sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Andes Chivangue – A Febre dos Deuses


Andes Chivangue – A Febre dos Deuses

Por Ricardo Riso

Logo em sua estreia literária com o livro de contos “A Febre dos Deuses”, o jovem Andes Chivangue já foi galardoado com o Prêmio Revelação Rui de Noronha, atribuído ao autor pelo Fundo Nacional para o Desenvolvimento Cultural (FUNDAC), em 2001. Anos depois, Chivangue parte para a poesia e lança o denso e promissor “Alma Trancada nos Dentes”, obra que foi lançada em 2007 e lhe valeu uma menção honrosa no Prêmio José Craveirinha, que é o maior galardão moçambicano de literatura. Em 2008, reedita, sob a chancela da Índico Editores, o seu “A Febre dos Deuses”, com ilustrações de Lénio Ussivane e prefácio do consagrado Ungulani Ba Ka Khosa, autor de “Ualalapi”.

Consideramos os contos reunidos em “A Febre dos Deuses” uma boa amostragem de novos paradigmas para a literatura moçambicana nestes primeiros anos do século XXI. Andes Chivangue destaca-se no cenário da nova geração moçambicana por apresentar uma escrita segura, concisa, que administra bem a tensão da palavra, da construção de imagens impactantes e virulentas, características comuns tanto a sua prosa quanto a sua poesia. As palavras de Ungulani Ba Ka Khosa no prefácio do livro não são gratuitas, sobretudo registram a certeza de que se está diante de um texto que surpreenderá de forma positiva o leitor:

Senti que na savana da nossa narrativa árvores de outra cor se erguiam. Novos rumos se abriam. A frase curta, limpa, enxuta, entrava de novo na rota dos nossos textos literários. Pensei para mim que os anos de mudança, de angústias, de ideologias esfareladas, de certa paralisia no imaginário literário que a década noventa nos ofereceu, haviam passado, e o novo milénio abria-se com outra cor, outras luzes. Uma lufada de ar fresco entrava no mundo literário. Andes Chivangue tornava-se uma surpresa agradável e estimulante. (CHIVANGUE, 2008, p. 7)

O narrador sinaliza o que encontraremos: “O exercício da escrita é violento” (p. 33). Os contos em sua maioria são pequenos, breves narrativas exaladoras de virulência e uso de termos chulos em que não há aprofundamentos psicológicos nas personagens, marginais em sua maioria, que vivem suas fraquezas e medos de maneira desesperada. As situações são descritas de forma rápida, crua, as sensações atropelam-se com uma agilidade cinematográfica aumentando a tensão pelo que virá. A passagem a seguir é um bom exemplo na qual o marido traído e incapaz de satisfazer a companheira pretende matá-la:

A varrer o quintal, Tongasse pergunta-se por que razão ele anda tão sorumbático desde que foi ao curandeiro. Não lhe dirige a palavra! Passa as horas a afiar aquele pau! E Artur, sentado à sombra, a balbuciar que ela vai pagar caro. Ela a estender as capulanas molhadas. A não compreender por que ele não a toca para experimentar a eficácia do remédio! A olhá-lo. Os olhos a cruzarem-se. Ela a perceber que ele fala sozinho. E ele. Pelo diabo que me pagas caro, sua puta... (p. 17)

A violência é tratada com um incômodo naturalismo, com a frieza e a secura do narrador, conciso nos detalhes, veloz na descrição como se fosse um dos estupradores da passagem a seguir:

Os marginais barraram-lhe a passagem. Quando um deles quis pegar-lhe o braço, ela recuou e tomou posições de combate, berrando que a deixassem em paz. Os marginais gargalharam, divertindo-se com as mostras de valentia da rapariga. O que antes tentara pegar-lhe o braço, caçou-a e abraçou-a violentamente, imobilizando-a. Os outros, como uma matilha de lobos, caíram-lhe em cima, arrancando-lhe a roupa interior e, seguidamente, estupraram-na. Quando terminaram ela ficou ali, estatelada de pernas abertas, com o sexo transformado num coágulo de sangue. (p. 11-12)

Apesar de ser um jovem escritor, Chivangue apresenta uma linha narrativa desassombrada da história literária moçambicana, comportamento que o conduz a ser ousado, a investir em experiências estético-formais e diálogos com técnicas vanguardistas do passado, como a escrita automática surrealista e o uso constante da onomatopeia em “Notas Soltas”. Devemos ressaltar, e fazendo uma ponte com a atualidade, que o estilo sucinto e bastante fragmentado de Chivangue – exemplos são os contos “Veludo Subterrâneo” e “A Nau dos Inocentes” – é de extrema acessibilidade a novos meios de divulgação literária como os blogs na internet.

Sem medo de experimentar, possuidor de uma “autoridade literária inquestionável” (p. 33), o ato da escrita e o que escrever no tempo em que vive diante de uma imensa literatura ocidental é discutido pelo narrador em crise, típico homem da pós-modernidade, tema que foi trilhado com brilhantismo pelo cabo-verdiano Arménio Vieira no romance “No Inferno”, no qual a personagem chega à conclusão que não há mais o que escrever, pois tudo já tinha sido escrito em tempos passados:

O exercício da escrita é violento. Quantos textos comecei e o fim só a lata de lixo conhece? Quantas personagens? Cenários? Imagens? Deitei fora! E tudo aquilo são pedaços de mim. Meu sangue deitado fora. E não obstante essa sangria, tenho a impressão de que tudo o que tento escrever já foi escrito antes. Definitivamente, tenho de me render à grandeza dos gregos. Ou melhor, dos que estiveram antes de mim. Vivo um tempo de silicone. Em que tudo é sintético. (p. 33)

Arriscar-se no gênero, experimentar formas estimula o autor a criar contos intertextuais como em “Veludo Subterrâneo”, “Terra de Exílio” e “Cidade Cinzenta”. Nesses, um personagem (escritor), tal como Ovídio, é obrigado a viver o degredo após escrever um livro incômodo para a ordem estabelecida, sendo condenado ao ostracismo em um lugar minúsculo e distante. Lá, convive com desajustados e loucos em meio a uma rotina imutável. Até que mata uma senhora e é preso. A partir daí, estranhos acontecimentos ocorrem na cidade. O meio natural começa a agir para o fim do homem. A cidade passa a ser tomada por uma poeira sem fim, obrigando os moradores a abandoná-la. Na fuga, esquecem o escritor preso em sua cela. A passagem acima é uma metáfora da própria condição do escritor enquanto intelectual na sociedade contemporânea como assim o quer o poder estabelecido: exilado, isolado, esquecido.

Com ambiência no meio urbano, os contos narram histórias do cotidiano deflagradoras de atitudes extremas, de roubos, de violência desmedida, de seres humanos que vivem no limite da sobrevivência, sem maiores perspectivas em relação à vida, pois, em muitos casos, espantar a fome é a prioridade.

Nessa perspectiva, as mulheres são tratadas como objeto, humilhadas, estupradas e obrigadas a prostituir-se como forma de sustentar a família: “Enquanto ela esteve de cama, naquela casa não se comia nada senão raízes secas.” (p. 12). Ou ainda na triste história do alcoólatra João Namburete, que afoga a miséria da sua vida no vício e acaba por assassinar sua companheira, após esta, em um ato de desespero com mais uma bebedeira do marido, pregar-lhe uma mentira – “Talvez ficasses feliz se soubesses que me deito com os teus amigos para que tu e estas crianças possam comer” (p. 12). Retrato de uma sociedade machista que se julga no direito de tirar a vida das mulheres. Nada diferente do que ocorre no Brasil, infelizmente.

Dentro da trágica realidade da violência doméstica, ela ganha contornos ainda mais assustadores quando associada ao consumo desenfreado da sociedade contemporânea como inferimos no conto “A Aquisição”, que sangra os olhos ao retratar a crueldade cega e desmedida de um pai ao castigar seu pequeno filho que havia destruído o sofá novo da casa, sonho de consumo do progenitor: “Diogo vivia em função daquela aquisição” (p. 40). A consequência: as duas mãos da criança foram amputadas. Na sua inocência, quando rever o pai a criança suplica: “Pai, devolva-me as mãos, nunca mais vou cortar os sofás de casa” (p. 42). Assim termina o conto, como o mais forte dos socos desferidos em nossas faces por um pugilista enfurecido.

Em uma sociedade desestruturada, os loucos ganham destaque nas curtas narrativas de Chivangue. Temos o louco que afirma ter assassinado Samora Machel em “Os Alienados” ou o outro que aguarda os poetas Arthur Rimbaud e Mallarmé que trarão um livro de poesia escrito por Jesus Cristo no conto “A Espera”. Sendo assim, não há melhor metáfora para a voracidade dos tempos atuais, voracidade que conduz à loucura e que vem desde a época da guerra civil moçambicana, e que a personagem Abreu Repolho expressa bem. Este, ao ser atacado por um cão, resolve contra-atacar “e ferrou-lhe uma dentada. Algum tempo depois, Abreu começou a manifestar indícios de raiva. Uivava durante a noite e expunhase ao frio congeminando planos de proclamar uma República Canina. A raiva foi curada mas o homem ficou psiquicamente instável” (p. 26).

Entretanto, o ápice desses contos, em nosso entendimento, encontra-se em “A Busca do Sonho”, narrativa que apresenta um menino que possui o insistente desejo de conhecer os EUA. Desestimulado por todos, o miúdo um dia entra por acaso em um comboio:

Ao lado do miúdo estava sentada uma velha cega que perguntava constantemente pelo seu neto, Jaimito, que a abandonara. Um jovem que tentava dormir, sentindo-se incomodado, disse àquela que o rapaz regressara há muito, que estava mesmo ao seu lado. A velha apalpou-o incrédula. Tocou na mão do moço desatando a chorar de felicidade.
— Voltaste, meu neto. És mesmo tu? E eu que duvidei da tua palavra…
O rapaz, de tanta estupefacção, não conseguiu dizer nada. Mas, estranhamente, no fundo do seu peito, ardia-lhe a certeza de que aquela velha o levaria à América dos seus sonhos. Sorriu para ela e disse:
— Sim avó, voltei. (p. 45)

E é assim, na esperança de um futuro promissor que somente o sonho conduzido pelo poder do texto literário proporciona, nos encantamos com a mensagem de esperança a unir vidas solitárias rumo a um recomeço digno e fraterno, combatendo as agressivas adversidades do cotidiano nessa constante e surpreendente encenação que é a vida.

Concluímos que a breve, atribulada e sinuosa travessia de “A Febre dos Deuses” revela os males que dilaceram a contemporaneidade em uma narrativa angustiante, atormentada e corajosa, sobretudo, concisa, simples e direta, qualidades que mostram o pleno domínio do ofício deste jovem. A leitura deste pequeno livro confirma que, diferente da cidade que virou pó, a literatura moçambicana está longe de morrer e Andes Chivangue é uma das estrelas a iluminar o tortuoso caminho da renovação.

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