta/ em pratos limpos” (idem, ibidem, p. 39). A afirmação identitária combate “as senzalas-prisões/ que permanecem/ corroendo nossas mentes” (idem, ibidem, p.42), porém o sujeito lírico “com seu grito acordou/ nossas mentes adormecidas/ lançando palavras de escárnio/ aos velhos livros/ nos quais aprendemos/ o beabá da servidão” (idem, ibidem, p. 61).
Somente com a emergência de novos agentes sociais que o discurso hegemônico é desestabilizado, reescrever a narrativa nacional passa por uma árdua negociação com diversos setores da sociedade, principalmente os intelectuais e os políticos, implica
uma batalha pelo discurso e pela representação. Implica, de fato, uma batalha por ocupar a posição do que tem/possui a história, do que sabe e do que escolhe. (...) Implica o desafio de abandonar as regras do jogo vigentes que eram vistas, de modo incontestável, até bem pouco tempo. Implica um desafio e uma utopia. A utopia de tentar a transformação do autoritarismo próprio do discurso nacional homogeneizador. O desafio de construir os múltiplos cenários da memória nacional como um lugar (...) onde diferentes concepções da nação disputam e negociam entre si (ACHUGAR, 2006, p. 163)

O livro “memória da noite...” de Abelardo Rodrigues está inserido nesse processo de negociação, contribui para tentar resgatar a memória coletiva negra silenciada na longa noite de opressão e atua contra o esquecimento imposto pela ordem racista brasileira. Uma poesia marcada pelo enfrentamento direto da branquitude que a tudo domina, contra o embranquecimento dos negros, que olha para o passado de matriz africana como fortalecimento do seu capital simbólico. E aqui cabe um interesse especial de minha parte que ora propõe este visitar pelo livro de Rodrigues, que é a aproximação do escritor negro-brasileiro com os autores dos países africanos de língua portuguesa.
Notória a influência do modernismo brasileiro para a conscientização nacional de angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos etc. propalada pelos escritores africanos expoentes das décadas de 1930 a 1950 como fundamental para a construção da identidade nacional e de uma postura de crítica contrária ao colonialismo português. Exemplos explícitos são os de Agostinho Neto (Angola) e José Craveirinha (Moçambique). Esse período é bastante celebrado pelos estudiosos de literaturas africanas de língua portuguesa aqui no Brasil.
Entretanto, estranho o fato de um segundo momento de suma importância para essa relação entre a literatura negro-brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa que é o final dos anos 1970. O excerto do prefácio de Cadernos Negros supracitado evidencia o quanto a libertação dos países africanos de língua portuguesa atualizam o questionamento da condição do negro no Brasil: ele está liberto? Ou “E nós brasileiros de origem africana, como estamos?” A confluência tempo e espaço é de essencial importância para as comunidades negras e mostra uma característica da diáspora africana: que é a relação com outros negros de diferentes países em diversos lugares do mundo. O processo de independência dos países africanos, de certa forma, torna-se mais um motivo para que os negros brasileiros olhem para a sua cidadania na sociedade e partam para a denúncia do racismo e reivindicação para solução de problemas sociais que afligem diretamente a população negra.
Nessa perspectiva, não causa estranhamento a influência de Agostinho Neto na poética de Abelardo Rodrigues que até dedica um poema ao primeiro presidente de Angola intitulado “Sentinela”, e destacado por Hélio Pinto Ferreira na primeira edição e Oswaldo de Camargo na atual. Tal como a poesia de Neto, Rodrigues propõe o resgate das heranças culturais negras, é contrário à assimilação imposta pelo colonizador branco, dirige-se a um eu coletivo que se quer insubmisso em poéticas de devir, de poetas que compreendem a urgência do tempo que lhes coube viver: “destruindo coloniais ideias (...) alimentando a hora e o dia/ em que teremos nossa humanidade/ resgatada” (RODRIGUES, 2013, p. 48), como em Rodrigues; enquanto em Neto, “Eu já não espero/ sou aquele por quem se espera/ (...) teus filhos/ com medo de te chamarmos Mãe// (...) Amanhã/ entoaremos hinos à liberdade/ quando comemorarmos/ a data da abolição desta escravatura// Nós vamos em busca de luz (...)” (NETO, 1986, p. 13-14). Também podemos falar de imagens dissonantes, raras neste livro de Rodrigues em razão da proposta incisiva e de engajamento de combate ao racismo, mas que o aproximam de José Craveirinha. Rodrigues em “Moendas”: “Eles transitam sonhos parasitas/ são corpos mágicos/ vivendo o chão espinhoso anestesiador” (RODRIGUES, 2013, p. 35) ou no poema “Futuro”: “Abraçam-se/ beijam-se paladares de um novo dia/ quem são estes homens que chocam ovos verdes?/ quem são estes homens negros e mulatos/ varando a lassidão vítrea da paz?” (idem, ibidem, p. 23) desvelam a angústia de defrontar-se com o racismo brasileiro e mostra a sua mensagem corrosiva, assim como o moçambicano José Craveirinha que expande a semântica ao criar imagens surreais: “Noites enjoadas de um milhão de angústias/ racham-me as unhas na lascívia das macias/ paredes de cimento (mentira não são macias) caiado/ e no amoroso cárcere ensurdecedor de silêncios (...)” (CRAVEIRINHA, 1980, p. 15). Ou seja, fica evidenciada a aproximação desse diálogo dos negros brasileiros com as literaturas africanas serve como fator de coragem para a afirmação identitária negra brasileira, que teve a oportunidade de ler obras de Agostinho Neto, como “Poemas de Angola”, aqui publicado pela Codecri, e antologias organizadas por Mário Pinto de Andrade, tais como “Na noite grávida dos Punhais” e “O canto armado”, todos títulos dos anos 1970. Agora, por que esse diálogo encontrado na poesia de Abelardo Rodrigues, em “Cadernos Negros” e em tantos outros escritores dos anos 1970/80 não serve como estímulo para estudos comparativos entre essas literaturas? Até quando ficaremos presos ao referencial modernista para as literaturas africanas? Não seria caminho natural a origem africana de nossos escritores negros para buscar vestígios, investigar semelhanças no texto literário?
Para finalizar, destaco a importância da retomada da obra de um autor fundamental para a literatura negro-brasileira contemporânea, que é Abelardo Rodrigues, dando oportunidade às novas gerações de desfrutar de um momento crucial da poética negro-brasileira e de como a postura combativa deste autor ainda inspira muitos das autoras negras e autores negros que sentem a obrigação do fazer do texto literário como espaço ininterrupto de denúncia do racismo sistêmico brasileiro. “Memória da noite revisitada & outros poemas” é um livro de inquietação, de um poeta angustiado e comprometido com a população negra que utiliza a literatura como arma de combate para uma sociedade justa e igualitária. Após 35 anos, ter a oportunidade de acesso a uma obra completa desse marcante período do movimento literário negro ainda é raro, mas que faço votos para que outras obras sejam reeditadas e outras editoras demonstrem interesse por esse importante trabalho de memória da literatura negro-brasileira. Por enquanto, meus parabéns para Marciano Ventura e o Ciclo Contínuo, e principalmente para Oswaldo de Camargo e Abelardo Rodrigues, dois nomes essenciais dessa trajetória.

Bibliografia:
ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre Arte, Cultura e Literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

ALVES, Miriam. Cadernos Negros (número 1): estado de alerta no fogo cruzado. In: FIGUEIREDO, Maria do Carmo Lanna; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Orgs.). Poéticas afro-brasileiras. 2ª ed. Belo Horizonte: Mazza Edições; Editora PUC Minas, 2012. pp. 221-240.

CRAVEIRINHA, José. Cela 1. Lisboa: Edições 70, 1980.

CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.

NETO, Agostinho. Sagrada Esperança. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1986.

PEREIRA, Amauri Mendes. Trajetórias e perspectivas do Movimento Negro Brasileiro. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

POLLAK, Michael. Estudos históricos. Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.


RODRIGUES, Abelardo. Memória da noite revisitada & outros poemas. 2ª ed. São Paulo: Edição do Autor, 2013.