Metaliteratura em “No Inferno”
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário cabo-verdiano A Nação, n. 287, de 28 de
fevereiro de 2013, p. E18
Um escritor é
convidado por um mecenas para escrever um romance. Para tal empreitada é
enclausurado em uma casa que possui uma vastíssima biblioteca, mas para ter sua
liberdade de volta, tem um ano para fazê-lo e necessita que esse romance seja
considerado excelente por um júri. Caso este o avalie como uma obra prima, imediata
a libertação. Como alternativa a essas exigências, o escritor pode decifrar
incontáveis códigos de vários cacifos, porém é logo desencorajado em razão do
tempo que pode levar para atingir sua meta.
As condições
inquestionáveis transformam-se no inferno ao qual se encontra o
personagem-narrador-autor deste (não)romance realizado por Arménio Vieira: “No
Inferno” (Praia, Mindelo: Centro Cultural Português, 1999). A obra de Arménio
caracteriza-se pelo esgarçamento das fronteiras literárias comuns ao sistema
literário cabo-verdiano, afastando-se, quando muitas vezes, subvertendo o
legado claridoso, ou melhor, um anticlaridoso como bem apontou José Luis
Hopffer C. Almada. De sua lavra, dentre outros, “Poemas”, “O eleito do Sol” e “MITOgrafias”,
além da participação em jornais e revistas desde os anos 1960. Galardoado com
Prêmio Camões em 2009.
Em “No
Inferno”, Vieira vai ao extremo da metalinguagem ao realizar um “romance” no
qual a maior homenageada é a Literatura, principalmente a ocidental, com
incontáveis referências aos cânones – Homero, Dante, Shakespeare, Rimbaud – e
personagens consagrados ao longo dos anos – Fausto, Godot, Robinson Crusoé,
Romeu, Ulisses –, em uma enorme colcha de retalhos, fragmentos que se fundem,
refundem numa história assaz criativa acerca da condição desesperada de um
escritor, originalmente poeta, para cumprir a sua tarefa.
Assinaláveis
as ocorrências de natureza autobiográfica ao longo do texto, a ausência de
memória identitária do narrador-personagem e a maneira habilidosa e envolvente
como o autor conduz o leitor a esse jogo. Por outro lado, da imensa biblioteca
à disposição do personagem surge a surpresa com a lembrança de livros inteiros,
transcrevendo-os. É a ironia, figura de retórica tão característica na obra de
Vieira. A partir daí, a frustração com o que escrever, uma vez que o gênero
romance se esgotou.
Delírios
desordenados aparecem em diálogos absurdos aos quais Robinson – que
transmuta-se em Leopold, Romeu, Safo, seja lá quem for – quando desanda a
escrever não cria romances, mas contos, pequenas histórias. A narrativa avança
nas intertextualidades, mas, questiona-se: e o romance, quando começa a
escrevê-lo? Cada vez mais rápida e inusitada segue a narrativa e o leitor à
espera de algo que não acontece. O que, de maneira nenhuma, gera frustração a
quem lê, mas sim satisfação com a inventividade de “(u)m escritor talvez
inconcebível fora de uma literatura-metalinguagem”, em feliz assertiva da
prefaciadora Clara Seabra.
Arménio
Vieira vai ao extremo do que a literatura pode oferecer como revelação do mundo
e de transformar cada um de nós a partir de dentro, como bem afirma Tzvetan
Todorov em “A literatura em perigo” (2010). A literatura pode muito, Vieira
sabe e faz isso muito bem a partir de um imenso – por vezes dá impressão de
inesgotável – repertório, construindo intertextualidades que cairiam fáceis na
pura vaidade e suposta complexidade oca da maioria dos autores contemporâneos.
Entretanto, Arménio não é um escritor narcisista e submete o fazer literário à vanglória.
Sendo assim, consegue estremecer o leitor com uma inesgotável capacidade de
surpreendê-lo a partir de referências díspares, de Walt Disney a Dante, passando
por Goethe, James Dean, Safo e Michael Jackson, e assim alcança uma
metaliteratura com a construção desse envolvente (não)romance “No Inferno”.
Da metáfora
da clausura na ilha à clausura do escritor para escrever, do esgotamento do
romance ou não, Arménio Vieira, como o próprio sinaliza em Nota Prévia, cultiva
o seu jardim, assim como Hemingway, Camus, García-Márquez e Saramago; e conforme
estes, saiu-se muito bem.
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