sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Malangatana Valente - poemas

Além de ser o principal nome da pintura moçambicana, Malangatana Valente também passa pela poesia.
Para conhecer a pintura de Malangatana, visite http://ricardoriso.blogspot.com/2007/07/estar-se-no-stio-como-moambicano-como.html
e a relação dele com o poeta moçambicano José Craveirinha, visite
http://ricardoriso.blogspot.com/2007/11/craveirinha-e-malangatana-comunicao.html

A seguir, alguns poemas deste multifacetado artista.

A coruja
A coruja agoira-me
e diz-me que nunca chegarei
além onde o desejo me leva
e assim evapora-se o sonho;

O tambor foi tocado
na noite densa do feitiço
enquanto Kokwana* Muhlonga
apitava o Kulungwana* mortal;

Na noite sem estrelas
dois gatos pretos iluminaram
a cabana da Kokwana Hehlise
que morreu depois dos gatos terem miado.

Eu lutando comigo só
é impossível vencer as ondas
que feitiçeiramente me esboçam
as corujas, gatos e tambores.

In Livro "Vinte e quatro poemas" de Malangatana Valente Ngwenya, edição do Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa, 1996 pag.35


A Mamã preocupada
Nos teus braços eu fiquei
quando me nasceste muito preocupada
quem estava aflita
naquela altura perigosa
com o receio de que Deus me vai levar?

Tudo em silêncio olhava
para ver se o parto corria bem
tudo lavava as mãos
para poder receber quem vinha dos Céus
e toda a mulher quieta e aflita

Mas quando afastei-me
do lugar em que me guardaste durante longo tempo
dei logo o primeiro respiro
tu gritaste logo de alegria
o primeiro beijo foi o da Avó

Que levou-me logo para o lugar
que me guardaram e é secreto
tudo foi proibido a entrar no meu quarto
porque tudo cheirava mal
e eu todo fresco, fresco
respirava finalmente dentro das minhas fraldas

Mas a Avó que se supunha doida
estava sempre ao meu lado
ver-me e rever-me sempre
porque as moscas vinham ter comigo
e os mosquitos inquietavam-me
Deus que revia-me também
era o amigo da minha Avó velhinha

In livro de Malangatana Valente NGWENYA "Vinte e quatro poemas", edição do ISPA, Portugal,página 24


Amor Verde
Porque o amor não é sempre verde
que bom quando verde é
nem quero que mudes de cor
ó amor verde, verde, verde
ele é tão bom, bom, bom

Na cama quando passei a primeira noite
senti-me feliz quando corria dentro dela
a lágrima que nos fez amigos infinitos
porque dela veio quem nos chama: Papá e Mamã
o nosso primeiro filho, tão lindo, lindo.

In Do livro "Malangatana - vinte e quatro poemas", edição do ISPA, Instituto Superior de Psicologia Aplicada-CRL, Lisboa, em 1996, o poema na página 32.


Pensar alto
Sim
às marrabentas
às danças rituais
que nas madrugadas
criam o frenesi
quando os tambores e as flautas entram a fanfarrar

fanfarrando até o vermelho da madrugada fazer o solo sangrar
em contraste com o verdurar das canções dos pássaros
sobre o já verduzido manto das mangueiras
dos cajueiros prenhes
para em Dezembro seus rebentos
dançarem como mulheres sensualíssimas
em cada ramo do cajual da minha terra
mas, sim ao orgasmo
das mafurreiras
repletas de chiricos
das rolas ciosas pela simbiose que só a natureza sabe oferecer

mas sim
ao som estridente do kulunguana
das donzelas no zig-zague dos ritos
quando as gazelas tão belas
não suportam mais quarenta graus à sombra dos canhueiros em flor

enquanto as oleiras da aldeia, desta grande aldeia Moçambique
amassam o barro dos rios
para o pote feito ser o depositário
de todo o íntimo desse Povo que se não cala disputando
ecoosamente com os tambores do meu ontem antigo.

http://kafekultura.blogspot.com/2007/06/valente-malangatana-pintura-poesia.html

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Ana Paula Tavares: A divisão do mundo

A angolana Ana Paula Tavares é apontada como a principal voz feminina nas literaturas africanas de língua portuguesa.

Em poesia publicou
Ritos de passagem, de 1985, O lago da lua, de 1999, Dizes-me coisas amargas como os frutos, de 2001, e Ex-votos, de 2003. Lançou dois livros de crônicas: O sangue da buganvília, de 1998 e A cabeça de Salomé, de 2004. A crônica transcrita abaixo é deste último, que reúne textos que foram publicados no jornal Público, de Lisboa, entre os anos de 1999 a 2002.

Sobre as crônicas de
A cabeça de Salomé, a professora Rita Chaves (USP) diz que o “tom dessa escrita que aproveita da crônica aquilo que melhor pode render o gênero. A leitura de cada uma levará a ver que a leveza que encontramos nos bons cronistas como Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, para citar apenas dois dos nossos melhores, manifesta-se nos textos de Ana Paula Tavares. A ela, a autora angolana associa a densidade ancorada no desejo de manter, pela via da palavra, a forte ligação que existe entre ela e o patrimônio cultural que a sua identidade propicia. É de dentro desse campo, onde consolidaram-se as suas mais poderosas experiências, que ela olha o mundo e procura trilhas que nos permitam partilhar esse universo de saberes e sabores que a sua linguagem guarda e espalha.” (1)


A divisão do mundo
“Caiu a noite
Chegou a hora da caça ao caracol”
Provérbio cabinda
Tal como outros valores culturais, o sistema dos provérbios assenta num património de conhecimento facilmente reconhecível pela comunidade, que o aprende integrado num sistema de ensino baseado no aproveitamento da singularidade do indivíduo, enquanto parte de um todo comunitário, onde a solidariedade é cultivada como dado adquirido a não perder.

A agilidade do espírito, adestrada num cotidiano que a estimula, é perfeitamente capaz de actualizar receitas antigas, modernizar a língua e tornar de uso comum um património que, de outra maneira, se perderia no imenso limbo do passado a descobrir em museus, fossilizado nos pressupostos que o tornaram vivo numa época histórica determinada.

Este domínio da linguagem, muito para lá da mera utilização da palavra, pertence a todos, constituindo uma arma de recurso à disposição, cujo papel no apaziguamento de tensões internas dos indivíduos e das sociedades já foi reconhecido.

Os provérbios, parte deste sistema gramatical onde a história, o conto e o pequeno apontamento de escárnio e maldizer também tomam lugar, sintetizam, de certa forma, maneiras de pensar e encarar o mundo, iludir o tempo e viver com justiça. Mesmo em tribunal, o recurso a esta forma de linguagem cifrada (mas que todos conhecem) é utilizado, por vezes, segundo um enquadramento tão particular que as partes em litígio se esquecem do verdadeiro motivo que ali as levou, para se entregarem ao exercício da palavra, puro gozo, ao delírio de descobrir o provérbio radical, que deixe sem palavras o lado opositor.

As mulheres fazem (faziam) desta arte um amplo recurso, escolhendo formas de enfeitar as tampas de madeira das suas panelas que, uma vez postas em relação especial no espaço fechado que lhes era destinado, serviam para uma troca de mensagens prontas para atingir o alvo, conscientes de que “coração, cabeça e estômago” são entidades sempre associadas por esta ordem ou pela inversa.

Assim, depressa descobriram a correspondência entre objecto visualizado e provérbio inscrito, fornecendo, com a comida preparada de forma esmerada, o resto da cadeia para a eficácia da mensagem.

A linguagem do amor ficou assim servida por um acréscimo de recursos, onde cartas esculpidas celebram e dão notícia de promessas e juramentos arrancados ao coração da madeira.

Deve-se esta arte (em certos locais completamente extinta) a uma consciência bem enraizada sobre a consistência da palavra: uma vez gravada e tornada pública, perdura muito para além das outras levadas pelo vento ou pelo canto do matindindi.

Tratava-se de uma avaliação, consciente da importância da cristalização na madeira do estado real dos sentimentos, de uma peculiar gestão do amor, na esperança de que a tradição, não sendo já o que era, nem sempre deixa de ser o que parece.

Artífices da palavra de madeira eram encarregues de a fazer falar de forma especial. Uma mulher visitava o artista e estabelecia com ele um convénio de curta duração. Em troca da partilha de sonhos e revelação de estórias íntimas da família, conseguia fazê-lo arrancar, do coração da floresta, a madeira com todos os nós necessários à elaboração do discurso.

Embalado pela palavra, o artista ia lavrando, na tampa de uma panela, um primeiro esboço de uma escrita iluminada, a gravação dos sons da alma em tom de confissão.

Por vezes, a consulta a um especialista de provérbios, sábio de todas as linguagens, era o último recurso para evitar repetições e pôr de pé um sistema do simbólico imparável a partir desse momento.


Ao que sei, esta linguagem anda hoje perdida: as pessoas vêem as imagens mas perderam a noção de conjunto. Com a desculpa de uma apressada realidade de plástico, ignora-se a floresta e escolhe-se o caminho mais curto. Entre o que se escreve e o que se lê, deixou de haver ligação. Regressou-se à verbalização e os conceitos esvaziaram-se em caricaturas da verdade.

As tampas que falam são recusadas em busca dos segredos, que, em boa verdade, hoje não são meus, nem teus, nem de quem os há de apanhar.

TAVARES, Ana Paula. A divisão do mundo. In: A cabeça de Salomé. Lisboa: Caminho, 2004. pp. 27-29.

(1) http://www.agenciacartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=13295

Dina Salústio: Tabus em saldo

Dina Salústio é uma conceituada voz da literatura feminina de Cabo Verde. Nascida em 1941, na Ilha de Santo Antão, em seus textos os dramas, anseios, desejos, medos da mulher cabo-verdiana ocupam posição de destaque. Entretanto, na escrita da autora os sentimentos femininos tornam-se universais, não se reduzem apenas à mulher de sua pátria, mas expandem-se a todas as mulheres do mundo.
Publicou, apenas para citar alguns, textos em poesia
(Mirabilis – veias ao sol), prosa (A louca do serrano), contos (Mornas eram as noites).

Tabus em saldo

Se tivesse nascido macho era um rapaz, mas como nasceu fêmea é mulher. As fêmeas são sempre mulheres. Mas mesmo mulheres, elas são de todos nós. Para serem protegidas. No entanto, porque já têm tudo para serem motivo de tudo, há outros de nós que as desejam para o folclore da fantasia e para o encobrimento ridículo e camuflado da irracionalidade do estar.

De repente – ou não terá sido assim tão de repente? – vamos aos esconderijos privados desta sociedade que dolorosamente ou não, recorre a proibições, enfatiza princípios, agrupa-os em tabus para a defesa mínima de um certo decoro, ou, dando uma de evoluídas, parcelas outras há, que embandeiradas na necessidade de se cortar de vez com a hipocrisia social, em nome do progresso e outros mais, arranham a ferida onde ela dói mais: as crianças e as adolescentes.

Não satisfaz mais a orquestrada exploração da candura das meninas européias, a sedução das orientais, a instrumentalização das americanas do sul e do norte. Não. É preciso vir para mais perto. Temos uma juventude tão bonita que há que se retirar os dividendos, transformando-as em objectos de gozo mais sofisticado, em produtos rentáveis. E por isso vamos, outros de nós, aos liceus, às escolas para as envolver em collants e transparências e expô-las em fotos aos instintos curiosos de outros.

O negócio rende. Cada espiadela vinte escudos, diz-se. Dois rebuçados ao fim e ao cabo. Barato como quase tudo em Cabo Verde. Barato como nós, a nossa autenticidade, as ambições, os sentires, o orgulho e a existência. Dois rebuçados: o custo de uma espiadela ao clandestino filmado das nossas crianças fêmeas.

A gargalhada forte de um grupo de meninas perturba-me de alegria, mas imediatamente olho para os lados com medo que algum fotógrafo, caçador de corpos, esteja por perto para um primeiro contacto.

Desisti de querer ver mais. É o que a maioria faz, por cobardia, vergonha e secretos desejos que as coisas ruins deixem de acontecer.

Para depois ficam a luta, a briga e a denúncia. E as consciências tranqüilizam-se com a promessa.

... À noite, na televisão, passou um filme sobre prostituição infantil, em várias nuances. Eram crianças americanas. Podiam ser caboverdianas.

Era o primeiro dia do Ano Novo de 1992. A primeira noite.

SALÚSTIO, Dina. Tabus em saldo. In: Mornas eram as noites. Colecção Lusófona. Lisboa: Instituto Camões, 1999. pp. 32-33.

Dina Salústio: Liberdade Adiada

Dina Salústio é uma conceituada voz da literatura feminina de Cabo Verde. Nascida em 1941, na Ilha de Santo Antão, em seus textos os dramas, anseios, desejos, medos da mulher cabo-verdiana ocupam posição de destaque. Entretanto, na escrita da autora os sentimentos femininos tornam-se universais, não se reduzem apenas à mulher de sua pátria, mas expandem-se a todas as mulheres do mundo.Publicou, apenas para citar alguns, textos em poesia (Mirabilis – veias ao sol), prosa (A louca do serrano), contos (Mornas eram as noites).


Liberdade Adiada


Sentia-se cansada. A barriga, as pernas, a cabeça, o corpo todo era um enorme peso que lhe caía irremediavelmente em cima. Esperava que a qualquer momento o coração lhe perfurasse o peito, lhe rasgasse a blusa.

Como seria o coração?

Teria mesmo aquela forma bonita dos postais coloridos?

Seriam todos os corações do mesmo formato?

... Será que as dores deformam os corações?

Pensou em atirar a lata de água ao chão, esparramar-se no líquido, encharcar-se, fazer-se lama, confundir-se com aqueles caminhos que durante anos e mais anos lhe comiam a sola dos pés, lhe queimavam as veias, lhe roubavam as forças.

Imaginou os filhos que aguardavam e que já deviam estar acordados. Os filhos que ela odiava!

Aos vinte e três anos disseram-lhe que tinha o útero descaído. Bom seria que caísse de vez! Estava farta daquele bocado de si que ano após ano, enchia, inchava, desenchia, e lhe atirava para os braços e para os cuidados mais um pedacinho de gente.

Não. Não voltaria para casa.

O barranco olhava-a, boca aberta, num sorriso irresistível, convidando-a para o encontro final.

Conhecia aquele tipo de sorriso e não tinha boas recordações dos tempos que vinham depois. Mas um dia havia de o eternizar. E se fosse agora, no instante que madrugava? A lata e ela, para sempre, juntas no sorriso do barranco.

Gostava da sua lata de carregar água. Tratava-a bem. Às vezes, em momentos de raiva ou simplesmente indefinidos, areava-a uma, dez, mil vezes, até que ficava a luzir e a cólera, ou a indefinição se perdiam no brilho prateado. Com o fundo de madeira que tivera que lhe mandar colocar, quando começou a espirrar água e já não suportava uma torcida de farrapo, ficou mais pesada, mas não eram daí os seus tormentos.

Atirar-se-ia pelo barranco abaixo. Não perdia nada. Aliás nunca perdeu nada. Nunca teve nada para perder.

Disseram-lhe que tinha perdido a virgindade, mas nunca chegou a saber o que aquilo era.

À borda do barranco, com a lata de água à cabeça e a saia batida pelo vento, pensou nos filhos e levou as mãos ao peito.

O que tinha a ver os filhos com o coração? Os filhos... Como ela os amava, Nossenhor!

Apressou-se a ir ao encontro deles. O mais novito devia estar a chamar por ela.

Correu deixando o barranco e o sonho de liberdade para trás.

Quando a encontrei na praia, ela esperando a pesca, eu atrás de outros desejos, contou-me aquele pedaço da sua vida, em reposta ao meu comentário de como seria bom montar numa onda e partir rumo a outros destinos, a outros desertos, a outros natais.


SALÚSTIO, Dina. Liberdade adiada. In: Mornas eram as noites. Colecção Lusófona. Lisboa: Instituto Camões, 1999. pp. 7-8.