domingo, 15 de setembro de 2013

Entrevista Ricardo Riso para jornal A Capital (Angola)


Entrevista de Ricardo Riso para o jornal “A Capital”, de Luanda, Angola, com a primeira parte publicada no caderno Artes, de 27 de julho de 2013, pp. 32-34, e a derradeira parte no mesmo caderno, de 17 de agosto de 2013, pp. 32-33.

 
Pergunta:- O ministro da Educação de Angola, Pinda Simão, disse, no dia 10 do corrente mês, na sede da União dos escritores Angolanos, que Angola ainda está aprofundar a reflexão sobre o acordo ortográfico que considera positivo, mas que pensa haver aspectos dos povos de Angola que devem ser tidos em conta e que o acordo poria de parte. O que tem a comentar sobre este facto?

O novo acordo ortográfico gerou enorme polêmica aqui no Brasil, muito pela sua ineficiência e que em  nada contribui para solucionar o problema da educação no país. Trata-se de algo menor diante de tantas carências que temos e que precisam de soluções emergenciais nas áreas de saúde e educação. Creio que em Angola seja assim também. Isto é apenas mais um dado que reflete o total descompasso do brancocentrismo da elite com o restante da população, assim como a manutenção da dominação pela língua; a língua como processo de seleção e exclusão. Além disso, há o agravante dos gastos estratosféricos com as reedições de livros didáticos para que estejam conforme as novas regras. Enquanto isso, escolas permanecem desaparelhadas e os professores precisam usar a criatividade para ter condições mínimas de trabalho.

P:- Será que podemos estar diante de uma crise sobre a ratificação e implementação do acordo ortográfico na lusofonia?

Precisamos sim questionar este acordo. Por que temos que falar e escrever da mesma maneira? Por que a referência/submissão a Portugal? O que é lusofonia? Há espaço para o negro na lusofonia? A quem interessa? Para que precisamos de um novo acordo? Não estamos nos comunicando? Precisamos de menos ordens, normas, obediências e afins.

P:- Como classifica as literaturas africanas de língua portuguesa?

Toda classificação é arbitrária e a maneira vaga como foi colocada a pergunta deixa-me em difícil posição. Penso que podemos problematizar esse grande guarda-chuva denominado literaturas africanas de língua portuguesa. Ser “tudólogo” em literaturas africanas exige que escolhas sejam feitas. Sendo assim, começamos a perceber as exclusões. As literaturas de Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe são as maiores prejudicadas nesse processo.

Pensando na Academia, no caso a brasileira, por que não podemos estudar a literatura angolana, a cabo-verdiana, a moçambicana, a guineense ou a são-tomense, e a partir daí nos aprofundarmos em cada uma delas? Outra questão: por que somente as literaturas produzidas em língua portuguesa? Por que esse neocolonialismo acadêmico? Já que por exigência acadêmica somos obrigados a saber inglês, francês, espanhol, entre outras línguas europeias, seria interessante que o pesquisador das literaturas de cada país incorporasse a literatura angolana em quimbundo, a literatura cabo-verdiana crioula e assim em diante. No caso de Cabo Verde há uma vasta produção em crioulo que é ignorada pela crítica brasileira. Por que isto? Penso que é urgente rever esta posição, até como respeito ao pluralismo linguístico desses países africanos.

P:- Acha que elas estão no mesmo nível de concepção estético-discursiva, divulgação de livros e autores no Brasil? Se é que existe essa divulgação na terra do rei pelé?

Dentro das suas especificidades temporais e históricas, elas têm o seu valor no plano estético, basta partir para o texto literário. Creio ser desnecessária a comparação. A respeito da divulgação, muito já foi feito e a Lei 10.639/2003 (obriga o ensino de História e culturas africanas e afro-brasileira em todo a educação básica) foi um grande estímulo e incentivador para o mercado editorial, assim como para os professores que passaram a se interessar por essas temáticas. Há dez anos, chegávamos às livrarias e encontrávamos os livros de autores africanos em lugares pouco privilegiados. Hoje, temos bancadas ou estantes sobre assuntos africanos e alguns autores luso-descendentes ocupam posições de destaque nas vitrines. Importante frisar o trabalho crítico desenvolvido nos cursos de pós-graduação ao longo dos anos que contribuíram para o desenvolvimento desse processo. Porém, ainda estamos distantes do que seria uma boa divulgação de autores africanos, muito em razão da restrição ao reconhecido cânone luso-descendente do mercado editorial e das universidades. E no caso angolano, isso é gritante. A pluralidade de autores está longe de ser atingida, levando em consideração critérios como raça e gênero. Para conhecer outros autores, é preciso que o pesquisador saia da inércia e se transfigure em um arqueólogo. Hoje temos o Facebook, revistas como a Literatas e blogs como o de minha autoria. Buscar outros autores que não constam no cânone estabelecido, pode trazer surpresas agradáveis.

P: Quais os nomes que mais lhe ressalvam nesta literatura, tanto na velha como nova gerações?

Creio que sua pergunta esteja direcionada à literatura angolana. Bom, é importante para o pesquisador conhecer o sistema literário em sua plenitude. Hoje vejo nos congressos que participo poucos trabalhos a respeito dos textos fundacionais da literatura angolana, sinto falta de Cordeiro da Mata, Castro Soromenho... Necessário olharmos para o passado e resgatarmos nomes que foram ostracizados e não ficarmos dependentes do cânone. Isso é um ponto essencial para o investigador. Avançando um pouco no tempo, deparamo-nos com a pouca referência ao nome de Viriato da Cruz, por exemplo. Lembrando que falo daqui do Brasil. A geração dos anos 40/50 é essencial. Não falar de literaturas africanas sem mencionar essa época, em particular, a antologia “Poesia negra de expressão portuguesa”, organizada por Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro é um erro gravíssimo. Tenho especial carinho por esse período. Um texto que gosto de lembrar e divulgar é o “Mestre Tamoda”, de Uanhenga Xitu. Um personagem fascinante!

Com receio de esquecer algum dos autores atuais, mas já como uma longa trajetória, aprecio muito e vejo como nomes incontornáveis da poesia Trajanno Nankhova Trajanno, Lopito Feijoó, João Tala, João Maimona, Conceição Cristóvão, José Luis Mendonça... na prosa, os contos de Tala, Roderick Nehone, o Carmo Neto de “Degravata”... dos mais novos, gosto particularmente de Abreu Paxe, inclusive as análises críticas deste, Akiz Neto, Antonio Pompílio, Pombal Maria, Nok Nogueira... mas, vejo muita pretensão em outros nomes que não atingem o conseguimento estético almejado, tornando suas poéticas exaustivas... agora, o gênero é que fica comprometido na literatura angolana... houve Alda Lara, agora a Paula Tavares, a Isabel Ferreira... a pouca visibilidade da escrita feminina angolana é algo que precisa ser tensionado, principalmente na constituição de seu cânone e de antologias angolanas recentes. Do publicado aqui não preciso dizer, muitos brasileiros já dizem – ou só dizem – sobre essas obras e autores.

 
P:- Falando das novas gerações, acredita que as novas gerações tem pouco ou nada a oferecer a literatura angolana? Até que ponto está afirmação serve de incentivo aos novos autores angolanos?

Toda nova geração tem algo a oferecer e o tempo é o melhor filtro. Caso contrário, pararemos no tempo. O que é necessário é que os jovens literatos leiam, leiam muito dos grandes nomes espalhados pelo mundo e também conheçam os grandes autores angolanos. Mas, uma leitura concentrada, assim como o ato da escrita... sem pressa, estudada... vejo como o maior problema entre os jovens é a rapidez em publicar. Talvez pela facilidade da internet, o “curtir” do Facebook, necessidade de visibilidade, status... é um caminho perigoso. A palavra poética precisa ser lapidada com calma e é essencial a troca com outros autores.

P:- Em Angola temos estado a assistir um forte conflito de gerações. Até que ponto esse conflito é prejudicial e/ou ajuda os novos autores?  

A literatura é um espaço de poder, não podemos perder isto de vista. Sendo assim, os conflitos sempre existirão e serão múltiplos: de tendências literárias, gênero, classe, raça, etário. Temos que estar atentos às reivindicações dos mais novos. Há o ímpeto da juventude, que pode ser bom ou ruim, e inserido nisso podem estar alguns problemas da máquina literária, tais como a dificuldade em publicar, os prêmios literários viciados, invisibilidade nas tertúlias e cadernos literários...

P:- Que responsabilidade tem os escritores de gerações consolidadas  na afirmação de novos autores e/ou gerações?

A responsabilidade desses autores está presente nas suas obras, nos desafios com a linguagem e o compromisso com a palavra depurada que cada um se comprometeu; é responsabilidade sim dos mais novos conhecerem essas obras. É claro que o contato e o incentivo aos mais novos é sempre um fator relevante, de apoio e fortalecimento para os mais novos. Penso que é sempre frutífero o convívio entre os escritores de diversas gerações. Não se deve separá-los ou alimentar inimizades.

P:- Enquanto isso, cada vez é mais visível a promoção de autores africanos luso-descendentes. O que se passa? será que há descriminação na promoção das nossas literaturas a nível de Portugal e Brasil?

Em 2012, eu e a pesquisadora Geny Ferreira Guimarães (doutoranda em Geografia/UFBA) apresentamos, na UFOP/Minas Gerais, um exaustivo levantamento de autores africanos de língua portuguesa publicados no Brasil, intitulado: “Mercado editorial brasileiro: seus entraves para a aplicação da lei 10.639/2003 e o permanente não reconhecimento do negro escritor”. Nosso levantamento reuniu 115 livros das literaturas africanas de língua portuguesa (romance, contos, poesia e infantil) lançados de 1962 a outubro de 2012. Da literatura angolana levantamos 62 livros, sendo que 48 obras são do cânone luso-descendente (Pepetela, Ruy Duarte de Carvalho, José Eduardo Agualusa, Luandino Vieira e Ondjaki). Ou seja, 77% da literatura angolana publicada no Brasil durante o período pesquisado resume-se a cinco autores, quadro ainda mais agravante após 2003, ano da lei 10.639. E não há como se estranhar este dado? Onde está o escritor negro angolano? Nos catálogos das editoras brasileiras é que ele não se encontra. Quem racializa a questão? E a situação só não atinge algo perto do zero porque editoras especializadas em temáticas afro-brasileiras se preocupam com essa disparidade, casos da Mazza, Nandyala e Pallas. Por outro lado, hoje temos editoras com forte suporte financeiro, de divulgação e obras com qualidade gráfica invejável que se escoram no conceito da lusofonia. Entretanto, a lusofonia nada mais é que a renovação da discriminação ao negro escritor. Enquanto elas tentam fugir da estigmatização de autores africanos, eliminam as representações nacionais e continentais e incorporam um discurso diluído na lusofonia. Essas novas editoras mantêm a discriminação de raça e de gênero, fato já denunciado anteriormente pela Drª Laura Cavalcante Padilha (UFF) no seu brilhante artigo “A diferença interroga o cânone” que, ao se referir à constituição do cânone das literaturas africanas, cita as antologias “No reino de Caliban” (1975), de Manuel Ferreira, e “Entrevistas com Escritores” (1991), de Michel Laban, diz o seguinte: “Lembrando o fato de que o acervo crítico dessas literaturas se ter forjado inicialmente fora da África – na Europa e nas Américas, com Portugal e Brasil à frente –, começo a questionar até que ponto, o cânone ‘consagrado’ por outras vozes que não as africanas, submeteu-se aos mesmos mecanismos de dominação e poder que sempre tiveram como meta elidir as diferenças, sobretudo se o objeto recortado são questões como de gênero e raça” (2002, p. 164). Mudamos nesse sentido? De maneira nenhuma e só vamos fortalecendo a exclusão. E se analisarmos teses, dissertações e comunicações nas universidades e congressos de literaturas africanas, o que constataremos?

P:- As nossas literaturas africanas de língua portuguesa, francófonas são estudadas nas universidades brasileiras?

Infelizmente, desconheço a respeito das francófonas. De uma maneira geral, escritores e/ou pensadores negros não são traduzidos pelo mercado editorial brasileiro. E quando não são traduzidos, a circulação desses textos é excessivamente restrita. Nesse ponto, considero importante a relação mercado editorial/universidade como forma de práticas de biopoder, o que dificulta a inserção de novos autores e outras bases epistemológicas nas universidades. Quando muito, temos casos isolados como o de Chinua Achebe. Um nome reconhecido no mundo como Wole Soyinka somente teve a sua primeira obra aqui publicada no ano passado. A íntegra de “Cahiers d’un retour au pays natal” de Aimé Césaire somente ano passado ganhou uma edição brasileira. Temos uma obra de Patrick Chamoiseau, de outros negros, mas dispersas nos catálogos das editoras... Nomes consagrados da luta antirracista nos EUA, do Harlem Renaissance, da Negritude, afro-americanos de línguas espanhola, inglesa ou francesa são raríssimos por aqui, assim como de outros países africanos. Até textos de líderes africanos como Amílcar Cabral, Stevie Biko e Samora Machel não são reeditados há anos. Ou seja, essas ausências não são gratuitas. No caso angolano, o livro “Sagrada Esperança”, de Agostinho Neto, foi lançado em comemoração ao primeiro decênio de Angola independente. Desde então...

No que diz respeito às universidades, muito já foi feito nas públicas graças aos esforços e competência dos nossos professores consagrados que todos nós sabemos seus nomes. Entretanto, há uma realidade entre os grandes centros universitários de literaturas africanas de língua portuguesa e outras universidades públicas e particulares, distantes do eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Belo Horizonte. Ainda ocorre certa rejeição às literaturas africanas, quando muito são encaixadas em “literaturas de expressão portuguesa”. Importante frisar que são raras as disciplinas de literaturas africanas nas grades de graduação dos cursos de Letras espalhados pelo país; nos cursos de pós-graduação a situação é um pouco melhor. Ou seja, já avançamos bastante nesse sentido.

Entretanto, há outro problema no que diz respeito à circulação da crítica literária produzida nos países africanos de língua portuguesa. Sinto falta de maior contato de ensaios críticos de angolanos como Luis Kandjimbo, Francisco Soares e Abreu Paxe, dos moçambicanos Francisco Noa e Lucilio Manjate, do cabo-verdiano José Luis Hopffer Almada e das epístolas de Timóteo Tio Tiofe. Esse estranho distanciamento reflete-se na crítica produzida no Brasil. Quais serão os seus motivos?

P:- Quais são os autores mais referenciados e porque?

As duas últimas edições do Encontro Internacional de Professores de Literaturas Africanas (UFRJ, 2007 e UFOP-PUC/MG, 2010) oferecem um bom parâmetro para percebermos o que vem sendo estudado pelo país. O cânone luso-descendente, e acrescento o moçambicano Mia Couto, foi predominante nas comunicações. Por isso, insisto na relação universidades/mercado editorial. A justificativa cômoda diz que são os autores publicados aqui. Mas, não causa estranheza as análises críticas concentradas nos escritores luso-descendentes? Estamos falando de literaturas africanas, e até quando o escritor luso-descendente será o porta-voz dessas literaturas? O que essa ausência quer dizer? Como há um desprezo das universidades brasileiras por nossa literatura negra, será que o nosso pesquisador carrega o seu olhar brancocêntrico para as literaturas africanas e isso o impede de investigar os textos de autores negros africanos? Com a doença psíquica do racismo, o pesquisador branco, instruído desde os bancos escolares a não reconhecer o negro como escritor, ao lidar com as literaturas africanas percebe-se diante de um dilema que tem dificuldade de resolver, logo, escora-se naqueles que lhe são fenotipicamente parecidos e ideologicamente próximos. Talvez por isso o discurso da mestiçagem constante na obra de Mia Couto ofereça o conforto necessário e seja ovacionado por aqui. A internet facilitou o contato entre os pesquisadores e os escritores africanos. Podemos ser independentes ao mercado editorial. Hoje nos relacionamos diretamente com os autores. Minha trajetória é um exemplo disso. Entre livros e arquivos em pdf, tenho um pouco mais de duas centenas de títulos de prosa e poesia graças a generosidade dos escritores, que agradeço a todos. Quem presta um excelente trabalho para o deslocamento do cânone é a revista moçambicana “Literatas”, idealizada por jovens autores que perceberam essas restrições e decidiram encarar a ordem vigente.

No que diz respeito às pesquisas nas universidades, acompanho com muito interesse as investigações da Drª Lívia Natália, Dr. Jesiel Oliveira e Dr. José Henrique Freitas, todos da UFBA, assim como o Dr. Amarino Queiróz (UFRN) e a Drª Ana Lucia Silva Souza (UNILAB). Esses competentíssimos pesquisadores encontram-se à margem dos grandes centros e propõem linhas investigativas “incomuns” e comparativos não estimulados no Sudeste como entre as literaturas africanas e a literatura negro-brasileira. Além disso, ampliam as discussões ao apresentarem outras bases epistemológicas, oxigenando as literaturas africanas. Também não posso esquecer da trajetória pioneira da relação das literaturas africanas com demais literaturas negras realizadas pela Drª Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC-MG) e Drª Florentina Silva Souza (UFBA). Vejo como a melhor maneira de homenagearmos nossos principais pesquisadores é com a expansão e a diversidade nas linhas investigativas, e não a cômoda reprodução do que já é/foi feito com excelência por eles. Urge a cura do complexo de papagaio residente na maioria dos jovens doutores e mestres de literaturas africanas no Brasil.

Importante frisar que a questão de gênero de certa maneira é melhor resolvida. Temos Paulina Chiziane, Paula Tavares, Isabel Ferreira, Vera Duarte, Dina Salústio, Odete Costa Semedo, Conceição Lima, entre as contemporâneas... nomes restritos, mas, e para não me acusarem de essencialista, destaco as ausências de Maria Helena Sato e Carlota de Barros, duas escritoras cabo-verdianas de grande valor. Porém, e o negro escritor?

P:- Ricardo Riso é um grande activista de luta contra o racismo na cultura, especificamente na literatura, há racismo na literatura brasileira e como vocês combatem esse fenómeno?

Sou apenas mais um negro ciente da minha condição enquanto negro em uma sociedade racista como a brasileira, que conseguiu não se tornar mais um dado estatístico do genocídio que afeta a juventude negra; ciente do corpo-natureza pré-concebido pelos olhares sociais que vêm em mim os atributos físicos e sexuais, jamais o intelecutal ou relacionado a qualquer atividade que exija o mínimo de reflexão; ciente dos entraves no mercado de trabalho; ciente das dificuldades dessa condição de ser negro nos bancos escolares; ciente dos entraves de ser um pesquisador negro com temática negra no território hostil que é a universidade brasileira, da ousadia de deslocar-me de objeto para sujeito, a todo instante sendo chamado atenção por ostentar um discurso militante, como se essa violenta censura epistêmica não fosse militante; um negro atento às violências no campo do simbólico nos meios de comunicação; e, desde sempre, temeroso com a próxima blitz policial, já que minha cor representa a marca da suspeita. Conforme o poema de Éle Semog, “Do Ser”: “Sou universalmente negro/ Na ponta deste lápis/ No âmago desta alma// Sou universalmente livre/ Em cada canto/ Desta raça/ Em cada labirinto desta prisão”. Essas são algumas das questões que passam pelo cotidiano de um negro inserido na farsa da democracia racial.

Sendo assim, quando você me pergunta se há racismo na literatura brasileira, eu preciso dizer que o Brasil republicano, desde sua proclamação, não preocupou-se em inserir os negros na sociedade, mas sim em como resolver o problema dos negros, tanto que “intelectuais” da época apostavam em diferentes formas de embranquecimento da população: pela entrada de imigrantes europeus, pelos cruzamentos inter-raciais em que o fenótipo do europeu prevaleceria, pela esterilização compulsória e permanente, pelo abandono à própria sorte dos negros e sem condições de emprego ou acesso à saúde, ou educação. Os responsáveis atuaram em múltiplas áreas e até hoje são “nomes respeitáveis do pensamento nacional”, dentre outros, Silvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Renato Kehl, Monteiro Lobato, Belizário Penna... A doença psíquica do racismo é tão forte que Joaquim Batista Lacerda representou o país como “delegado oficial do Brasil” durante o Universal Races Congress, dentre outros presentes estavam Franz Boas e W. E. B. Du Bois, em Londres, em 1911, e teve o disparate de dizer que em menos de um século negros e mestiços desapareceriam da população brasileira. Bom, essa ideia é tão forte e tão presente entre a nossa elite que basta olhar para as novelas brasileiras e veremos que esse ideal ainda é almejado. Ou seja, a literatura brasileira, elitista como é da sua natureza, não pode ter negros no seu cânone. E assim, embraquecem Machado de Assis

Sendo assim, a questão é: o que o leitor angolano conhece da literatura brasileira engloba algum escritor negro-brasileiro? O que o leitor angolano conhece da literatura produzida por negros brasileiros? Mudando um pouco o prisma: o pesquisador brasileiro que estuda a literatura angolana propõe o comparativo com a literatura negro-brasileira? Ou seja, se dependermos daquilo que é reconhecido como literatura brasileira, o leitor angolano jamais conhecerá um autor negro-brasileiro.

As escritoras e os escritores negros para quebrar esse círculo ininterrupto e fechado de exclusão atuam com meios próprios para divulgação, distribuição e formas de atingir o seu público leitor, em sua maioria formado por negros. Sim, existe um leitor negro que a literatura canônica sempre ignorou, pois não percebe o negro como consumidor de literatura nem como escritor. A literatura negro-brasileira visualiza um leitor negro, algo que o cânone jamais conseguiu, por isso, a insistência de personagens negros subalternizados e estereotipados nos textos nacionais, o que reflete as posições étnico-raciais no país. Os autores negros divulgam suas obras nas redes formadas pelos movimentos sociais negros, na internet através de blogs e redes sociais e assim “traficamos” esses livros. Hoje temos editoras próprias, mas boa parte das obras ainda são financiadas pelos próprios autores, as famosas edições de autor. Com o livro pronto, o escritor vende de forma “artesanal”, ou em espaços específicos como a “Kitabu – Livraria Negra”, de Heloísa Marconde e Drª Fernanda Felisberto, no Rio de Janeiro. Outro dado importante para a constituição dessa rede é a publicação coletiva, frisando que a opção pelo coletivo é oriunda da dificuldade de aceitação pelas grandes editoras que não querem ter nos seus catálogos títulos que demonstrem as tensões raciais no Brasil, assim como os altos custos gráficos que são extremamente pesados para boa parte dos escritores negros. Nesse sentido, a série “Cadernos Negros” ocupa lugar de destaque. Desde 1978 que esta série publica negras e negros intercalando poesia em um ano e no seguinte, contos. Cadernos Negros é um referencial obrigatório para o escritor e o leitor negro; em Cadernos Negros deparamo-nos com a diversidade da literatura brasileira. Contudo, apesar de atingir neste ano a 36ª edição, a série ainda enfrenta problemas com a divulgação e distribuição de seus exemplares, contando com as diferentes redes negras do país e no estrangeiro. Uma outra ação que merece destaque é o site “Ogum’s Toques”, coordenado por Guellwaarr Adún e que sou colaborador. A proposta de Ogum’s Toques é divulgar as literaturas negras no mundo, em qualquer língua. Literatura que expõe as dificuldades da mulher negra, do homem negro na diáspora ou em África, estará na Ogum’s Toques. Por um humanismo que contemple as diferenças conforme proclamava Aimé Césaire, pela pluriversalidade contra as restrições da universalidade do sul-africano Mogobe Ramose, Ogum’s Toques representa tudo isso. De suma importância e que não poderia ficar de fora é o portal “Literafro”, organizado pelo Dr. Eduardo de Assis Duarte (UFMG). Neste portal estão catalogados mais de duzentos autores negro-brasileiros com biobibliografias, textos críticos e excertos de textos literários.

P:- Quer dizer que o Canone literário no Brasil é escolhido com base na pigmentação da pele? Quais os grandes autores negros brasileiros?

Você sabia que Machado de Assis era negro? Os autores negros não são inseridos no cânone da literatura brasileira. Os poucos que são aceitos, casos de Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto, têm suas vivências de negros completamente excluídas das análises literárias. São embranquecidos. Convivemos com absurdos de que Machado não tocava na questão racial e olhava com desdém o processo abolicionista. Pura mentira e injúria! O olhar atento de Machado ao problema do negro está presente nos seus romances, contos, crônicas e poemas. O Dr. Eduardo de Assis Duarte fez uma brilhante pesquisa que redundou no livro “Machado afro-descendente”, de 2007. Este livro é ignorado pelas universidades brasileiras. Nele, Duarte demonstra com perspicácia como Machado estava atento aos problemas do negro antes e depois da abolição. Além disso, há uma incapacidade da intelectualidade e dos meios de comunicação de admitirem o nosso maior escritor como negro. No que diz respeito à representação de Machado, recentemente, a Caixa Econômica Federal divulgou um comercial televiso que o ator que representava o escritor era branco, quase um caucasiano. Óbvio que as organizações que formam o movimento social negro protestaram e o comercial precisou ser refeito e foi novamente ao ar com um Machado negro. Precisava disso? O que motiva o embranquecimento do escritor? Já Cruz e Sousa sofre(u) com a doença psíquica do racismo dos críticos literários que insistem na brancura de sua poesia e ignoram os seus diversos poemas que denunciam o racismo e o problema do negro. “Emparedado”, “Caveira” estão entre esses poemas. Chega a ser desonestidade com a obra de Cruz e Sousa falar essas verdadeiras bobagens. Enquanto Lima Barreto muitas vezes é tratado como o louco, o bêbado que não sabia escrever. Todas as características do modernismo brasileiro já estão presentes em sua obra, e ele é considerado um pré-modernista. Por quê? Mas, Lima Barreto denunciou a hipocrisia da elite carioca, e a denúncia do racismo é central em textos como “Clara dos Anjos” e “Recordações do escrivão Isaías Caminha”. Os angolanos conhecem a obra de Lima Barreto?

Necessário destacar que o véu branco à frente da crítica brasileira impediu-a de analisar a ausência do escritor negro e de como a personagem negra era representada na nossa literatura. Somente a partir da análise de brasilianistas que essas ausências na literatura brasileira vieram à tona, casos dos pioneiros trabalhos de Roger Bastide (A poesia afro-brasileira, 1944), Raymond Sayers (O negro na literatura brasileira, 1958), Gregory Rabassa (O negro na ficção brasileira, 1965) e David Brookshaw apresenta “Raça e Cor na literatura brasileira” em 1983. Por causa desse silenciamento da crítica brasileira, os escritores negros, principalmente a partir da geração dos anos 1970, passaram a desenvolver ensaios questionando o cânone literário e a defender a existência de uma literatura negra no Brasil. Desde então, vários autores sentiram a necessidade de entrar para a Academia e realizar esse debate nesse espaço de poder. Conceição Evaristo e Cuti são exemplos de escritores negros que se tornaram doutores em literatura, aquela na UFF, este na UNICAMP, como forma de “legitimar” os seus discursos.

Alguns nomes que posso destacar são os de Luiz Gama, que foi vendido como escravo por seu pai branco, depois tornou-se poeta, advogado e abolicionista. Ele sim o verdadeiro “Poeta dos Escravos”. Momentos pioneiros da literatura brasileira vieram de autores negros: o primeiro romance escrito no Brasil veio de um negro, Teixeira e Sousa, assim como a primeira mulher a escrever um romance foi Maria Firmina dos Reis em 1858. Outros nomes marcantes no decorrer do século XX foram Lino Guedes, Solano Trindade, Eduardo de Oliveira, Oswaldo de Camargo, o fenômeno Carolina Maria de Jesus que vendeu cem mil exemplares da primeira edição de “Quarto de despejo” em 1960, posteriormente traduzido para mais de uma dezena de idiomas. Os angolanos conhecem Carolina Maria de Jesus? Porém, é a partir dos anos 1970, durante a ditadura e lembrando que abordar o racismo enquadrava a pessoa na Lei de Segurança Nacional, e no decorrer dos anos 1980 que coletivos negros começam a se rearticular e destacar seus escritores, caso do Grupo Palmares (Porto Alegre/RS), Gens (Salvador/BA), Garra Suburbana e Negrícia (Rio de Janeiro), Cadernos Negros e Quilombhoje (São Paulo/SP). Literatura e movimento social negro atuam lado a lado e na distensão da ditadura fortalecem organizações como CECAN, MNUCDR, IPCN, SINBA, GTAR e jornais como Árvore da Palavra, do MNU, Tição, entre outros. Os 90 anos da Abolição, em 1978, foi uma data marcante nesse processo. Também temos que considerar as influências e contatos externos: as lutas pelos direitos civis nos EUA e a descolonização dos países africanos, principalmente os de língua portugesa, foram eventos motivadores para os negros brasileiros. Há uma aura de solidariedade negra no Atlântico negro. Assim, nomes como José Craveirinha e Agostinho Neto influenciaram os autores negros brasileiros e contribuíram no resgate de África como capital simbólico para nós. Autores marcantes desse processo são Éle Semog, José Carlos Limeira, Cuti, Jamu Minka, Oliveira Silveira, Adão Ventura, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues, Márcio Barbosa, Jônatas Conceição, Geni Guimarães, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Arnaldo Xavier, Edimilson de Almeida Pereira, Lia Vieira, Ronald Augusto... a partir dos anos 90 consolidam-se Conceição Evaristo, Lande Onawale, Lepê Correia, Cristiane Sobral, Cidinha da Silva...

P:- Um dos principais produtos da relação África- Brasil devia ser a cultura. Acha que o Brasil dá a África em igual proporção ao que a África e países como Angola deram ao Brasil durante séculos, culturalmente?

Dentro do nosso processo de rejeição ao passado africano e ao negro brasileiro, tanto que por aqui transforma-se o que é oriundo da cultura negra em mestiço e assim vira identidade nacional, caso do samba, e assim naturaliza-se certo desprezo das políticas culturais voltadas para os países africanos. Quando acontecem, tendem para a valorização do exótico e das representações estereotipadas. Mas, o que os angolanos conhecem da cultura negro-brasileira? Há interesse desse intercâmbio por parte dos angolanos?

P:-Como a África no geral, e Angola em particular, é vista hoje no Brasil, principalmente pelas Meios de Difusão Massiva, depois do longo tempo de guerra civil?

A visão de África de uma forma geral, e de Angola não foge da extrema estereotipia, da África selvagem que aparece sempre no “Globo Repórter”. Nas escolas temos que começar pontuando que Angola e outros países falam português, que passaram por uma guerra de independência, depois civil... é tudo muito raso por aqui. Exceto os pesquisadores, para a população em geral falar de África ainda é falar de miséria, fome, guerra...

P:- Porquê que os mídias africanos têm dificuldade de penetração no Brasil?

Creio que pelo apontado anteriormente. Não há interesse do Brasil em aproximar-se dos países africanos. E a maioria dos canais que buscam esse contato com os africanos são os que lidam com a cultura negra,

P:-Na relação com as antigas colónias portuguesas, o Brasil supera Portugal, pela influência dos mídias e produtos culturais como a música, cinema, literatura e televisão, além do poder económico. Acha que o Brasil tem aproveitado essa hegemonia e superioridade da melhor forma?

Percebo práticas neocoloniais que em nada favorecem Angola e Moçambique, por exemplo. Para além da nefasta ideologia dos canais de televisão que levam os seus péssimos produtos. Tenham cuidado!

P:- O mundo vive o fenómeno das manifestações anti-governamentais. Na sua observação o que se está passar?

No caso brasileiro, vejo sobretudo a explosão de uma profunda crise de representação partidária e de movimentos sindicais. Após longo silenciamento, o Padrão Fifa estimulou a população a analisar a falta desse padrão nos transportes, na saúde, na educação, nos serviços como saneamento... percebeu o excesso de ordem ao qual estamos submetidos e quase nada em troca. Um pouco de desordem faz bem à saúde democrática, ainda tão fragilizada no país. Chama atenção a heterogeneidade de reivindicações, cenário normal diante de tantos absurdos e governança voltada para a elite. E as pautas negras estão inseridas nesse processo, dentre tantas necessidades urgentes, temos como maior preocupação o genocídio da juventude negra. Os índices só aumentam com o passar dos anos e vários meninos são mortos pela Polícia Militar sem nenhum motivo aparente. A triste realidade dos negrotérios, neologismo de Éle Semog, é algo que precisa terminar. Porém, matar negros não causa indignação à população nem vira notícia de televisão ou primeira capa de jornal. É algo natural.

P:-Esta é apenas uma questão de desigualdade social. Ou uma mudança progressiva na relação social ao nível do mundo?

No Brasil é um problema racial que a esquerda política jamais quis participar. Em relação ao mundo, o modelo neoliberal já mostrou o seu esgotamento e a ampliação descarada das desigualdades. Por isso, a urgência dos conflitos e manifestações.

P:- Quando restam grandes desigualdades sociais e desafios culturais dos países lusófonos, como caracteriza a sociedade brasileira hoje?

Com uma dificuldade imensa de encarar os seus problemas e em apresentar solucões. Reina a histeria e a hipocrisia na defesa de privilégios enraizados desde o tempo colonial. Ações afirmativas para negros, bolsas-família, novos direitos trabalhistas para empregadas domésticas são alvos de intensa campanha contrária e insatisfação das classes abastadas.


P:- Ricardo Riso, tanto quanto soubemos os negros no Brasil e América tem sido descriminados e até hoje há grandes dificuldades de inserção social. Quais as estratégias que vocês tem para inverter a situação? Pode nos falar das ideias pan-americanistas hoje? O que a África precisa de ouvir de vós?

W. E. B. Du Bois no sermão “Sobre as nossas lutas espirituais”, no seu imprescindível “As almas da gente negra”, aponta para o problema de “ser negro e americano sem ser amaldiçoado e cuspido por seus camaradas, sem ter as portas da Oportunidade brutalmente batidas na cara”. Nós, afro-americanos, ainda avançamos para a construção de um diálogo pan-americano. O problema do racismo é mundial, atravessa espaços e o tempo, por isso, é pertinente quando o historiador cubano Carlos Moore fala do protorracismo, das origens dos enfrentamentos raciais entre melanodermos e leucodermos na antiguidade e como isso foi crescendo no decorrer dos séculos. Não sinto-me confortável para dizer algo aos angolanos e/ou africanos no sentido de soluções. O que precisamos é de aproximação, de cooperação, do resgate e atualização de uma luta pan-africana antirracista.

 

 

 

 
 

José Carlos Limeira e Éle Semog: Ogum's Toques do Escritor (vídeos e fotos)


No dia 23 de agosto de 2013, José Carlos Limeira e Éle Semog participaram do evento Ogum’s Toques do Escritor, organizado pelo coletivo literário Ogum’s Toques no CEAO/UFBA, Salvador, Bahia. A ocasião foi uma forma de homenagear os trinta anos do livro “Atabaques” e trinta e quatro anos de “O Arco-Íris Negro”, as duas parcerias desses autores. Fui honrado com a mediação da mesa.

Seguem os dois links para o debate:


 

Algumas fotos do evento.