Eulalia Bernard (Costa Rica)
Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário
cabo-verdiano A Nação, n. 293, de 11 de abril de 2013, p. E21.
As histórias das nações do continente
americano são marcadas pelo silenciamento da participação dos negros na
construção desses países. Retirados à força da África, a presença negra é
mencionada durante o absurdo da violenta escravidão, depois com os processos de
abolição, porém mantém-se silêncio sepulcral à revolução dos negros escravizados
no Haiti (1804) e posterior expulsão dos colonizadores franceses. Uma
humilhação para europeus e elites coloniais temerosos que uma onda
revolucionária negra expandisse pelas Américas, que legou ao ostracismo para o restante
do mundo a digna revolta antiescravagista liderada por Toussaint Louverture.
O cânone das literaturas americanas participa
desse processo de ocultar os negros tanto nas personagens como na autoria. Em
razão disso, uma das funções do texto literário produzido por negros é o seu
caráter testemunhal, revisitando as rasuras da história, rompendo com os
estereótipos impostos pelo preconceito racial, exigindo o reconhecimento da
dignidade dos negros e da sua contribuição na formação de seus países.
Na Costa Rica, pequeno país da América
Central, não poderia ser diferente e Eulalia Bernard (1935) é um nome que se
impõe ao romper com essa perspectiva. Nascida em Limón, filha de jamaicanos,
professora de literatura, criadora da cátedra de estudos afro-americanos na
Universidade da Costa Rica em 1981.
“Ritmohéroe” (Editorial Costa Rica, 1982),
livro de estreia desta poetisa negra, a primeira a ter publicação individual no
seu país, procura retratar a peculiar presença dos negros na Costa Rica e os
embates para construir uma identidade costa-riquenha. O prefácio de Quince
Duncan revela que a diáspora negra na Costa Rica começa com a chegada de negros
antilhanos – maioria jamaicanos – para construção de ferrovias ao final do
século XIX. Depois, os negros passam a trabalhar no cultivo da banana. Essa primeira
geração concentra-se na cidade de Limón, comunica-se em inglês e objetiva juntar
economias para retornar à Jamaica. A partir de 1930, o país atravessa grave crise
econômica, o regime fascista impõe o uso do idioma espanhol e força a
assimilação cultural dos negros. A segunda geração relaciona-se com a Jamaica
como um Éden, Limón como sua cidade e que guarda certos valores da cultura
negra. Em 1960, a geração seguinte reage a esse processo, busca suas raízes e a
contribuição dos negros para o país. Desde então esse processo vem sendo
fortalecido pela quarta geração já nos anos 1980, tendo na inserção às
universidades a marca para a disputa de novas epistemologias para pensar a
população negra na Costa Rica.
Na
sua poesia a fé católica surge não como resignação, mas como forma de
questionamento diante das injustiças sociais: “Y el negro rezó/ pero Jesús no
lo oyó/ y el negro rezó/ pero La Virgen no lo vio/ rezó el negro/ el negro
rezó/ (...) el negro no más rezó/ el negro el fusil tomó/ el negro habló y habló/
Jesús lo oyó/ la Virgen lo vio/ con su voz de fusil/ y su estómago de reloj”. A urgência de mudanças apresenta-se na brevidade dos
versos a partir da não manifestação de apoio das figuras bíblicas de Jesus e da
Virgem Maria, que podem ser transpassadas para a indiferença de uma sociedade
calcada na exclusão. Resta à população negra a voz insurgente para a emergência
de seu tempo.
Dentre as marcas culturais dos negros na
Costa Rica, a festa do carnaval é celebrada em alguns poemas como o momento de
liberdade e gozo para os negros: “El Carnaval,/ vamos, veamos los negros
brincar,/ que trabajo no les vamos a dar.// El Carnaval,/ siéntete rey o
reina del mar,/ negro!, es tu única oportunidad”. Realidade comum lá e cá.
O amadurecimento identitário, o
pertencimento à nação e o mito do paraíso perdido se dá em “Requiem a mi primo
jamaiquino”: “Soy negro del campo,/ del Valle La Estrella./ Soy uma estrella
negra/ em el flamante Blanco, azul y rojo/ de nuestra bandera”. A ruptura com o
motivo edênico da Jamaica para a primeira geração de negros na Costa Rica surge
com a identificação ao novo lugar, ao Valle La Estrela, e com o símbolo
nacional da bandeira. Com isso, na zona de tensão caracterizada o
entrecruzamento cultural aparece no uso da língua para a comunidade de Limón,
ora espanhol, ora inglês, ou no uso do ‘spainenglish’: “Sí Seño;/ soy
costarricense,/ aunque apellidado este/ con ‘insky’, ‘man’, o ‘Le’”.
É na transgressão da ordem estabelecida
que a poesia de Eulalia Bernard desvela a participação dos negros na formação
identitária costa-riquenha, tendo na ancestralidade do tambor a subversão da
palavra escrita, da religião, da língua. A força da poesia ao ritmo do tambor,
signo marcante da poética negra presente tanto no brasileiro Carlos de
Assumpção quanto no martinicano Aimé Césaire, ou ainda no moçambicano José
Craveirinha: “Mi poesía es um tamborileo. (A veces fuerte) con ritmos
multiplicados por el fervor fuerte./ (...)En mi poesía el tambor es lira y el
ritmo es el soneto. Yo soy la mambo del culto ancestro// Sé decir sí, sé decir
‘yes’. Sé decir lo que quiero en las lenguas que prefiero, con el habla del
tambor./ En mi poesía, cada palabra es un dios. Cada dios es un ritmo, cada
ritmo cópula, cada cópula un canto./ Mi poesía es. Hazte tambor y amarás mi
canto”.
Estes são rápidos momentos da poética de
Eulália Bernard, integrante dessa poética negro-diaspórica que incomoda com
seus deslocamentos estéticos, semânticos, sintáticos, os cânones literários.
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