sábado, 19 de abril de 2008

Manuel Rui – Memória de Mar

A esperança e a história revistas em Memória de Mar, de Manuel Rui

No pós-colonialismo enfrentado pelos países africanos de língua portuguesa, houve preocupação dos escritores em fazer uma literatura voltada para a reconstrução da própria história, retomada pelo olhar do colonizado, e a incessante busca pela afirmação da identidade, ou seja, libertar-se do pensamento opressor do colonizador.

Tais dilemas fomentaram crises nas gerações anteriores que viveram sob o jugo colonial. Situação que foi se modificando no decorrer do século XX quando os escritores começaram a ter voz e a expor os seus textos. Nesse momento, a imprensa teve papel fundamental, dando espaço às obras literárias, assim como as obras publicadas por escritores como Castro Soromenho, Alfredo Troni, Óscar Ribas e outros fomentam a difícil tarefa do angolano em ser o ator principal de sua literatura.

No caso de Angola, os movimentos literários "Vamos descobrir Angola" e as revistas homônimas “Mensagem”, publicadas em Luanda e Lisboa, nas décadas de 1940 e 1950 foram manifestações essências na consolidação da angolanidade. A partir daí, os escritores angolanos assumiram postura contrária ao sistema opressor em que viviam e participam ativamente da guerra colonial, no início dos anos 1960. A Professora Rita Chaves (USP) sintetiza o drama do escritor como protagonista de sua história:

“(...) as primeiras narrativas que pontuam a história da literatura angolana não conseguem despir-se completamente de uma visão lusa. (...) a inconsistência do angolano como personagem das narrativas é, em certa medida, referência a sua inconsistência como personagem de sua história. (...) o angolano precisava conquistar a sua voz para percorrer o caminho que o levaria à reconquista de sua terra, à recuperação de sua liberdade.” (CHAVES, 2005, p. 73)

Com a independência conquistada, os impasses que afligiam os escritores angolanos puderam ser encarados com a profundidade exigida, e deram continuidade ao processo de exorcizar o passado colonial. Manuel Rui é um dos nomes fundamentais desse processo. Sua obra literária, com o constante recurso da ironia, trata dos problemas vivenciados pela sociedade angolana na construção de um novo país, empenhando-se na defesa do caráter multirracial e plural da cultura angolana, passando pelos desvios ideológicos dos dirigentes políticos que não cumpriram os ideais revolucionários, após 1975.

No livro “Memória de Mar”, publicado em 1980, pela União dos Escritores Angolanos, a narrativa aproxima-se do fantástico, com a utilização de vários tempos narrativos no desenrolar da história, e o uso de personagens-tipo. Trata-se da expedição feita por um pequeno grupo formado por um major, um historiador, um sociólogo e o narrador-personagem à “ilha dos padres”, local em que, misteriosamente, seus habitantes ficaram incomunicáveis após a independência angolana, em 1975.

Valendo-se de fina ironia, Manuel Rui ataca duas instituições que apoiavam o colonialismo: a Igreja Católica e as forças militares portuguesas.

Desde o primeiro contato com os religiosos, moradores da ilha e fervorosos devotos de Nossa Senhora de Fátima, que o narrador-personagem demonstra diversas facetas dos religiosos portugueses, tais como a contrariedade ao ateísmo do regime comunista: “Sim. Compreendo senhor major e melhor compreenderá o senhor deus, pai e senhor dos céus e da terra. E com cariedade perdoará.” (RUI, 1980, p. 22); o preconceito aos angolanos que aderiram à fé católica, e são tratados como ‘serviçais’, as justificativas em pertencer a uma casta superior e no domínio português:

“–Ali são os serviçais. (...) trabalham aqui e, em compensação, ganham a fé em deus e salvam a alma. Noutros tempos, alguns houve, como vereis, que conseguiram aproximar-se mais de deus, estudar humildemente e obter a ordenação. Engrossamos assim o nosso exército de cruzada com uma espécie de oficiais de segunda linha, isto sem ofensa pois eles manejam tão bem a cruz e a palavra de deus como qualquer um de nós.
– Nós quem? – perguntou o sociólogo.
– Nós os religiosos de origem, os que chegámos aqui para evangelizar. (...) nós os que não descendemos do gentio, viemos de longe, deixamos a pátria e família com a sagrada missão de cristianizar esta terra.” (RUI, 1980, p. 23)

O narrador não deixa de denunciar o aspecto político da Igreja em ter que se adaptar aos novos tempos, procurando, assim, manter a parceria com o poder vigente, até então oprimido. Na nova conjuntura busca modificar, inclusive, a imagem de Nossa Senhora de Fátima, aproximando-a dos traços físicos e cor da etnia dominante. Com a mudança, a Igreja procura continuar manipulando a população e se manter junto ao poder político.

“(...) chegaram os bispos a lavrar uma acta de aditamento. Nela se teciam elogios à senhora de Fátima. Debatia-se a palavra nossa que antecedia senhora e a urgente necessidade de o rosto agora ser pintado de preto, por razões políticas, tendo-se registado também a possível alteração de feições. E, levantada que foi em acta a maka racial, ficou em dúvida se, daí para o futuro, a santa não deveria figurar albina.” (RUI, 1980, p. 110)

Um outro aspecto interessante abordado pelo narrador, em contraponto ao catolicismo, é a valorização da mitologia angolana, representada pela Quianda, a sereia do mar. Embora houvesse a proibição dos superiores religiosos sobre os serviçais, a Quianda estava presente não só no imaginário, mas com presença real entre os angolanos, como podemos inferir no episódio da visita da imagem da N.S. de Fátima à ilha e o desastre que poderia acontecer:

“Correu até o sacrílego boato de que se ela viesse, Quianda, sereia do Kwanza, passaria para aquém da foz até ao canal a revolver as águas em tempestades contra a santa imagem. Creio que o boato partiu dos serviçais ou de algum padre de segunda linha por desbantuizar completamente.” (RUI, 1980, p. 29)

O sincretismo religioso está inserido entre os religiosos desde o início da ocupação da ilha, como revela um griot. O griot tem presença fundamental nas etnias angolanas, pois é o detentor da sabedoria e da memória oral de seu povo, aqui a serviço da religião católica. Ele relembra que, nos primeiros anos de permanência na ilha, o líder espiritual português D. Junqueira fazia uso de “parte dos costumes do continente” (RUI, 1980, p. 65) africano em favorecimento à fé católica, como verificamos na passagem a seguir:

“E assustava os serviçais originários do sul com uma estória do norte. A da Quianda, sereia do Kwanza, que num dia qualquer por maior zanga, cansada de assistir a tanta infidelidade a deus, navegaria para a foz rasgando a barra e, num instante, estoirava a sua fúria numa calema de submergir a ilha e seus habitantes. D. Junqueira apaixonara-se pelos mitos diluvianos e serenídeos. Era dessa arte que ele também assustava os serviçais do norte com estórias do sul, metendo feiticeiros da chuva e inundações, terrível castigo para os infiéis.” (RUI, 1980, p. 66)

Sobre a personagem D. Junqueira, há uma forte passagem que demonstra a hipocrisia do catolicismo em relação ao comportamento e à rigidez de conduta dos padres em relação ao sexo, ainda mais sendo o padre o modelo de conduta:

“Copiavam D. Junqueira em tudo. Por isso, a partir do momento em que um dos serviçais, casualmente, observara D. Junqueira, oculto entre os limoeiros, a mastubar-se com os olhos fixos nas freiras que ao longe colhiam flores para o templo, também os serviçais se masturbavam com o pensamento, que jamais algum deles havia praticado tal acto com os olhos postos em algumas das religiosas.” (RUI, 1980, p. 67)

Tal fato fez com que os serviçais exigissem mulheres, o que contrariou D. Junqueira. O padre mandou que fosse construída uma torre, prendeu todos os serviçais em cruzes, desmentiu o acontecido e as histórias locais, e mandou retirar as freiras do convento, como narrou o griot:

“E tudo se pôs fim – disse o griô – por D. Junqueira ter descoberto todos os cabecilhas. Mandado eles próprios construir uma torre que só acabava no céu. Obrigando um serviçal sabido de lendas de sua terra, contar a estória de Catanda, o homem que subiu, subiu, até roubar a lua. Depois, concluída a torre que tocava o céu, D. Junqueira obrigou cada cabecilha a fabricar uma cruz do tamanho de um homem. E cada um foi amarrado à cruz. E D. Junqueira falou um sermão dizendo que era mentira terem-no visto em gesto tal por entre os limoeiros. Que a mulher era uma coisa sagrada e, como tal, não devia ser comprada de alembamento, muito menos desejada, vorazmente, como um naco de carne. Que olhassem o exemplo da virgem Maria, mãe do senhor. E falou mais: que aquela história da Catanda era mentira porque Catanda era infiel. E os infiéis só ganhavam céu ou mesmo lua por mor de penitência apagadora de pecados. Então, mandou ele recolher as freiras aos retiros. (...) Mandou repicar os homens com uma mistela de óleo de palma, incenso e mirra. Mandou-os subir com as suas cruzes a escalada da torre. Mandou que os outros todos se ajoelhassem de mãos e olhos bem postos no céu. E ele próprio, D. Junqueira, pegou fogo à torre dizendo: perdoai-lhes senhor! Que não sabem o que fazem.” (RUI, 1980, p. 67-68)

O ato de D. Junqueira é revisto pelos religiosos contemporâneos diante dos estrondos da guerra colonial, como uma espécie de maldição sobre a Terra. A proximidade da independência angolana altera os hábitos dos padres e serviçais, que, indiretamente, voltam-se para as manifestações espirituais locais e exigem o acerto de contas com o passado, porém, de acordo com as tradições angolanas:

“ninguém jamais poderia esquecer o tempo de D. Junqueira. A torre. O incêndio. D. Junqueira ofendera o céu, desmentindo a verdade de Catanda, o herói que chegara à lua. Além disso, mandara queimar vivos os homens que falaram em nome de todos, reivindicando mulheres, nem que fossem as freiras. Que agora era tempo de satisfazer a reivindicação. O padre ficou perplexo. (...) Aí, os serviçais quiseram explicar o que faltava resolver: o ajuste de contas com D. Junqueira, o céu, a terra, o mar, e a Quianda. O superior era pela paz. Rogava pelo fim dos estrondos e temia pela segurança da ilha. Então, ao menos, que indicasse tantos padres quantos os homens que D. Junqueira incendiara na torre. Que se fizesse um cortejo de dongos e cânticos de escravos. Que o cortejo fosse pela costa até à barra, afrontasse a rebentação da baba da sereia. Que entrasse no rio até a calmaria da água doce e o fresco da floresta. Que se acendessem velas. Que o superior benzesse os padres encomendasse suas almas. Que os padres fossem atirados à Quianda. E, pago o tributo, que o cortejo regressasse à ilha para um comba sem quaisquer limites com o levantamento da proibição de bebidas fermentadas. Depois, quando chegasse o varrer as cinzas, sucumbiria a ira da sereia para o fim da guerra. O superior respondeu que nunca supusera um tão grande retrocesso naqueles espíritos que ele ajudara no caminho do céu. Não desejava contrariar as tradições. Mas aquilo era uma heresia.” (RUI, 1980, pp. 69-71)

Como as oferendas não foram feitas, o padre sofre as conseqüências por não respeitar as tradições locais, como é narrado pelo griot enquanto segurava um crucifixo atestando o sincretismo religioso:

“Não passaram os estrondos – prosseguiu o griô – e dias depois, quando na ilha se comemorava a padroeira, a Quianda cumpriu sua promessa, rasgou a barra, entrou no oceano e, quando o superior se punha em fuga numa embarcação roubada, ante o susto de ainda ver a sereia engolir o busto de D. Junqueira, também ele, superior, foi engolido pela boca da sereia.
E, segurando um crucifixo pendurado ao pescoço, o griô disse: tudo tem o seu fim. Também a Quianda havia desaparecido para sempre.” (RUI, 1980, pp. 72-73)

Ao referir-se aos militares portugueses, o narrador-personagem é mais cruel em sua ironia, que beira o sarcasmo. Ao retratar militares que se encontram em um submarino e não têm noção do que acontece nas batalhas em Angola.

A princípio, um comandante demonstra confiança e arrogância ao mencionar o apoio internacional que Portugal teria. Tal posição é contrária à opinião internacional, que pressionava Portugal a abandonar as colônias africanas e aceitar a independência destas, principalmente após a revolução dos Cravos, em 25/04/1974. Ignora o avançar das forças angolanas, e não percebe a leviandade de suas declarações a uma mulher portuguesa retornada, que insultava a incompetência e traição dos militares:

"O certo é que o plano terá de se cumprir. É impossível que esses boçais resistem a tanta força. A norte os zairenses, mercenários e os aprendizes de Holden. Cá em baixo os sul-africanos, o elp e as multidões de Savimbi. Aliás, estão praticamente liquidados os meios de transporte dos comunistas. (...)
A esta hora Santos e Castro retomou Caxito. A coluna do sul queimou Porto Amboim e caminha sem problemas para Luanda. (...)
Haja o que houver a guerra está ganha. Demonstraremos em Lisboa o que foi a grande traição de vinte e cinco de Abril e desfilaremos no Terreiro do Paço com os generais fiéis às tradições da pátria." (RUI, 1980, pp. 79-80)

"Não merecemos as suas palavras insultuosas. Não traímos nem a fé nem o império. Estamos integrados em um plano conjunto. Forças zairenses, fenelá, unita, a fina flor dos mercenários, elp, sul-africanos. Possuímos um enorme apoio dos Estados Unidos, França, Alemanha Federal e outros países do mundo civilizado. Armamento não nos falta, incluindo o chinês e devo dizer-lhe que depois da segunda guerra mundial, a marcha que se faz neste momento sobre Luanda em várias frentes, é, sem dúvida, a maior marcha de blindados que a história registará." (RUI, 1980, p. 85)

Apreendemos a guerra colonial angolana inserida em meio ao contexto da Guerra Fria. O MPLA era apoiado pelo bloco comunista, e Portugal apoiava a UNITA (grupo de guerrilheiros angolanos contrários ao futuro regime comandado por Moscou) além de ter a ajuda da África do Sul e dos norte-americanos, estes não declarados oficialmente.

Hilariante é o diálogo entre o comandante e o náufrago, nu, que ele julga ser um mensageiro, mas, na verdade, é um dos religiosos da ilha dos padres. O religioso conta toda a história da ilha, da maldição, de rezar pela paz. Prosa que irrita o comandante, julgando-o louco ou espião comunista. Até que recebe um telefonema de Luanda e, finalmente, terá a exata noção do que acontece em terra:

"– Alô submarino, alô submarino responde Luanda. Os comunistas estão a proclamar a independência os blindados não entraram em Luanda corremos perigo sou obrigado a concluir comunicação receio interferência repito receio interferência inimiga terminado." (RUI, 1980, p. 95)

O comandante, perplexo, ordena a subida à superfície, porém o submarino é obrigado a submergir por causa dos ataques. Incrédulo, ainda, o comandante afirma:

"– Para baixo – gritou o comandante – não sei o que se passa mas parece que estamos a ser alvejados a partir dos nossos próprios barcos e com as nossas peças que afundamos na ilha. Para baixo!" (RUI, 1980, p. 97)

A submersão do submarino como metáfora do fim do colonialismo em Angola. “Tínhamos passado muitos anos debaixo do mar” (p. 105), relata o narrador-personagem. Emerge Angola independente, um recém-nascido país pronto para reconstruir a sua história. Dessa maneira, Manuel Rui contribui com um livro que procura reescrever a história do país, buscando no passado situações para compreender o presente e arquitetar o futuro. Fazendo prevalecer o caráter multirracial do povo e da cultura angolanos, e apesar de tantos anos de opressão, memória dilacerada e sonhos esgarçados, não há ódio, mas, sim, amor e esperança: “E era essa, talvez, a nossa maior vitória sobre o tempo: não sabermos odiar.” (RUI, 1980, p. 111) Entretanto, Manuel Rui sabe que “a realidade é sempre mais de sonho que o imaginário” como mencionou na epígrafe do livro, e já prever as dificuldades sociais, econômicas e políticas nos tortuosos caminhos da reconstrução que a utopia revolucionária encontrará, “porque o limite do sonho é sempre o real” (RUI, 1980, p. 118).
Ricardo Riso

BIBLIOGRAFIA:
CHAVES, Rita. O passado presente na literatura angolana. In: Angola e Moçambique – experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Atelier Editorial, 2005. pp. 45-62

RUI, Manuel. Memória de mar. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1980.

MANUEL RUI NESTE BLOG:
Eu e o outro – o invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto

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