quarta-feira, 30 de abril de 2008

Agostinho Neto não foi um poeta medíocre e o delírio de Agualusa

Uma grande maka acontece em Angola desde a publicação da entrevista de José Eduardo Agualusa ao Jornal Angolense, em 15 de março (o link para a entrevista está no final deste texto). Nela, o renomado escritor angolano afirma que cânones literários do seu país fizeram péssima poesia: “uma pessoa que ache que o Agostinho Neto, por exemplo, foi um extraordinário poeta é porque não conhece rigorosamente nada de poesia. Agostinho Neto foi um poeta medíocre. O mesmo se pode dizer de António Cardoso ou de António Jacinto”.

A partir da estapafúrdia declaração, Agualusa vem sendo extremamente criticado pelos seus compatriotas, com razão.

Creio que Agualusa se esquece da importância histórica desempenhada pelos três poetas no período colonial de Angola, ou ignora a relevância dada pelos críticos literários e os diversos ensaios e teses acadêmicas nas universidades da Europa, Estados Unidos e Brasil. Injusta, principalmente com a obra "Sagrada Esperança", de Agostinho Neto, com poemas de reconhecimento internacional, e também o fundamental livro “Sobreviver em Tarrafal de Santiago”, de Antonio Jacinto. Será que Benjamin Abdala Junior, Russel Hamilton, Luis Kandjimbo, Carmen Lucia Tindó Secco, Rita Chaves e Laura Padilha não sabem nada de poesia? Desculpe-me, Agualusa, mas o senhor ultrapassou o aceitável. Não será com uma crítica da maneira “gosto/não gosto” que o senhor refutará as obras dos pesquisadores mencionados anteriormente.

Penso que qualquer pessoa tenha o direito de emitir sua opinião. Todavia, o que me deixou indignado foi a forma como Agualusa colocou a sua posição: simplista, sensacionalista e medíocre. No campo das idéias, a crítica deve ser séria, fundamentada e honesta, principalmente quando se trata de pessoas que não estão mais entre nós para se defender. Mas o escritor é conhecido por suas declarações bombásticas (recomendo a visita ao blog http://huambino.blogs.sapo.pt/ e a leitura do texto "Agualusa em foco"), o por quê, eu não sei. Talvez egocentrismo.
Sobre a entrevista de Agualusa, o professor Pires Laranjeira em recente artigo ao Jornal de Angola (confira a íntegra do artigo no link indicado no final do texto), afirma que:

“Agostinho Neto não é um poeta medíocre. Tudo estaria certo, e Agualusa não seria ‘incomodado’ e incomodativo, se opinasse, por exemplo, que Neto não é um poeta da sua preferência ou que, para ele, não é o poeta mais representativo de Angola. Estava no seu direito e não agredia o que quer que fosse. Porém, dizer que é um poeta medíocre só pode ser interpretado como provocação, como verdadeira tirada de mau gosto, vontade de exuberância mediática, ressabiamento político, etc.”

No decorrer do seu pensamento, Agualusa ainda comenta a respeito da fraca, na concepção dele, qualidade da literatura angolana. Para ele, “para se escrever grande poesia é preciso primeiro ler os grandes poetas universais”. Neste ponto, faço questão de citar o que escreveu o poeta e ensaísta angolano Luis Kandjimbo (abaixo link com o texto completo) ao rebater as afirmações de Agualusa:

“O que são «poetas universais»? Não existe qualquer relação de causalidade entre a leitura de tais poetas e a escrita de excelente poesia. Além disso, há aí uma confusão entre aquilo que releva da condição de simples leitor, membro de uma determinada comunidade interpretativa, e o que entra no campo da actividade dos estudiosos da literatura, porque ler os poetas do mundo ocidental pode ser apenas uma condição necessária para explicar e comentar obras num contexto institucional em que predominem constrangimentos próprios. Invocar o universal sem ter em conta a primazia do particular é uma forma tendenciosa de reconhecer a hegemonia das culturas do mundo ocidental numa lógica colonialista. O universal assim enunciado é uma autêntica armadilha, pois ignora a existência dos Africanos, por exemplo.”

Como se pode perceber, José Eduardo Agualusa foi, no mínimo, infeliz na maneira escabrosa que emitiu suas opiniões a respeito de três escritores essenciais para o desenvolvimento da literatura angolana. Agredir nomes consagrados gratuitamente como ele fez, só o desmerece como intelectual. Apesar de ter alguns bons romances como "Nação Crioula", e ser um dos mais prestigiados autores contemporâneos dos países africanos de língua portuguesa, tal condição não lhe dá o direito de menosprezar as obras de Agostinho Neto, António Jacinto e António Cardoso.

Entretanto, assim é a Literatura. Ela não vive sem polêmicas. O melhor a fazer é revisitar ou conhecer as obras dos três poetas criticados, e reler a de José Eduardo Agualusa, inclusive.

A seguir apresento o link com a polêmica entrevista de José Eduardo Agualusa, e dois artigos, um de Pires Laranjeira e outro do poeta Luis Kandjimbo.
Todas as citações foram tiradas destes três endereços.

Agualusa, José Eduardo. Um escriba interessado pelo absurdo. Jornal Angolense, Luanda, 15/03/2008. Acessado em 29/04/2008 - http://www.jornalangolense.com/full_index.php?id=2433&edit

Kandjimbo, Luis. A tradição literária angolana e o grau zero da memória de um escritor - (A propósito da incapacidade de fundamentar um juízo de natureza estética e literária). Acessado em 30/04/2008 - http://koluki.blogspot.com/

Laranjeira, Pires. Agostinho Neto não é um poeta medíocre. Acessado em 29/04/2008 -

terça-feira, 29 de abril de 2008

José Eduardo Agualusa: Funções do Mito em "O Filho do Vento"

A presente análise baseou-se no conto infantil “O filho do vento”, de José Eduardo Agualusa (Rio de Janeiro: Língua Geral, 2006), para apresentar como o mito, metaforicamente, explica fenômenos naturais, sentimentos humanos e atua como modelador de conduta social.

O autor, José Eduardo Agualusa, é angolano e um dos grandes destaques das literaturas africanas de língua portuguesa contemporânea. Já participou de duas edições da FLIP (Festa Literária de Paraty); é consultor editorial da Língua Geral, editora voltada apenas para autores de língua portuguesa; e publicou, entre outros romances, “Nação Crioula”, “As mulheres do meu pai” e “O ano em que Zumbi tomou o Rio de Janeiro”.

Agualusa inspirou-se na tradição oral dos bosquímanos (homens do bosque), etnia do sul de Angola também conhecida como Koi-san, e apropriou-se da lenda “O filho do vento”, para criar o seu conto infantil.

A tradição oral é de suma importância em uma cultura ágrafa, pois é através dela que os ensinamentos culturais são passados para as crianças de determinado grupo social, em um aprendizado constante no cotidiano. Nas sociedades africanas, o respeito à ancestralidade se dá pela transmissão oral dos conhecimentos, principalmente pelos anciãos da aldeia, ou um griot, contador de histórias e conhecedor das tradições locais. Segundo Nei Lopes:

“A transmissão oral do conhecimento é o veículo do poder e da força das palavras, que permanecem sem efeito em um texto escrito, (...) o Verbo Atuante, tem o valor de uma iniciação, que não está no nível da compreensão, porém na dinâmica do comportamento. Essa iniciação é baseada em reflexos que operam no raciocínio e que são induzidos por impulsos nascidos no fundamento cultural da sociedade.” (LOPES, 2005, p. 31)

“O filho do vento” narra a história de um menino, chamado Nakati, que desejava saber o nome do filho do vento. Porém, este nome era um segredo e jamais deveria ser pronunciado. Mas, de tanto insistir para que sua mãe o dissesse ele acabou conseguindo saber:

“– Está bem, concordou. Digo-te como ele se chama mas só podes chamá-lo com esse nome depois que o teu pai terminar de reforçar as paredes da nossa cabana. E disse-lhe ao ouvido, num sopro tímido: Kuan-Kuan Gau Baubu-Ti.” (AGUALUSA, 2006, pp. 9-10)

Nakati, inquieto como só ele, não atendendo a recomendação de sua mãe, rapidamente chamou pelo nome verdadeiro o filho do vento, assim que o encontrou. Com isso, logo “se erguia um redemoinho de poeira.” (AGUALUSA, 2006, p. 12) O narrador explica o que aconteceu a partir daí:

“O redemoinho cresceu, engrossou, um vento áspero e raso começou a soprar, não dando tempo às pessoas para se protegerem. Instantes depois não havia uma única cabana de pé sobre a imensa planície. Por isso quando venta dessa maneira nós dizemos que o vento está tombado. Quando o vento está de pé não sopra assim.” (AGUALUSA, 2006, p. 14)

Após o acontecido Kuan-Kuan passou a achar que os homens não gostavam mais dele. Ficou arredio, toda vez que se sentia ameaçado tornava-se um pássaro e fugia. Até que “um dia voou, voou, e não voltou mais” (AGUALUSA, 2006, p. 18).

Dessa maneira, tenta-se explicar através do mito, um fenômeno natural, e, ao mesmo tempo, há uma lição moral, pois a aldeia foi penalizada por que uma criança desrespeitou uma recomendação da própria mãe.

No decorrer da narrativa é contado como as estrelas surgiram no céu, a importância delas para os bosquímanos e constatamos a transmissão de conhecimento oral:

“Agora vou dizer-vos como o vazio se iluminou de estrelas para que os koi-san possam orientar-se, mesmo depois que o sol se aninha no chão. Foi a minha mãe quem me contou isto: certa noite, era muito escuro, uma menina afundou os dedos na cinza ainda quente de uma fogueira e atirou-a ao céu. Foi assim que as estrelas se formaram. As estrelas brilham com suavidade porque são feitas de cinza morna. (...)”(AGUALUSA, 2006, p. 19)

Um belo dia, Kuan-Kuan descansava em um morro, uma mulher apresentou-se a ele e disse que ele parecia um pássaro que já foi homem:

“– Dizem que o tal homem virou pássaro porque tinha medo dos outros homens. Tinha medo de que se zangassem com ele nos dias de muito vento. É verdade que quando o vento cai pode ser muito perigoso. Mas o vento também faz coisas boas. O vento ajuda-nos a caçar. Os caçadores conseguem aproximar-se das gazelas, caminhando contra o vento, porque assim elas não sentem o seu cheiro, e não fogem. Além disso o vento espalha as sementes das árvores, e alivia o calor...” (AGUALUSA, 2006, p. 24)

A narrativa mostra o lado bom do vento às crianças, que ele não é um elemento apenas prejudicial ao homem. Kuan-Kuan emociona-se, e ao replicar desenrola-se o seguinte diálogo:

“– O vento também espalha as chamas dos incêndios...
– É verdade, concordou a mulher. O vento é como qualquer pessoa, tem seus dias. Culpa de quem?” (AGUALUSA, 2006, p. 25)

Com tal explicação a mulher deixa Kuan-Kuan encantado, e o conto traça uma bela analogia entre o comportamento humano e as leis da natureza.

Em seguida, a mulher descobre que Kuan-Kuan pode voar e pergunta-o se poderia levá-la até as estrelas, pois tinha o desejo de dormir entre elas:

“Kuan-Kuan abriu as asas e abraçou a mulher. No mesmo instante um grande golpe de vento varreu a savana. Nessa noite os primeiros homens viram surgir no céu o rosto iluminado da lua – era a namorada de Kuan-Kuan, dormindo feliz entre as estrelas.
Foi assim que nasceu o amor.” (AGUALUSA, 2006, p. 27)

Assim, o conto explica com lirismo como um satélite natural, no caso a lua, nasceu, e entre a afinidade de Kuan-Kuan e a mulher, surgiu o amor. Além de novamente apresentar a participação do homem nas origens dos fenômenos e aspectos do universo.

Conclusão

Na lenda dos bosquímanos, “O filho do vento”, apreendemos como o mito atua na sociedade, sendo fundamental nas regras de conduta de um determinado grupo. Recorrendo aos tempos primordiais da Criação, o mito procura explicar como o mundo é hoje, e ensina-nos como questões inerentes à condição humana surgiram. Apesar de apresentar justificativas sobrenaturais de como as coisas foram criadas, o que dá veracidade ao mito é a presença real do que foi relatado.

Por isto, é fundamental resgatarmos as lendas que vêm de tempos imemoriais para nos auxiliar na educação das crianças. Conduzindo-os a um mundo lúdico, metafórico e com valores sociais apresentados na sua essência.


BIBLIOGRAFIA:
AGUALUSA, José Eduardo. O filho do vento. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2006.

LOPES, Nei. Kitábu – o livro do saber e do espírito negro-africanos. Rio de Janeiro: Senac, 2005.

INTERNET:
Sobre os bosquímanos, acessado em 14 de abril de 2008:
http://www.iict.pt/publicacoes/catalogo/pagpbl/vpbl03.asp?c_col=901&c_num=30

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Mia Couto - A cantadeira (conto)



Acabei a minha sessão de canto, estou triste, flor depois das pétalas. Reponho sobre meu corpo suado o vestido de que me tinha libertado. Canto sempre assim, despida. Os homens, se calhar, só me vêm ver por causa disso: sempre me dispo quando canto. Estranha-se? Eu pergunto: a gente não se despe para amar? Porque não ficar nua para outros amores? A canção é só isso: um amor que se consome em chama entre o instante da voz e a eternidade do silêncio.

Outros cantadores, quando actuam em público, se trajam de enfeites e reluzências. Mas, em meu caso, cantar é coisa tão maior que me entrego assim pequenitinha, destamanhada. Dessa maneira, menos que mínima, me torno sombra, desenhável segundo tonalidades da música.

Cantar, dizem, é um afastamento da morte. A voz suspende o passo da morte e, em volta, tudo se torna pegada da vida. Dizem mas, para mim, a voz serve-me para outras finalidades: cantando eu convoco um certo homem. Era um apanhador de pérolas, um vasculhador de maresias. Esse homem acendeu a minha vida e ainda hoje eu sigo por iluminação desse sentimento. O amor, agora sei, é a terra e o mar se inundando mutuamente.

Amei esse peroleiro tanto até dele perder memória. Lembro apenas de quanto estive viva. Minha vida se tornava tão densa que o tempo sofria enfarte, coagulando de felicidade. Só esse homem servia para meu litoral, todas vivências que eu tivera eram ondas que nele desmaiavam. Contudo, estou fadada apenas para instantes. Nunca provei felicidade que não fosse uma taça que, logo após o lábio, se estilhaça. Sempre aspirei ser árvore. Da árvore serei apenas luar, a breve crença de claridade.

Em certo momento, me extraviei de sua presença, perdi o búzio e o mar que ecoava dentro. Ele embarcou para as ilhas de Bazaruto, destinado a arrancar riquezas das conchas. Apanhador de pérolas, certeiro a capturar, entre as rochas, os brilhos delas. Só falhou me apanhar a mim, rasteirinha que vivi, encrostada entre rochas.

Na despedida, ele me pediu que cantasse. Não houve choradeiras. Lágrima era prova gasta. Vejam-se as aves quando migram. Choram? O que elas não prescindem é do canto.

– E porquê? – perguntou o peroleiro.

O gorjeio, explicou ele, é a âncora que os pássaros lançam para prenderem o tempo, para que as estações vão e regressem como marés.

– Você cante para chamar meu regresso.

Minha vida foi um esperadouro. Estive assim, inclinada como praia, mar desaguando em rio, Índico exilado, mar naufragado. Estive na sombra mas não fiquei sombria. Pelo menos, nas primeiras esperas. Valia-me cantar. Espraiei minha voz por mais lugares que tem o mundo.

– Esse homem me lançou um bom-olhado?

Demorasse assim sua ausência, a espera não se sujava com desespero. Me socorria a lembrança de seus braços como se fossem a parte do meu próprio corpo que me faltasse resgatar.

Para sempre me ficou esse abraço. Por via desse cingir de corpo minha vida se mudou. Depois desse abraço trocou-se, no mundo, o fora pelo dentro. Agora, é dentro que tenho pele. Agora, meus olhos se abrem apenas para as funduras da alma. Nesse reverso, a poeira da rua me suja é o coração. Vou perdendo noção de mim, vou desbrilhando. E se eu peço que ele regresse é para sua mão peroleira me descobrir ainda cintilosa por dentro. Todo este tempo me madreperolei, em enfeitei de lembrança.

Mas o homem de minha paixão se foi demorando tanto que receio me acontecer como à ostra que vai engrossando tanto a casca que morre dentro de sua própria prisão. Certamente, ele passará por mim e não me reconhecerá. Minha única salvação será, então, cantar, cantar como ele me pediu. Entoarei a mesma canção da despedida. Para que ele me confirme entre as demais conchas e se debruce em mim para me levar.

Mas, na barraca do mercado, eu canto e não encanto ninguém. Ao inviés, todos se riem de mim, toquinhando o dedo indicador nas respectivas cabeças. Sugerem assim que esteja louca, incapazes que são de me explicar.

Esta noite, como todas as noites antes desta, apanho minhas roupas enquanto escuto os comentários jocosos da assistência. Afinal, a mesma humilhação de todas as exibições anteriores. Desta vez, porém, aquela gozação me magoa como ferroada em minha alma.

Nas traseiras do palco, uma mulher me aborda, amiga, admirada do meu estado. Me estende uma folha de papel, pedindo que escrevesse o que sentia. Fico com a caneta gaguejando em meus dedos, incapaz de uma única letra. Pela primeira vez, me dói ser muda, me aleija ter perdido a voz na sucessiva convocação de meu amado. Me castigam não as gargalhadas dos que me fingiam escutar mas um estranho presságio. É então que, das traseiras do escuro, chega um pescador que me faz sinal, em respeitoso chamamento. Sabendo que não falo, ele também pouco fala.

– Lhe trago isto.

Suas mãos se abrem na concha das minhas. Deixa tombar uma pequena luminosidade que rola entre os meus dedos. É uma pérola, luzinhando como gota de uma estrela. Lhe mostro o papel onde rabisquei a angustiosa pergunta:

– Foi quando?

Ele apenas abana a cabeça. Interessava o quando? Aquela era a maneira de o mensageiro me dizer que o meu antigo amor se tinha desacontecido, exilado do tempo, emigrado do corpo.

– Enterraram-no?

Mas a interrogação, rabiscada na folha, não cumpre seu destino. Silencioso, o pescador se afunda nas trevas com a educação de ave nocturna. Fico eu, enfrentando sozinha o todo firmamento, monteplicado em pequenas pérolas. E escuto, como se fosse vinda de dentro, a voz desse peroleiro:

– Cante! Cante aquela canção em que eu parti.

E lanço, primeiro sem força, os acordes dessa antiga melodia. E me inespero quando noto que o mensageiro regressa, arrepiado do caminho que tomara. No seu rosto se acendia o espanto de me escutar, como se, em mim, voz e peito se houvessem reencontrado.


COUTO, Mia. Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos. Lisboa: Editorial Caminho, 2001, pp. 109-112.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Espelho Atlântico – Mostra de Cinema da África e da Diáspora

22 a 27 de abril de 2008
cinema 1
sessões sempre às 19h
Preço: R$ 4,00 (inteira); R$ 2,00 (meia-entrada)
Acesso para portadores de necessidades especiais

Caixa Cultural RJ
Av. Almirante Barroso, 25 – Centro
Tel.: 21-2544-4080
http://www.caixacultural.com.br/

Em parceria com o African Film Festival, de Nova Iork, a mostra traz um panorama contemporâneo de filmes africanos e filmes brasileiros que refletem a herança daquele continente.

DIA 22
O clandestino
Ficção
Zaire / Angola, 1997, 15 min
Direção: Jose Laplaine
Quando um angolano clandestino chega a Lisboa, ele percebe que a Europa de seus sonhos não é o paraíso que imaginava. Sempre tendo que fugir de um policial persistente, ele começa a ter saudades da terra natal.

Kuxa Kanema – o nascimento do cinema
Documentário, 52 min.
Bélgica / França / Portugal, 2003
Direção: Margarida Cardoso
O governo moçambicano cria após a independência, em 1975, o Instituto Nacional de Cinema (INC), pois o presidente, Samora Machel, sabia do poder da imagem para a nação socialista. A ruína do INC após um incêndio acompanha a desilusão dos moradores com o regime. Vencedor do Festival de Nova York de Filmes Africanos.

Dia 23
Mama Put
Ficção
Nigéria, 2006, 30 min
Direção: Seke Somolu
A história de um grupo de jovens armados que invade a casa de uma pobre família mostra o poder do alimento transformar, salvar e estremecer relações sociais na Nigéria. Mama Put é o filme de estréia do cineasta nigeriano Seke Somolu.

A cidade das mulheres
Documentário
Brasil, 2005, 72 min
Direção: Lázaro Faria
O filme é uma resposta a Ruth Landes, antropóloga norte-americana que esteve na Bahia, em 1939, e se surpreendeu com a força e a soberania das mulheres do candomblé dentro de uma organização matriarcal. Ganhador dos prêmios Tatu de Ouro e BNB de Cinema.

Dia 24
Menged

Ficção
Etiópia, 2006, 20 min
Direção: Daniel Taye Workou
Adaptação de um conto popular etíope, sobre a trajetória de um pai e seu filho até o mercado. Mostra a Etiópia de hoje: um país na transição entre o modernismo e o tradicionalismo. Venceu o Urso de Cristal no Festival Internacional de Filmes de Berlim.

Mortu Negra
Ficção
Guiné-Bissau, 1988, 85 min
Direção: Flora Gomes
No interior da Guiné, lutando contra a presença colonial, o exército de libertação constrói o dia-a-dia entre a vida comunitária e o percurso para a independência de seu país. O filme marca a estréia da consagrada cineasta Flora Gomes.

Dia 25
Balé de pé no chão
Vídeo-documentário
Brasil, 2008, 17 min
Direção: Lílian Sola Santiago
Documentário sobre Mercedes Baptista, principal precursora da dança afro-brasileira. Bailarina de formação erudita, Mercedes criou o seu grupo na década de 50 e estuda os movimentos do candomblé e das danças folclóricas. Vencedor do Prêmio Palmares de Comunicação 2005.

Na cidade vazia
Ficção
Angola, 2005, 88 min
Direção: Maria João Ganga
O filme narra a trajetória de um menino órfã, que, assim como muitos outros de sua geração, também luta pela sobrevivência em Angola que está devastada após a revolução civil. Conquistou o grande prêmio do Festival de Filmes de Paris.

Dia 26
Maria sem graça
Vídeo-ficção
Brasil, 2007, 12 min
Maria das Graças, menina negra de doze anos, moradora da periferia de São Paulo, atormenta a vida de sua mãe para alcançar seu maior sonho: ser a apresentadora Xuxa Meneghel. Selecionado para o Festival Internacional de Curta-metragens de São Paulo.

Família Alcântara
Documentário
Brasil, 2006, 52 min
Direção: Lílian e Daniel sola Santiago
História de uma família extensa, cujas origens remetem-se à bacia do Rio Congo, na África. Através de gerações, preservam sua história com o coral, o teatro e a congada. Premiado no 11o. Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá, no Mato Grosso.

Dia 27
The ball
Ficção
Moçambique, 2001, 5 min
Direção: Orlando Mesquita
Em um país que luta para combater a Aids, vinte milhões de preservativos são distribuídos, isto é, cinco por pessoa por ano. Muitos utilizam as camisinhas de outra forma, por exemplo, os garotos que as utilizam para fazer bolas para jogar futebol.

O herói
Ficção
Angola, 2004, 97 min
Direção: Zezé Gamboa
Um soldado mutilado na explosão de uma mina volta à Luanda após vinte anos de combates. No elenco, o senegalês Makena Diop, as brasileiras Maria Ceiça e Neuza Borges. Premiado no Festival de Sundance (EUA) e no Festival de Cinema Africano de Milão, entre outros.

Kuxa Kanema e o fim da utopia moçambicana

Carro soviético que realizava as projeções cinematográficas pela pátria moçambicana. (Imagem de http://www1.uni-hamburg.de/clpic/img/cinema/kuxa_kanema.jpg)

Espelho Atlântico – Mostra de Cinema da África e da Diáspora iniciada ontem, no Caixa Cultural RJ (22 a 27 de abril), brindou o público carioca com a exibição do belíssimo documentário Kuxa Kanema – o nascimento do cinema, que retrata o momento inicial de Moçambique independente a partir de 1975.

O governo moçambicano liderado por Samora Machel, representante máximo do partido FRELIMO que conduziu a guerrilha contra o domínio português, criou o Instituto Nacional de Cinema (INC) para divulgar as conquistas e as reformas propostas pela revolução socialista. Assim como, ter o interesse de se “fazer um cinema para o povo, sobre o povo e do povo”.

Contando com o apoio técnico da extinta União Soviética, que cedia carros para levar os filmes produzidos nos mais distantes lugares do país, em que jamais a população havia tido contato com o cinema, acompanhamos a empolgação e o fervor revolucionário de Samora Machel em seus comícios, sempre lotados. Podemos conferir a sua constante defesa em afirmar a unidade moçambicana, sem divisões étnicas entre macuas, rongas etc., relembrando o passado de conflitos entre os moçambicanos, o que apenas favorecia o colonizador português.

Percebemos a euforia daqueles que participaram da criação dos filmes, como o escritor Luís Carlos Patraquim. Em uma atmosfera propícia à cooperação, tudo era novo, todos pela construção de um país, e o cinema participava desse nascimento: o nascimento de um país. Porém, com todos os percalços pela falta de estrutura e de pessoal tecnicamente capacitado. Não havia um cinema moçambicano até então e a maior parte da jovem nação era formada por pessoas que não tinham a mínima noção do que era cinema, ou de como seria para produzi-lo.

Para resolver o problema e tendo o apoio de pessoas simpatizantes da causa libertária moçambicana, além de cubanos e do bloco socialista europeu, nomes como os dos cineastas Ruy Guerra e Jean-Luc Godard chegaram a participar do INC, propondo idéias e ministrando cursos.

Entretanto, como era um cinema em formação, as divergências começaram a surgir. Na então comunista Iugoslávia, o poeta LC Patraquim conta a inusitada filmagem de um longa-metragem sobre a guerra colonial em que o roteiro proposto pelos iugoslavos determinava a filmagem de ataques aéreos com helicópteros, e no início do filme uma insólita cena com uma guerrilheira que apareceria nua à frente de combatentes portugueses. Patraquim afirma que precisou revelar que na guerrilha moçambicana nunca houve ataques aéreos, toda ela foi feita por terra, o que não foi aceito pelos roteiristas iugoslavos. Discordâncias à parte, o filme foi feito, mas, segundo o escritor, de uma maneira rasteira e maniqueísta.

As diferenças ideológicas logo começaram a vir à tona, porque a FRELIMO via o cinema, no caso o Kuxa Kanema, como forma de propaganda revolucionária. E nem sempre a teoria e a prática andam juntas, como com a sugestão de Godard, que desejava ministrar cursos de cinema às populações carentes, sendo que estas tivessem liberdade para realizar seus próprios filmes. Um projeto utópico que não foi aceito pelo governo.

Todavia, não foram apenas essas divergências. O mundo estava em um contexto de Guerra Fria. Logo em seguida à independência, a Rodésia e a África do Sul começaram a atacar Moçambique para derrubar o governo socialista. Iniciava uma sangrenta guerra. Veio o embargo econômico, o país começou a passar por dificuldades, pois não encontrava apoio entre a comunidade internacional e a ajuda soviética não era suficiente.

Sendo assim, a produção de filmes sofre uma queda significativa diante dos perigos em filmar pelo país. Chegou-se ao extremo da equipe cinematográfica só conseguir filmar acompanhada de um grande aparato militar. Com isso, os filmes passaram a tratar das mazelas às quais a população moçambicana era submetida. LC Patraquim narra uma passagem deplorável, enquanto as cenas são mostradas, de um ataque sofrido por uma aldeia, com centenas de mortos. Não havia mais espaço para filmar a construção do país, infelizmente.

A chamada “guerra de desestabilização” avançou e dilacerou o país. Em 1986, Moçambique passou a ser considerada a nação mais pobre do mundo, Samora Machel morreu misteriosamente em um acidente de avião, em território sul-africano. O fim de uma etapa na história moçambicana se encerrava. Era o fim do sonho de um país em construção.

Apesar de ter servido como instrumento de propaganda política da FRELIMO, o INC e a série Kuxa Kanema cumpriram um importante papel histórico ao retratar o carisma de Samora Machel e a euforia da construção de um novo país recém-independente. Hoje, o prédio de fundação do INC está em ruínas, por causa de um incêndio. Hoje, não há apenas o cinema, mas há uma televisão moçambicana, mas uma televisão globalizada como é ao redor do mundo, que ignora as manifestações culturais locais. O INC funciona precariamente entre escombros. Os filmes dos primeiros anos da revolução deterioram-se, como a situação do país e a esperança de uma população, que foi do sonho utópico à distopia após tantos anos de guerra e dificuldades.

Kuxa Kanema – o nascimento do cinema é fundamental por seu registro histórico, de uma época que o tempo e a elite dominante insistem em apagar.
Ricardo Riso

Kuxa Kanema – o nascimento do cinema
(Bélgica / França / Portugal, 2003)
Documentário, 52 min.
Direção: Margarida Cardoso

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Eduardo White - As mãos estão trêmulas...

As mãos estão trêmulas, nervosas, arrepiadas. Pensam comigo na solidão da casa. Há uma existência que não está, que não vive aqui. Temos ambos saudades dela. Eu queria dar as mãos a sua manualidade. Poder desenhar carícias, poder afagar um rosto, poder levá-las ao beijo.

Minhas mãos, meninas minhas. Só elas vivendo esta dor incontornável quando eu digo ou penso esta palavra: MULHER.

Nenhuma outra diria a casa do Mundo que é. A vida que por dentro a trata e prepara, aquela visão cósmica que azula o barro, a terra plástica e húmida a sonhar o molde.

Nenhuma canção é mais forte que a matéria da sua música, o brilho, a força, a limpeza de cada timbre. Casulo profundo para o amor nascer, água e sede casadas para se não morrer. Inventando (i)limite quando sucedemos definir o chão natal, bandeira com cunho carnal, pátria primeira, país com vocação para crescer. Ave a fio no céu-da-boca, pronúncia com sal e suor ou Sol, voo, fábula, matriz do amor a dividir.

Um barco nos olhos.

Sabem, é dele que viajo para a memória que tenho dela. Que imagem plena eu posso ainda guardar quando havia em nós a alegria de brincar. Esse lugar tão aéreo da liberdade. A voz encantada com que dizia: eu amo-te. Arrepio-me só de pensar ouvi-la em sua musical generosidade.

Eu bocejava as tardes para ela entrar vinda da escola e com aquele cheiro infantil da borracha e dos lápis efemeramente transcritos para os cadernos. Era lilás por dentro, tinha espaço e chão e, quantas vezes, desse milagre da sua adulta menstruação eu sorria para a menina que era com caroços no peito. Doíam-lhe se gargalhava, ainda me lembro.

Pois é. Era assim que eu via a mulher profunda que amo. Um dia jurei plantá-la no meu urbano jardim. Daqueles que a cidade abriga em vasos de barro com terra comprada nos supermercados. Afligia-me isso, comprar com o mecânico cartão de débito um punhado de terra que nos lembrasse a gratuidade da nossa África. Pobre, mas verdadeiramente primária em sua pureza.

Bom, voltando ao vaso. Aqui o vejo sobre a mesa. Haviam, na sala, outros com cores e flores diversas, mas instantâneas. Eu lembrei-me de uma com a qual adorava compará-la quando entregava o corpo ao soalho do quarto e às minhas mãos derrapantes. A de maracujá. Que fruta tão fresca, que pevides tão mágicas, que suco tão espesso.

Mas a flor cordial que a anunciava, tinha escrito outros feitiços. Os seus poros acentuados no leve da pele. A cor, por exemplo, febril e escura dos lábios, ou, então, as luas espantadas e cheias nos seus olhos. Negras e luminosamente assustadas.

Que bom puder, depois de tudo, esboçar essa imagem gratificante dela. Lúdica como uma sonata num desenho animado.

Certa noite, eu esperei-a com o boom da surpresa que eu julgava fosse explodir logo que olhasse o jardim dentro de casa. Inquieto percorria-a e figurava as hipóteses de amá-la sobre a banca em mármore da cozinha.

Porém, o tempo passava. As horas doíam-me como a lâmina afiada de uma navalha. Sibilinamente cortantes. E ela não vinha e uma mina de carvão descia, com os cigarros, pelo meu peito apertado junto ao corpo esponjoso dos pulmões. A cabeça a supor. O suor a lavar-me. E ela ausente, cada vez mais, pelo dentro das horas. O choro desesperado a conter-se-me.

Meu animal engravidado de mim, não vinha.

Lembro-me, depois, do telefone a gritar no quarto, da flor de maracujá tão alvamente a murchar, a previsão do desastre que eu adivinhava vir a acontecer.

- Alô?

Respondeste:

- Não volto, estás alcoolizado!

Sei que pousei a mão sobre uma mesinha de pau-preto. Olhei-a partir, depois, para o tabaco, para o dourado do whisky que havia trazido num copo com o seu nome no aroma. O cigarro voou volatilizado nas pulsações da tragédia e o queimar da bebida foi devagar arder no desastre.

Não disse nada. Também, assim, as palavras não são para dizer-se. Fui descansá-las para algum poema, fazê-las beberem-no.

Nostálgico, chamei as mãos para o Caetano Veloso e pedi-lhe que me fizesse chorar – é sempre assim quando acontece eu estar triste. A voz mulata foi subindo devagar para as paredes da casa, como se as fosse limpar do que dela, agora sobrava.

Uma fotografia a preto e branco, um recado que me havia dado pela manhã, no batom do beijo, um poema emoldurado na parede e um colar de missangas minúsculas com que a havia de casar. E, ao lado, eu infeliz a descobrir o que ela não havia descoberto: que tinha parido um poeta.

Foi bom. Apenas estou infeliz por ela não ter podido ganhar com a tristeza da paciência. Hoje eu bebo, faço amor, choro muito e escrevo versos.

É a vida.

White, Eduardo. O manual das mãos. Porto: Campo das Letras, 2004. pp. 57-60.

sábado, 19 de abril de 2008

Manuel Rui – Memória de Mar

A esperança e a história revistas em Memória de Mar, de Manuel Rui

No pós-colonialismo enfrentado pelos países africanos de língua portuguesa, houve preocupação dos escritores em fazer uma literatura voltada para a reconstrução da própria história, retomada pelo olhar do colonizado, e a incessante busca pela afirmação da identidade, ou seja, libertar-se do pensamento opressor do colonizador.

Tais dilemas fomentaram crises nas gerações anteriores que viveram sob o jugo colonial. Situação que foi se modificando no decorrer do século XX quando os escritores começaram a ter voz e a expor os seus textos. Nesse momento, a imprensa teve papel fundamental, dando espaço às obras literárias, assim como as obras publicadas por escritores como Castro Soromenho, Alfredo Troni, Óscar Ribas e outros fomentam a difícil tarefa do angolano em ser o ator principal de sua literatura.

No caso de Angola, os movimentos literários "Vamos descobrir Angola" e as revistas homônimas “Mensagem”, publicadas em Luanda e Lisboa, nas décadas de 1940 e 1950 foram manifestações essências na consolidação da angolanidade. A partir daí, os escritores angolanos assumiram postura contrária ao sistema opressor em que viviam e participam ativamente da guerra colonial, no início dos anos 1960. A Professora Rita Chaves (USP) sintetiza o drama do escritor como protagonista de sua história:

“(...) as primeiras narrativas que pontuam a história da literatura angolana não conseguem despir-se completamente de uma visão lusa. (...) a inconsistência do angolano como personagem das narrativas é, em certa medida, referência a sua inconsistência como personagem de sua história. (...) o angolano precisava conquistar a sua voz para percorrer o caminho que o levaria à reconquista de sua terra, à recuperação de sua liberdade.” (CHAVES, 2005, p. 73)

Com a independência conquistada, os impasses que afligiam os escritores angolanos puderam ser encarados com a profundidade exigida, e deram continuidade ao processo de exorcizar o passado colonial. Manuel Rui é um dos nomes fundamentais desse processo. Sua obra literária, com o constante recurso da ironia, trata dos problemas vivenciados pela sociedade angolana na construção de um novo país, empenhando-se na defesa do caráter multirracial e plural da cultura angolana, passando pelos desvios ideológicos dos dirigentes políticos que não cumpriram os ideais revolucionários, após 1975.

No livro “Memória de Mar”, publicado em 1980, pela União dos Escritores Angolanos, a narrativa aproxima-se do fantástico, com a utilização de vários tempos narrativos no desenrolar da história, e o uso de personagens-tipo. Trata-se da expedição feita por um pequeno grupo formado por um major, um historiador, um sociólogo e o narrador-personagem à “ilha dos padres”, local em que, misteriosamente, seus habitantes ficaram incomunicáveis após a independência angolana, em 1975.

Valendo-se de fina ironia, Manuel Rui ataca duas instituições que apoiavam o colonialismo: a Igreja Católica e as forças militares portuguesas.

Desde o primeiro contato com os religiosos, moradores da ilha e fervorosos devotos de Nossa Senhora de Fátima, que o narrador-personagem demonstra diversas facetas dos religiosos portugueses, tais como a contrariedade ao ateísmo do regime comunista: “Sim. Compreendo senhor major e melhor compreenderá o senhor deus, pai e senhor dos céus e da terra. E com cariedade perdoará.” (RUI, 1980, p. 22); o preconceito aos angolanos que aderiram à fé católica, e são tratados como ‘serviçais’, as justificativas em pertencer a uma casta superior e no domínio português:

“–Ali são os serviçais. (...) trabalham aqui e, em compensação, ganham a fé em deus e salvam a alma. Noutros tempos, alguns houve, como vereis, que conseguiram aproximar-se mais de deus, estudar humildemente e obter a ordenação. Engrossamos assim o nosso exército de cruzada com uma espécie de oficiais de segunda linha, isto sem ofensa pois eles manejam tão bem a cruz e a palavra de deus como qualquer um de nós.
– Nós quem? – perguntou o sociólogo.
– Nós os religiosos de origem, os que chegámos aqui para evangelizar. (...) nós os que não descendemos do gentio, viemos de longe, deixamos a pátria e família com a sagrada missão de cristianizar esta terra.” (RUI, 1980, p. 23)

O narrador não deixa de denunciar o aspecto político da Igreja em ter que se adaptar aos novos tempos, procurando, assim, manter a parceria com o poder vigente, até então oprimido. Na nova conjuntura busca modificar, inclusive, a imagem de Nossa Senhora de Fátima, aproximando-a dos traços físicos e cor da etnia dominante. Com a mudança, a Igreja procura continuar manipulando a população e se manter junto ao poder político.

“(...) chegaram os bispos a lavrar uma acta de aditamento. Nela se teciam elogios à senhora de Fátima. Debatia-se a palavra nossa que antecedia senhora e a urgente necessidade de o rosto agora ser pintado de preto, por razões políticas, tendo-se registado também a possível alteração de feições. E, levantada que foi em acta a maka racial, ficou em dúvida se, daí para o futuro, a santa não deveria figurar albina.” (RUI, 1980, p. 110)

Um outro aspecto interessante abordado pelo narrador, em contraponto ao catolicismo, é a valorização da mitologia angolana, representada pela Quianda, a sereia do mar. Embora houvesse a proibição dos superiores religiosos sobre os serviçais, a Quianda estava presente não só no imaginário, mas com presença real entre os angolanos, como podemos inferir no episódio da visita da imagem da N.S. de Fátima à ilha e o desastre que poderia acontecer:

“Correu até o sacrílego boato de que se ela viesse, Quianda, sereia do Kwanza, passaria para aquém da foz até ao canal a revolver as águas em tempestades contra a santa imagem. Creio que o boato partiu dos serviçais ou de algum padre de segunda linha por desbantuizar completamente.” (RUI, 1980, p. 29)

O sincretismo religioso está inserido entre os religiosos desde o início da ocupação da ilha, como revela um griot. O griot tem presença fundamental nas etnias angolanas, pois é o detentor da sabedoria e da memória oral de seu povo, aqui a serviço da religião católica. Ele relembra que, nos primeiros anos de permanência na ilha, o líder espiritual português D. Junqueira fazia uso de “parte dos costumes do continente” (RUI, 1980, p. 65) africano em favorecimento à fé católica, como verificamos na passagem a seguir:

“E assustava os serviçais originários do sul com uma estória do norte. A da Quianda, sereia do Kwanza, que num dia qualquer por maior zanga, cansada de assistir a tanta infidelidade a deus, navegaria para a foz rasgando a barra e, num instante, estoirava a sua fúria numa calema de submergir a ilha e seus habitantes. D. Junqueira apaixonara-se pelos mitos diluvianos e serenídeos. Era dessa arte que ele também assustava os serviçais do norte com estórias do sul, metendo feiticeiros da chuva e inundações, terrível castigo para os infiéis.” (RUI, 1980, p. 66)

Sobre a personagem D. Junqueira, há uma forte passagem que demonstra a hipocrisia do catolicismo em relação ao comportamento e à rigidez de conduta dos padres em relação ao sexo, ainda mais sendo o padre o modelo de conduta:

“Copiavam D. Junqueira em tudo. Por isso, a partir do momento em que um dos serviçais, casualmente, observara D. Junqueira, oculto entre os limoeiros, a mastubar-se com os olhos fixos nas freiras que ao longe colhiam flores para o templo, também os serviçais se masturbavam com o pensamento, que jamais algum deles havia praticado tal acto com os olhos postos em algumas das religiosas.” (RUI, 1980, p. 67)

Tal fato fez com que os serviçais exigissem mulheres, o que contrariou D. Junqueira. O padre mandou que fosse construída uma torre, prendeu todos os serviçais em cruzes, desmentiu o acontecido e as histórias locais, e mandou retirar as freiras do convento, como narrou o griot:

“E tudo se pôs fim – disse o griô – por D. Junqueira ter descoberto todos os cabecilhas. Mandado eles próprios construir uma torre que só acabava no céu. Obrigando um serviçal sabido de lendas de sua terra, contar a estória de Catanda, o homem que subiu, subiu, até roubar a lua. Depois, concluída a torre que tocava o céu, D. Junqueira obrigou cada cabecilha a fabricar uma cruz do tamanho de um homem. E cada um foi amarrado à cruz. E D. Junqueira falou um sermão dizendo que era mentira terem-no visto em gesto tal por entre os limoeiros. Que a mulher era uma coisa sagrada e, como tal, não devia ser comprada de alembamento, muito menos desejada, vorazmente, como um naco de carne. Que olhassem o exemplo da virgem Maria, mãe do senhor. E falou mais: que aquela história da Catanda era mentira porque Catanda era infiel. E os infiéis só ganhavam céu ou mesmo lua por mor de penitência apagadora de pecados. Então, mandou ele recolher as freiras aos retiros. (...) Mandou repicar os homens com uma mistela de óleo de palma, incenso e mirra. Mandou-os subir com as suas cruzes a escalada da torre. Mandou que os outros todos se ajoelhassem de mãos e olhos bem postos no céu. E ele próprio, D. Junqueira, pegou fogo à torre dizendo: perdoai-lhes senhor! Que não sabem o que fazem.” (RUI, 1980, p. 67-68)

O ato de D. Junqueira é revisto pelos religiosos contemporâneos diante dos estrondos da guerra colonial, como uma espécie de maldição sobre a Terra. A proximidade da independência angolana altera os hábitos dos padres e serviçais, que, indiretamente, voltam-se para as manifestações espirituais locais e exigem o acerto de contas com o passado, porém, de acordo com as tradições angolanas:

“ninguém jamais poderia esquecer o tempo de D. Junqueira. A torre. O incêndio. D. Junqueira ofendera o céu, desmentindo a verdade de Catanda, o herói que chegara à lua. Além disso, mandara queimar vivos os homens que falaram em nome de todos, reivindicando mulheres, nem que fossem as freiras. Que agora era tempo de satisfazer a reivindicação. O padre ficou perplexo. (...) Aí, os serviçais quiseram explicar o que faltava resolver: o ajuste de contas com D. Junqueira, o céu, a terra, o mar, e a Quianda. O superior era pela paz. Rogava pelo fim dos estrondos e temia pela segurança da ilha. Então, ao menos, que indicasse tantos padres quantos os homens que D. Junqueira incendiara na torre. Que se fizesse um cortejo de dongos e cânticos de escravos. Que o cortejo fosse pela costa até à barra, afrontasse a rebentação da baba da sereia. Que entrasse no rio até a calmaria da água doce e o fresco da floresta. Que se acendessem velas. Que o superior benzesse os padres encomendasse suas almas. Que os padres fossem atirados à Quianda. E, pago o tributo, que o cortejo regressasse à ilha para um comba sem quaisquer limites com o levantamento da proibição de bebidas fermentadas. Depois, quando chegasse o varrer as cinzas, sucumbiria a ira da sereia para o fim da guerra. O superior respondeu que nunca supusera um tão grande retrocesso naqueles espíritos que ele ajudara no caminho do céu. Não desejava contrariar as tradições. Mas aquilo era uma heresia.” (RUI, 1980, pp. 69-71)

Como as oferendas não foram feitas, o padre sofre as conseqüências por não respeitar as tradições locais, como é narrado pelo griot enquanto segurava um crucifixo atestando o sincretismo religioso:

“Não passaram os estrondos – prosseguiu o griô – e dias depois, quando na ilha se comemorava a padroeira, a Quianda cumpriu sua promessa, rasgou a barra, entrou no oceano e, quando o superior se punha em fuga numa embarcação roubada, ante o susto de ainda ver a sereia engolir o busto de D. Junqueira, também ele, superior, foi engolido pela boca da sereia.
E, segurando um crucifixo pendurado ao pescoço, o griô disse: tudo tem o seu fim. Também a Quianda havia desaparecido para sempre.” (RUI, 1980, pp. 72-73)

Ao referir-se aos militares portugueses, o narrador-personagem é mais cruel em sua ironia, que beira o sarcasmo. Ao retratar militares que se encontram em um submarino e não têm noção do que acontece nas batalhas em Angola.

A princípio, um comandante demonstra confiança e arrogância ao mencionar o apoio internacional que Portugal teria. Tal posição é contrária à opinião internacional, que pressionava Portugal a abandonar as colônias africanas e aceitar a independência destas, principalmente após a revolução dos Cravos, em 25/04/1974. Ignora o avançar das forças angolanas, e não percebe a leviandade de suas declarações a uma mulher portuguesa retornada, que insultava a incompetência e traição dos militares:

"O certo é que o plano terá de se cumprir. É impossível que esses boçais resistem a tanta força. A norte os zairenses, mercenários e os aprendizes de Holden. Cá em baixo os sul-africanos, o elp e as multidões de Savimbi. Aliás, estão praticamente liquidados os meios de transporte dos comunistas. (...)
A esta hora Santos e Castro retomou Caxito. A coluna do sul queimou Porto Amboim e caminha sem problemas para Luanda. (...)
Haja o que houver a guerra está ganha. Demonstraremos em Lisboa o que foi a grande traição de vinte e cinco de Abril e desfilaremos no Terreiro do Paço com os generais fiéis às tradições da pátria." (RUI, 1980, pp. 79-80)

"Não merecemos as suas palavras insultuosas. Não traímos nem a fé nem o império. Estamos integrados em um plano conjunto. Forças zairenses, fenelá, unita, a fina flor dos mercenários, elp, sul-africanos. Possuímos um enorme apoio dos Estados Unidos, França, Alemanha Federal e outros países do mundo civilizado. Armamento não nos falta, incluindo o chinês e devo dizer-lhe que depois da segunda guerra mundial, a marcha que se faz neste momento sobre Luanda em várias frentes, é, sem dúvida, a maior marcha de blindados que a história registará." (RUI, 1980, p. 85)

Apreendemos a guerra colonial angolana inserida em meio ao contexto da Guerra Fria. O MPLA era apoiado pelo bloco comunista, e Portugal apoiava a UNITA (grupo de guerrilheiros angolanos contrários ao futuro regime comandado por Moscou) além de ter a ajuda da África do Sul e dos norte-americanos, estes não declarados oficialmente.

Hilariante é o diálogo entre o comandante e o náufrago, nu, que ele julga ser um mensageiro, mas, na verdade, é um dos religiosos da ilha dos padres. O religioso conta toda a história da ilha, da maldição, de rezar pela paz. Prosa que irrita o comandante, julgando-o louco ou espião comunista. Até que recebe um telefonema de Luanda e, finalmente, terá a exata noção do que acontece em terra:

"– Alô submarino, alô submarino responde Luanda. Os comunistas estão a proclamar a independência os blindados não entraram em Luanda corremos perigo sou obrigado a concluir comunicação receio interferência repito receio interferência inimiga terminado." (RUI, 1980, p. 95)

O comandante, perplexo, ordena a subida à superfície, porém o submarino é obrigado a submergir por causa dos ataques. Incrédulo, ainda, o comandante afirma:

"– Para baixo – gritou o comandante – não sei o que se passa mas parece que estamos a ser alvejados a partir dos nossos próprios barcos e com as nossas peças que afundamos na ilha. Para baixo!" (RUI, 1980, p. 97)

A submersão do submarino como metáfora do fim do colonialismo em Angola. “Tínhamos passado muitos anos debaixo do mar” (p. 105), relata o narrador-personagem. Emerge Angola independente, um recém-nascido país pronto para reconstruir a sua história. Dessa maneira, Manuel Rui contribui com um livro que procura reescrever a história do país, buscando no passado situações para compreender o presente e arquitetar o futuro. Fazendo prevalecer o caráter multirracial do povo e da cultura angolanos, e apesar de tantos anos de opressão, memória dilacerada e sonhos esgarçados, não há ódio, mas, sim, amor e esperança: “E era essa, talvez, a nossa maior vitória sobre o tempo: não sabermos odiar.” (RUI, 1980, p. 111) Entretanto, Manuel Rui sabe que “a realidade é sempre mais de sonho que o imaginário” como mencionou na epígrafe do livro, e já prever as dificuldades sociais, econômicas e políticas nos tortuosos caminhos da reconstrução que a utopia revolucionária encontrará, “porque o limite do sonho é sempre o real” (RUI, 1980, p. 118).
Ricardo Riso

BIBLIOGRAFIA:
CHAVES, Rita. O passado presente na literatura angolana. In: Angola e Moçambique – experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Atelier Editorial, 2005. pp. 45-62

RUI, Manuel. Memória de mar. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1980.

MANUEL RUI NESTE BLOG:
Eu e o outro – o invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Émile Zola e Aluísio de Azevedo

A função social da mulher em Naná e O cortiço, uma análise comparativa*

Ricardo Riso

A presente análise comparativa abordará as tensas relações sociais sob o ponto de vista das personagens femininas, com ênfase nas prostitutas, em dois romances do final do século XIX: Naná, de Émile Zola, e O cortiço, de Aluísio Azevedo. Ambos os livros escoram-se nas teorias cientificistas amplamente divulgadas à época, que especulavam sobre o comportamento humano pelo naturalismo e o determinismo, influenciadores das classes sociais a partir do meio em que viviam.

O romance naturalista vem de encontro à estética romântica dominante no século, pois propõe-se a apresentar o real a partir de ideais deterministas, tais como raça e meio. Segundo Alfredo Bosi, “o Realismo se tingirá de naturalismo, no romance e no conto, sempre que fizer personagens e enredo submeterem-se ao destino cego das ‘leis naturais’ que a ciência da época julgava ter codificado”. (BOSI, p. 187)

Isso leva o romance a eliminar o subjetivismo, a mostrar situações típicas e personagens-tipo: “ambos, enquanto síntese do normal e do intelegível, prestam-se docilmente a compor o romance que se deseja imune a tentações da fantasia”. (BOSI, p. 189)

O romance se concentra em situações urbanas, questiona a hipocrisia e a mediocridade que moldam o convívio social, teoriza, pelo determinismo, corrente filosófica preponderante, o destino de seus personagens.

Entretanto, ao exportar tais pensamentos da Europa para a realidade brasileira, nossos intelectuais entram em conflito com os modelos sociais urbanos, aqui encontrados. No caso de Azevedo, os cortiços do Rio de Janeiro metonimizam o país. O escritor nacional procura fugir do modelo português, mas, como percebemos em O cortiço, apesar de Azevedo denunciar a relação explorador-explorado, representada pelo português e pela junção negro-mestiço, deparamo-nos que o único modelo de ascensão social se dá com o personagem João Romão, dono do cortiço.

Romão, para conseguir mudar de posição, acumula capital de todas as maneiras possíveis, conforme aponta Sant’anna: “a cada avanço na escala social e financeira corresponde a um degrau abaixo na degradação moral e humana” (SANT’ANNA, p. 107). Ele mente e explora Bertoleza, rouba materiais, maltrata os inquilinos enquanto expande o cortiço, abre uma venda, torna-se proprietário de uma avenida etc. Antonio Candido complementa que:

“Aluísio escolheu para objeto a acumulação do capital a partir das suas fases mais modestas e primárias, situando-o em relação estreita com a natureza física, já obliterada no mundo europeu urbano. No seu romance o enriquecimento é feito à custa da exploração brutal do trabalho servil, da renda imobiliária arrancada do pobre, da usura e até do roubo puro e simples, constituindo o que se poderia qualificar de primitivismo econômico”. (CANDIDO, p. 113)

Depreendemos que para o português crescer na sociedade não deve se misturar com o meio em que vive, apesar de viver nele, o que é constatado com o outro português, inquilino do cortiço, Jerônimo. Este, quando chega é um exemplo de trabalhador, austero e bem casado. Contudo, envolve-se com o meio, passa a gostar da música brasileira, é seduzido por Rita Baiana, começa a tomar vários banhos por dia, relaxa com o trabalho e, assim, inicia sua derrocada como demonstra o narrador ao “estabelecer uma competição entre a sensibilidade européia e a brasileira, descrevendo como o europeu sucumbe quando abre seus sentidos ao sol dos trópicos” (SANT’ANNA, p. 108).

Podemos constatar que há, em Azevedo, certo nacionalismo diante da exploração do português. Há incômodo perante a postura do estrangeiro, porém o autor não apresenta alternativas para o brasileiro, submetido a uma raça inferior e ao meio. Segundo Candido:

A visão dos intelectuais brasileiros do final do século XIX era bastante ambígua, pois não encontrando nas obras da civilização apoio suficiente para justificar o orgulho nacional, eles recuavam para a natureza como segunda linha, entrincheirando-se numa posição que era também capitulação, ao ser um modo colonial e pitoresco de ver o país. (CANDIDO, p. 116)

O determinismo do meio levou Candido a apontar três possibilidades de atuação para os personagens de O cortiço: “1. português que chega e vence o meio; 2. português que chega e é vencido pelo meio; 3. brasileiro explorado e adaptado ao meio”. (CANDIDO, p. 116)

Aluísio Azevedo inspira-se nos romances de Émile Zola, porém, neste, os conflitos entre os personagens ampliam-se. Por ser oriundo de um país colonizador europeu, a opressão econômica não é tão enfatizada por Zola, mas, sim, as hipocrisias da sociedade urbana parisiense e as sutilezas que regem o convívio. Contudo, ainda vemos o “senhorio cobrando aluguéis nos momentos difíceis” (CANDIDO, p. 113), ou desalojando aqueles que não o pagam, como a personagem Satin: “havia seis meses que o senhorio ameaçava pô-la fora”. (ZOLA, p. 219)

A função da mulher

A mulher no romance naturalista é bem diferente da representada pelos românticos. De acordo com Sant’anna, “a mulher é descrita principalmente como fêmea, que se acasala com o macho por interesses físicos e materiais” (SANT’ANNA, p. 109), ou seja, suprime-se a mulher idealizada do Romantismo.

Sant’anna, em sua análise sobre O cortiço, que podemos estender para Naná, apresenta três tipos de mulher:

“a) a mulher-objeto que é trocada como nas sociedades primitivas; b) a mulher sujeito-objeto que aceita as regras do sistema dando tanto quanto recebe; c) mulher-sujeito que regula os regimes de troca capaz de impor condições e manobrar o macho em benefício próprio.” (SANT’ANNA, p. 109)

No primeiro caso, podemos citar a personagem Bertoleza, de O cortiço. Mulher que se une a João Romão no princípio da construção do cortiço, é a fêmea explorada pelo seu corpo e pelo seu trabalho. Mais adiante, com a ascensão social de Romão, é desprezada sexualmente por ele por ser de uma raça diferente (inferior) e tem o seu trabalho aumentado. Já em Naná, a mulher-objeto está presente na relação de Bordenave com as mulheres do seu teatro, que são tratadas como animais por ele, podendo substituí-las a qualquer momento. É o que acontece quando Naná toma o posto de atriz principal de Rose Mignon, e depois quando ela própria é trocada por Violine. Inferimos que as relações nos casos apresentados são circunstanciais, pois as mulheres somente atuam enquanto possuem alguma utilidade.

Para exemplificar a mulher sujeito-objeto podemos citar o casal Mignon, em Naná, e o casal Estela/Miranda, em O cortiço. Os dois homens da relação são dependentes financeiros das mulheres, com isso, ambos aceitam suas infidelidades e, assim, não perdem a posição social. O sistema de trocas é intenso, M. Mingon oferece a esposa como no exemplos a seguir:

“uma só preocupação lhe era constante, aumentar os bens administrados com uma austeridade de intendente fiel o dinheiro que Rose ganhava no teatro e fora dele. Quando ele a desposara, então regente de orquestra no café-concerto em que ela cantava, amavam-se apaixonadamente. Hoje, eram bons amigos. Estava acertado entre eles: ela trabalhava o mais que podia, com todo o seu talento e sua beleza; ele deixara o violino para melhor valer pelos êxitos da artista e da mulher. Não se teria encontrado um lar mais burguês nem mais unido...” (ZOLA, p. 93)

“Sabe do que ele é capaz? Espera repetir o que fez com o pequeno Jonquier... Lembra-se de Jonquier, o que estava com Rose e que tinha um xodó especial por Laure, a alta?... Mignon conseguiu Laure para Jonquier, depois levou-a de braço dado à casa de Rose, como um marido a quem acabam de permitir uma travessura...” (ZOLA, p. 97)

“D. Estela era uma mulherzinha levada da breca: achava-se casada havia treze anos e durante esse tempo dera ao marido toda a sorte de desgostos. Ainda antes de terminar o segundo ano de matrimônio, o Miranda pilhou-a em flagrante delito de adultério. (...) mas a sua casa comercial garantia-se com o dote que ela trouxera, (...) Prezava, acima de tudo, a sua posição social e tremia só com a idéia de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem coragem para recomeçar a vida, depois de se haver habituado a umas tantas regalias e afeito à hombridade de português rico que já não tem pátria na Europa.” (AZEVEDO, p. 19)

Como mulher-sujeito, destacamos as que se impõem em relação ao poder masculino, subvertendo os padrões sociais da época, algo que as prostitutas conseguem atingir através do sexo, o conseqüente desprezo pelos homens e seu dinheiro. Léonie é o tipo de mulher que sai do cortiço e torna-se prostituta da alta sociedade. Embora ainda seja um tipo marginalizado, por ter alcançado uma camada social elevada é admirada pelos moradores do cortiço. Ela conduzirá Pombinha ao mesmo destino. Sant’anna afirma que: “Repete-se em, termos onomásticos o determinismo: a pombinha vai ser devorada pela leoa através da iniciação homossexual”. (SANT’ANNA, p. 110)

Com o meio determinando o destino das personagens, à frente veremos, que Pombinha fará o mesmo com a filha do casal Jerônimo/Piedade, Senhorinha, que ficou abandonada após a saída do pai e a mãe ter se tornado alcoólatra: “A cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria.” (AZEVEDO, p. 201) Influenciada pelo estilo de Léonie, Pombinha desinteressa-se pelo marido, pela vida pacata e discreta que leva:

“a princípio, para conservar‑se mulher honesta, tentou perdoar‑lhe a falta de espírito, os gostos rasos e a sua risonha e fatigante palermice de homem sem ideal; ouviu‑lhe, resignada, as confidências banais nas horas intimas do matrimônio; atendeu‑o nas suas exigências mesquinhas de ciumento que chora; (...) não lhe falou nunca em coisas que cheirassem a luxo, a arte, a estética, a originalidade; escondeu a sua mal‑educada e natural intuição pelo que é grande, ou belo, ou arrojado, e fingiu ligar interesse ao que ele fazia, ao que ele dizia, ao que ele ganhava, ao que ele pensava e ao que ele conseguia com paciência na sua vida estreita de negociante rotineiro; mas, de repente, zás! faltou‑lhe o equilíbrio e a mísera escorregou, caindo nos braços de um boêmio de talento, libertino e poeta, jogador e capoeira. (...) daí a meses, Pombinha desapareceu da casa da mãe. (...) Só a descobriu semanas depois; estava morando num hotel com Léonie. A serpente vencia afinal: Pombinha foi, pelo seu próprio pé, atraída, meter‑se‑lhe na boca.
Agora, as duas cocotes, amigas inseparáveis, terríveis naquela inquebrantável solidariedade, que fazia delas uma só cobra de duas cabeças, dominavam o alto e o baixo Rio de Janeiro. Eram vistas por toda a parte onde houvesse prazer; a tarde, antes do jantar, atravessavam o Catete em carro descoberto, com a Juju ao lado; à noite, no teatro, em um camarote de boca chamavam sobre si os velhos conselheiros desfibrados pela política e ávidos de sensações extremas, ou arrastavam para os gabinetes particulares dos hotéis os sensuais e gordos fazendeiros de café, que vinham à corte esbodegar o farto produto das safras do ano, trabalhadas pelos seus escravos. Por cima delas duas passara uma geração inteira de devassos. Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera‑se tão perita no ofício como a outra; a sua infeliz inteligência, nascida e criada no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida; seus lábios não tocavam em ninguém sem tirar sangue; sabia beber, gota a gota, pela boca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a vitima pudesse dar de si.” (AZEVEDO, pp. 199-201)

Em Naná, a relação mulher-sujeito é mais complexa. Naná despreza os seus parceiros, procura manter a liberdade de ter quem quiser graças a sua beleza estonteante. Com os homens que cedem aos seus caprichos, querendo uma relação estável, Naná humilha-os. Deseja-os submissos, exige presentes e posses caras; também fidelidade, mas não admite que a controlem, como aconteceu com banqueiro Steiner e o conde Muffat. Os dois, em momentos diferentes, compram casas para Naná, porém só podem freqüentá-las em horários determinados e devem aceitar que Naná receba seus “amigos”, e quando lá estão são tratados com desdém: “Quanto a Steiner, dormira no divã do salão”. (ZOLA, p. 166) Enganava-os, como, a seguir, com Muffat:

“Por que lhe tinha mentido mais uma vez? De manhã, ela lhe escrevera que não se incomodasse à noite, pretextando que Louisse estava doente, e que passaria a noite em casa de sua tia, a velá-lo. Mas ele, desconfiado, apresentara-se em casa dela e soubera pela porteira que a senhora acabava justamente de partir para o seu teatro. (...)”(ZOLA, pp. 179-180)


Sua luxúria leva os homens à falência, cegos pela sedução só percebem-na quando já é tarde. No seguinte trecho, Muffat está reflexivo ao deparar-se com a realidade:

“O jornal tinha caído-lhe das mãos. Naquele minuto de visão nítida, sentia desprezo por si próprio. Era aquilo: em três meses ela corrompera-lhe a vida, sentia-se gasto até a medula por porcarias de que nunca suspeitara. Tudo ia apodrecer nele, dali em diante. Teve, por um instante, consciência dos acidentes do mal, viu a desorganização levada por aquele fermento, ele envenenado, a sua família destruída, um canto de sociedade que estalava e derruía. E, não podendo desviar os olhos, olhava-a fixamente, tentava encher-se de nojo pela sua nudez.” (ZOLA, p. 191)

Determinismo e hipocrisia social

Apreendemos que Zola, de certa maneira, escorando-se no cientificismo da época, culpa as mulheres pelos desvios de conduta masculinos. Porém, para ele, a questão é mais complexa. O autor vasculha as sutilezas do comportamento social parisiense. Embora as prostitutas venham de uma classe social inferior, elas transitam pela alta sociedade, como companheiras dignas dos homens, para depois serem desmascaradas. Walter Benjamin esclarece a questão, lembra que “representar os prazeres do adultério sem provas é um dos temas populares preferidos entre os dramaturgos”, do século XIX, e cita as pensões retratadas por Ferdinand von Gall em seu livro “Paris e seus salões”:

“Nele se fica sabendo que, em inúmeras pensões, era do regulamento que, à hora do jantar, do qual podiam participar pessoas estranhas, desde que previamente anunciadas, estivessem presentes algumas mundanas, cuja tarefa era parecerem moças de boa família, e que, de fato, não estavam dispostas a deixar cair a máscara de imediato; antes, envolviam-se num invólucro de decoro e cordialidade, que parecia não querer acabar nunca, e que, para ser retirado, dependia de um farto jogo de intrigas, que, afinal de contas, aumentava seu preço.” (BENJAMIN, p. 241)

Apesar das duas classes freqüentarem o mesmo ambiente, Zola vale-se do determinismo biológico para mostrar a distinção entre os seres. Em razão disso, as mulheres são associadas à sujeira, ao desleixo, à falta de educação, como na passagem em que descreve o quarto de Satin:

“em menos de treze meses, ela quebrara os móveis, afundara as cadeiras, numa tal gana de sujeira e desordem que a casa parecia habitada por uma matilha de gatas doidas. Nas manhãs em que ela própria, enojada, queria limpar, ficavam-lhe nas mãos paus de cadeiras ou farrapos de tapeçaria, à força de brigar ali dentro com a imundice. Naqueles dias, ficava tudo ainda mais sujo, não se podendo entrar ali, porque havia coisas quebradas atravancando as portas.” (ZOLA, p. 219)

Seguindo o determinismo biológico, Zola apresenta, em várias passagens, além das comparações com animais, as características físicas que comprovam a condição inferior:

“duas garotas, muito alegres, mostravam uma à outra os seus sinais” (ZOLA, p. 141)
“Dobrara o pescoço, olhando com atenção ao espelho um sinalzinho trigueiro que tinha por cima da anca direita.” (ZOLA, p. 191)
“Naná tinha uma penugem, um musgozinho de pelinhos ruivos que fazia de seu corpo um veludo; mas nas suas ancas e nas suas coxas de égua, nas intumescências cavadas em dobras profundas, que davam ao sexo o véu perturbador da sua sombra, havia qualquer coisa de animal. Era o animal de ouro, inconsciente como uma força, e cujo simples cheiro estragava o mundo.” (ZOLA, p. 192)

Entretanto, tais apontamentos deterministas nunca foram corretos, como seria tão questionado no decorrer do século XX. A narrativa de Zola apresenta-nos a linha tênue das relações sociais, uma curiosa passagem é transcrita a seguir:

“Mas, à medida que a noite se adiantava, se ainda não tinham feito uma ou duas viagens à Rue la Rochefoucauld, voltavam à prostituição barata, a sua caça tornava-se mais difícil. Havia ali, junto das árvores, ao longo dos bulevares ensombrados que se despejavam transações ferozes, palavras obscenas e pancadas, enquanto famílias honestas, pai, mãe e filhas, habituadas àqueles encontros, passavam tranqüilamente, sem apressarem o passo.” (ZOLA, p. 235)

Em uma séria discussão com o Conde Muffat, Naná ironiza as mulheres da alta sociedade, incluindo todas em um mesmo patamar:

“– Que não as conheço! Mas elas nem decentes são, as tuas mulheres honestas! Não, nem limpas são! Desafio-te a encontrares uma que ouse mostrar-se como eu! Na verdade, dás-me vontade rir com as tuas mulheres honestas! (...) Eu, se fosse homem, é que havia de fazer pouco das mulheres! As mulheres, tu vês, da alta como da baixa, são todas as mesmas coisas: todas querem divertir-se (...) (ZOLA, p. 196-197)

O vínculo com a sujeira tão declarado entre as prostitutas é observado por elas. Satin critica os ideais deterministas e a dissimulação dos homens, surpreendendo Naná com suas colocações e jogando-lhe a dúvida:

“Nas noites úmida, quando Paris molhada exalava um cheiro enjoativo a grande alcova pouco limpa, ela sabia que esse tempo mole, esse odor de recantos suspeitos, enlanguescia sensualmente os homens. (...) É verdade que ela tinha um certo medo, porque os mais finos eram os mais porcos. Todo o verniz estourava e a besta aparecia, exigente nos seus gostos monstruosos, requintando a sua perversão. Por isso aquela meretriz da Satin faltava ao respeito, rindo às gargalhadas, diante da dignidade das pessoas que andavam de carruagem, dizendo que os seus cocheiros eram mais amáveis, porque respeitavam as mulheres e não as mortificavam com idéias de outro mundo. A queda das pessoas finas na crápula do vício surpreendia Naná, que conservava ainda preconceitos de que Satin a embaraçava. Então, como ela dizia quando conversava a sério, já não havia virtude? De alto a baixo, tudo rolava? (ZOLA, p. 236)

As contradições das teorias cientificistas, mais precisamente o realismo/naturalismo comum entre os intelectuais do período, são questionadas por Naná em forma de metalinguagem. Ela discorda da forma que uma personagem é tratada em um livro que acabara de ler, e notamos a ironia com que o autor trata os escritores românticos em relação aos novos tempos:

“Tinha lido durante o dia um romance que era muito falado, a história de uma prostituta; e revoltava-se, dizia que tudo aquilo era falso, denunciando uma repugnância indignada por aquela literatura imunda, cuja pretensão era descrever a realidade. Como se todas as coisas se pudessem mostrar! Como se um romance não devesse ser escrito para se passar uma hora agradável! Em matéria de livros e de dramas, Naná tinha opiniões definitivas: queria obras ternas e nobres, coisas que a fizessem sonhar e engrandecer a alma. Depois, tendo a conversa caído na perturbação que agitava Paris, nos artigos incendiários da imprensa, nos começos de motim a seguir ao chamamento às armas lançado todas as noites nas reuniões públicas, enfureceu-se contra os republicanos.” (ZOLA, p. 293)

Conclusão

Apreendemos que Aluísio Azevedo utiliza idéias importadas para tentar compreender a sociedade brasileira em construção através do cortiço (meio) e do negro e mestiço brasileiros (raça), inclusive inspirando-se em um autor francês, Émile Zola. Tal preocupação em representar um problema nacional, torna seu romance específico a nossa realidade, porém diminui qualquer impacto universal. Contudo, O cortiço, retrata, de certa maneira, as inquietações da intelectualidade brasileira que ainda se espelhava em soluções européias para explicar nosso país. Posição que somente avançaria com Lima Barreto e os modernistas da Semana de 1922.

Émile Zola, liberto da necessidade de representar o país, conseguiu fazer um romance de alcance universal, explorando as contradições dos relacionamentos sociais parisienses, todavia, mostrando a mulher como um ser inferior e animal.

Nos dois romances, a mulher é apresentada como ser submisso às vontades masculinas, uma fêmea. Somente as prostitutas ganham relevância, embora mantenham a marginalidade, e fazem do desprezo aos homens o escudo para alcançar alguma liberdade e controle sobre si. Algumas conseguem mudar de classe social quando casam-se por interesse com um homem velho e rico. A partir daí, contam com a hipocrisia da sociedade para se tornarem “damas” ou “madames”. Outra alternativa de liberdade é dada por aquelas que não fazem da prostituição uma profissão; mantendo-se casadas, assumem infidelidades constantes, protegendo-se nos dotes ou, no medo dos maridos em ter a vida arruinada por um escândalo e descerem na escala social.

*Análise feita para a disciplina Literatura Comparada - UNESA - abril/2008.

BIBLIOGRAFIA:
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Ática, 2004.
BENJAMIN, Walter. Jogo e prostituição. In: Charles Baudelaire – um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1991.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1975.
CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In: Novos estudos Cebrap nº 30, julho/1991.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Análise estrutural de romances brasileiros. Petrópolis: Vozes, 1984.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Mia Couto: A resistência da ancestralidade espiritual em O adeus da sombra

A resistência da ancestralidade espiritual em O adeus da sombra, de Mia Couto

Ricardo Riso

A preservação da cultura autóctone moçambicana é uma constante na produção do escritor Mia Couto. Em O adeus da sombra, um dos contos de Estórias abensonhadas, o autor não faz diferente e mais uma vez nos apresenta sua genialidade no choque entre o regional e o universal, em travar o embate do cotidiano contemporâneo global que tanto afasta os moçambicanos de suas tradições seculares, e estes resistindo às inovações dos novos tempos.

A partir da doença que parece ser fulminante a vitimar sua vizinha, causada pelo desaparecimento de seu amado companheiro, o narrador conduz-nos a uma instigante reflexão entre a medicina do homem ocidental inserida em Moçambique pelo colonizador português, e o conhecimento tradicional do povo moçambicano que recorre aos homens mais velhos, sabedores dos poderes das plantas curadoras. Além de demonstrar como a questão da Saúde é tratada no país.

O conto passa-se durante o período da guerra civil moçambicana entre a FRELIMO (grupo político que permaneceu no poder no pós-independência) e a RENAMO (grupo armado apoiado pela Rodésia e África do Sul); e como não poderia deixar de ser, a guerra atua como pano de fundo para o conflito das tradições moçambicanas e o conturbado mundo moderno.

Uma menina adoece com a ausência inesperada e inexplicável do amado que pode ter sido morto em um ataque qualquer. Rotineiro, infelizmente. A mãe desesperada após ministrar “essências, queimando incensos, rezando bênçãos”[1] e com a sentença dada por um médico que decretou a proximidade da morte, procura o vizinho para ajudá-la, pois sabe que este adentrará as matas e entrega-lhe um exemplar de uma planta “capaz de descrucificar Jesus”[2]. Aqui encontramos o sincretismo religioso e o primeiro sinal de resistência da cultura moçambicana, apesar de assimilada pela religião católica trazida pelos portugueses ainda recorre às antigas tradições de cura das plantas medicinais.

O vizinho-narrador, que posteriormente apresenta-se como um biólogo (profissão de formação do autor), compromete-se em trazer a milagrosa planta e parte para a mata acompanhado de um guia, Julinho Casa’beto, recém ex-presidiário, que está sedento por conversa e não respeita o caráter sagrado da palavra: “A palavra é divinamente exata, e o homem deve ser exato como ela. Falar pouco é sinal de boa educação e nobreza.”[3] O motivo de sua prisão foi o assassinato de um homem, porém não foi um assassinato qualquer, matou para pegar a “moya” a pedido da mulher que amava. Ele justifica a moya como: “o respirar da vida”[4]; e o narrador espanta-se: “Aquele moço não era, afinal, o comum assassino. Ele matara não um ser mas a sua sombra, esse barco que nos faz navegar por pessoas e tempos”[5]. Segundo Nei Lopes, Mooyo (a energia vital), e não moya, diz: “todos os seres do Universo têm sua própria força vital, e esta é o valor supremo da existência. Possuir a maior força vital é a única forma de felicidade e bem-estar.”[6]. Quando o corpo acomete-se de doenças, ou há morte, “é conseqüência de uma diminuição da força vital, causada por um agente externo dotado de uma força vital superior. O remédio contra a morte e os sofrimentos é, portanto, reforçar a energia vital, para resistir às forças nocivas externas.”[7] E a respeito da sombra, Lopes comenta que: “Entre os elementos que compõem o ser humano, há o corpo físico, que desaparece após a morte e é uma exteriorização de sua riqueza interior e o receptáculo de suas sensações. Esse corpo vive acompanhado de uma sombra, que é a sua irradiação para o exterior e que também se desvanece com a morte”[8].

O narrador explica o motivo de sua ida à mata, a “agnóstica paisagem”: conhecer as plantas medicinais. Contudo, a pesquisa será cancelada por falta de investimento dos órgãos competentes. “Os dinheiros foram retirados, a coisa foi tida sem importância. Prioridades são outras (...)”[9] Ele critica abertamente o descaso com que a Aids (Sida) é tratada no seu país e no continente africano: “Proliferam as ciências desumanas e os cientistas ocultos. Que posso eu contrafazer?”[10], que afastam-se gradativamente da essência do homem, do descaso para com o próximo. A desterritorialização do narrador é sentida por seu guia ao questionar: “que anda fazer, abichando-se por estas selvas? (...) Mas o senhor sai do jardim para entrar no capim? É que cada um no seu buraco.”[11] Para enfatizar sua declaração, a ironia, largamente utilizada pelo autor, surge na inversão de provérbios: “Me diga, peço a desculpa: jibóia usa chinelos?”[12]

Podemos até pensar que há uma conspiração para que a situação desoladora da África fique como está ou até piore, pois, ao se manter o vírus da doença incurável, a indústria farmacêutica permanece com a produção e venda dos seus medicamentos, e encontra justificativa para a continuidade dos vultosos orçamentos para as pesquisas. Porém, descompromissada com a urgência em salvar vidas porque a descoberta da cura quebrará a perniciosa cadeia vigente.

A dupla chega ao lugar onde encontrariam uma curandeira, em um muti[13], tradicional aglomerado de casas de um mesmo grupo familiar, nas zonas rurais de Moçambique. O muti poderia ser o local que, segundo Bauman, “a reconstrução cultural tem limites que nenhum esforço poderia transcender. Certas pessoas nunca serão convertidas em alguma coisa mais do que são. Estão, por assim dizer, fora do alcance do reparo. Não se pode livrá-las de seus defeitos: só se pode deixá-las livres delas próprias, acabadas, com suas inatas e eternas esquisitices e seus males.”[14] E no muti outras tradições permanecem, como: “Ficamos sentados na entrada do muti, conforme os pedidos de licença. Em boa casa africana o dia transcorre fora da casa, no pátio. Por ali rondam as crianças, ciscam as galinhas.”[15] Até que chega a curandeira Nãozinha de Jesus[16]. A onomástica, outra característica da obra coutiana, apresenta-se. Na referida personagem, trata-se de um sinal de resistência à cultura invasora, à religião do colonizador apesar da assimilação do nome, que mesmo assim a nega. Contrária ao catolicismo imposto, procura perpetuar a tradição do conhecimento passado através da oralidade. Nãozinha de Jesus conhece a magia das plantas e “a magia é manipulação das forças e pode se revelar útil ou nociva, de acordo com o uso que dela se faz. (...) A boa magia, (...) visa a purificação dos seres, para recolocar as forças em ordem e evitar a morte”[17].

Nãozinha, com generosidade, inicia o narrador, e este com a humildade devida, no aprendizado das plantas medicinais. Assim é a passagem de conhecimento entre os povos africanos, cultura em que os mais velhos escoram-se em suas experiências de vida e a proximidade com os antepassados marcam a fundamental importância na sociedade, à qual Nãozinha é a curandeira de seu muti, sabedora das plantas curadoras que vêm do chão, cujo o avançar da idade está mais próxima dos antepassados que estão no chão. E a energia vital está no chão.

Sendo assim, o narrador revela a ela o motivo da aparição: que seria a última visita e mostra a planta pedida pela mãe da menina que está no leito de morte. Nãozinha não aceita a despedida: “Lhe prometera combatermos juntos, ambos querendo salvar os seus vitais materiais, guardar em mundo suas antigas sabedorias.”[18] Dessa maneira quebra-se o elo entre o arcaico e o moderno, a cura pelas plantas medicinais e a medicina “científica”. Na cultura tradicional o conhecimento é passado pela tradição oral, Nãozinha passava os seus conhecimentos para o narrador, e o conhecimento das plantas curadoras não poderia encerrar-se com ela, alguém tinha que continuar a tradição, mesmo que fosse um de fora, um que tenha estudado a medicina do homem branco como o narrador, conforme diz Lopes: “A transmissão oral do conhecimento é o veículo do poder e da força das palavras, que permanecem sem efeito em um texto escrito, (...) o Verbo Atuante, tem o valor de uma iniciação, que não está no nível da compreensão, porém na dinâmica do comportamento. Essa iniciação é baseada em reflexos que operam no raciocínio e que são induzidos por impulsos nascidos no fundamento cultural da sociedade.”[19]

Dessa maneira, será uma tradição que se perderá diante da avançada idade da curandeira e, que, talvez, com a obrigatória desistência do narrador, ninguém na aldeia queira se iniciar nas plantas medicinais. Assim, atua a cultura daqueles que estão no poder, através da assimilação desencorajando as novas gerações a conhecer a cultura dos antepassados, ou seja, tornar a diferença semelhante. Como diz Bauman: “em vez de se manter intacta a maneira como as coisas existiam, tornou-se mudar a maneira como as coisas ontem costumavam ser, criar uma nova ordem que desafiasse a presente (...) De fato, pode-se definir a modernidade como a época, ou estilo de vida, em que a colocação em ordem depende do desmantelamento da ordem ‘tradicional’, herdada e recebida; em que ser significa um novo começo permanente.”[20] O narrador ainda tenta uma última tentativa de aprender mais: “se andarmos juntos, nas devidas pressas”[21]; mas não é atendido pela curandeira: “Eu já não tenho após, meu filho. Para que as pressas?”[22] O processo de iniciação não pode ser acelerado, pois na cultura africana o aprendizado deve ser vivenciado, sentido, compartilhado às tarefas do cotidiano, o que leva a um acúmulo de conhecimento contínuo e constante. Porém, o desânimo de Nãozinha é evidente porque perde o seu discípulo e as plantas cada vez mais raras diante da depredação, ganância e descontrole dos que ‘vem de fora’: “Agora já não dá mais tempo. É que nos levam tudo, esses que vem da cidade cortam tudo, nem raízes nos deixam...”[23], e que provavelmente estão a serviço das indústrias farmacêuticas, entretanto, ignoram o conhecimento dos curandeiros locais, pois tratam-se de competidores, e por se incluírem nesta posição devem ser desacreditados e, se possível, aniquilados, por que na ordem vigente são estranhos que não aceitam as mudanças impostas. Diante dessa postura, a planta pedida já quase não se encontra: “Essas folhas, já há muito tempo que foram, voaram, borboletaram-se por aí.”[24] E realmente não é encontrada: “Até ali os vendedeiros haviam chegado. Até dali eles haviam arrancando, levado em carradas para a cidade”[25]. Por conseguinte, o narrador não poderá cumprir o prometido à mãe.

Ao chegar na casa da menina doente sem a planta, a mãe percebe o insucesso da missão e conduz o narrador ao quarto da menina, com seus momentos de vivente próximos do fim: “fitava o que não há, paisagens de nenhures.”[26]

Entretanto, a menina visualiza a chegada de Julinho Casa’beto, o assassino, que apunhala com uma faca o coração do narrador, “em golpe de raiz”. Repete o que o levou ao cárcere. A menina abraça Julinho “e se debruçam, ambos, para recolher a minha sombra”[27]. A sombra é integrante da energia vital: “Entre os elementos que compõem o ser humano, há o corpo físico que desaparece após a morte e é uma exteriorização de sua riqueza interior e o receptáculo de suas sensações. Esse corpo vive acompanhado de uma sombra, que é a sua irradiação para o exterior e que também se desvanece com a morte”[28].

A respeito do assassinato do narrador algumas considerações podem ser tecidas. Julinho Casa’beto havia matado um homem para salvar a mulher que estava à beira da morte, como a vizinha do narrador; o fato da mãe da menina saber que o narrador iria para a mata atrás das plantas de cura e o ex-presidiário servir como guia faz-nos pensar em um possível crime premeditado contra o narrador; a repentina felicidade da menina quando percebe a sua chegada e a sua intenção, será a menina conhecedora das tradições?; o “golpe de raiz” remete-nos ao duelo travado por Julinho e Nãozinha de Jesus, vencido por esta, que acertou o tronco de uma árvore sagrada com sua faca, pois este símbolo pode ter servido como indicação do que viria acontecer diante do insucesso da missão do narrador. Podemos interpretar o narrador como a planta curadora (a moya) a ser utilizada para fortalecer a energia da vizinha doente, pois ele é um aprendiz dos sagrados conhecimentos das plantas medicinais, assim o ato de Nãozinha serviu, indiretamente (ou não?), como uma maneira de Julinho compreender o que deveria ser feito para salvar a menina. Ou seria simplesmente uma tentativa dos moradores locais por não concordarem que um “de fora”, um estranho, conhecesse as tradições locais, mesmo sendo um moçambicano, todavia infectado pela cultura do colonizador branco, pois este estranho “significa o desmantelamento da ordem existente e sua substituição por um novo modelo de pureza”[29]. As plantas podem ser consideradas patrimônio daquela cultura, a pureza daquela cultura, e eles não podem permitir que até isso caia no poder da classe dominante.

Esse problema de resistência local com o outro, o que vem “de fora”, das grandes cidades, é retomado sistematicamente na obra de Mia Couto, foi assim n’A varanda do frangipani, em que o investigador Izidine Naíta precisou do auxílio da enfermeira Marta Gimo para compreender a cultura daquele afastado povo, que se recusavam a lhe ajudar a elucidar um assassinato; também em O último voo do flamingo, o investigador Massimo Rissi necessita de um tradutor nascido em Tizingara para entender os costumes locais e, a partir daí, tentar desvendar os mistérios que se apresentam entre os viventes locais. Com isso, o autor procura mostrar a dificuldade dos que não conhecem as tradições moçambicanas em compreendê-las.

Assim, Mia Couto nos apresenta o abismo que há entre as tradições moçambicanas e o mundo globalizado que não respeita a cultura africana. Mundo que vagarosamente afasta os moçambicanos de suas origens e conhecimentos passados pela tradição oral, prejudicada por governantes entreguistas e corrompidos. A literatura de Mia Couto atua como resistência, como defensora da ancestralidade espiritual de um povo, que desmascara a destruição criativa[30] do poder globalizante, que pretende demolir e construir ao mesmo tempo, num estado de extinção contida[31] que deixa as novas gerações confusas num permanente estado de incerteza. Por isso, sua literatura compromete-se com a denúncia e a afirmação das manifestações de moçambicanidades, diante do agressivo avançar da ordem globalizante neoliberal. É uma literatura atenta aos dilemas da contemporaneidade, que oprime as diferenças, subjuga o excluído e aniquila o fraco. O fazer literário em Mia Couto é o espaço em que cada homem é uma raça, a religiosidade surge sem religião, local de sonho e lirismo aliados na incansável espera da chuva abensonhada que trará um novo tempo com uma sociedade igualitária, em favor da paz, em favor da vida.
NOTAS:
[1] Couto, Mia. O adeus da sombra. In: Estórias abensonhadas. Editora Nova Fronteira. p. 125.
[2] Idem. Ibidem. p. 126.
[3] Lopes, Nei. Kitábu. Senac Rio Editora. p. 31.
[4] Couto, Mia. O adeus da sombra. In: Estórias abensonhadas. Editora Nova Fronteira. p. 128.
[5] Idem. Ibidem. p. 128.
[6] Lopes, Nei. Kitábu. Senac Rio Editora. p. 28.
[7] Idem. Ibidem. p. 28.
[8] Idem. Ibidem. p. 26.
[9] Couto, Mia. O adeus da sombra. In: Estórias abensonhadas. Editora Nova Fronteira. p. 127.
[10] Idem. Ibidem. p. 127.
[11] Idem. Ibidem. p. 127.
[12] Idem. Ibidem. p. 127.
[13] Idem. Ibidem. p. 128.
[14] Bauman, Zigmuth. A criação e anulação dos estranhos. In: O mal-estar da pós-modernidade. p. 29.
[15] Couto, Mia. O adeus da sombra. In: Estórias abensonhadas. Editora Nova Fronteira. p. 128.
[16] O nome Nãozinha repete-se no romance A varanda do frangipani, de Mia Couto. Neste, a personagem é uma feiticeira.
[17] Lopes, Nei. Kitábu. Senac Rio Editora. p. 30.
[18] Couto, Mia. O adeus da sombra. In: Estórias abensonhadas. Editora Nova Fronteira. p. 129.
[19] Lopes, Nei. Kitábu. Senac Rio Editora. p. 31.
[20] Bauman, Zigmuth. O sonho da pureza. In: O mal-estar da pós-modernidade. p. 19-20.
[21] Couto, Mia. O adeus da sombra. In: Estórias abensonhadas. Editora Nova Fronteira. p. 129.
[22] Ibid. Ibidem. p. 129.
[23] Couto, Mia. O adeus da sombra. In: Estórias abensonhadas. Editora Nova Fronteira. p. 129.
[24] Idem. Ibidem. p. 129.
[25] Idem. Ibidem. p. 129.
[26] Idem. Ibidem. p. 130.
[27] Idem. Ibidem. p. 130.
[28] Lopes, Nei. Kitábu. Senac Rio Editora. p. 26.
[29] Bauman, Zigmuth. O sonho da pureza. In: O mal-estar da pós-modernidade. p. 20.
[30] Bauman, Zigmuth. A criação e anulação dos estranhos. In: O mal-estar da pós-modernidade. p. 29.
[31] Ibid. Ibidem. p. 30.