quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Feliz 2009


A todos os visitantes deste blog, um feliz 2009!!!

Abraços,
Ricardo Riso



Cesária Évora - Rádio Mindelo

Ao Gonçalo Ivo

O cd Cesária Évora – Rádio Mindelo reúne raras gravações da cantora cabo-verdiana Cesária Évora na Rádio Barlavento, no início dos anos 1960. São 22 músicas (a maioria de autoria de Ti Goy) separadas em seis sessões diferentes de puro prazer e que já confirmavam o talento de Évora.

A seguir o texto do encarte do bem cuidado cd, em edição trilíngüe francês-inglês-português.

Ricardo Riso

Cesária na Rádio Barlavento: o início de uma carreira


No início dos anos 60, vive-se em Mindelo, uma euforia à volta do género Coladera, que constituía uma novidade. Vive-se igualmente o pós-B.Léza. Recentemente falecido (1958), B.Léza, é recordado com muita emoção e existe um sentimento de que a sua obra deve ser continuada e seguidos os seus ensinamentos. A inovação do momento é o género Coladera, que no Mindelo conta com grandes mestres, como Ti Goy (Gregório Gonçalves) ou Frank Cavaquim (José Vicente Gomes). Estes dois compositores lideram na feitura de composições que naquele período surgem ..em grande quantidade. Por.. outro lado, é de notar que Rádio Barlavento, vem desempenhando um papel importante na vida cultural da cidade do Mindelo. Fundada em meados dos anos ..50, a.. Rádio Barlavento cedo começa a gravação de músicos e cantores locais, como meio de obter música para difusão nas suas antenas. As gravações daquela época (realizadas com um único microfone) têm uma qualidade razoável, tendo em conta os meios utilizados. A criação de planos sonoros, era obtido, com a colocação, mais ou menos afastada do microfone, dos diferentes instrumentos e do cantor. De salientar ainda que esta emissora de ondas curtas, chegou a comprar uma máquina de gravação de ..discos com o.. fito de arranjar receitas. A máquina gravava um disco de cada vez em tempo-real, o que não compensava. A ideia de comercialização de discos foi então abandonada, mas foi dos estúdios dessa antiga estação de rádio que saíram as fitas para prensagem no exterior ..de discos com os.. grandes sucessos dos finais dos anos ..50 a.. meados de 60. Gustavo Albuquerque, que trabalhou desde a fundação da Rádio Barlavento como “Operador de Gravação e Montagem de Programas” recorda, que ele gravou “vários artistas como Amândio Cabral, Djosinha, Jack Monteiro, Cesária, Titina, Arlinda Santos, Mité Costa e outros.”

Naquela época, as editoras eram prestigiadas casas comerciais, como a Casa do Leão, ou então a Casa João Mimoso, que comercializavam os pequenos discos de vinil, 45 rotações por minuto, com 4 músicas (2 em cada lado) que eram prensados na Alemanha e Holanda. O “técnico das gravações ..e montagens dos.. programas dessa rádio” Gustavo Albuquerque, teve um papel importante na recolha da “Música da nossa terra” como então de dizia. Gustavo não só, foi um dinamizador das recolhas contactando os artistas, como realizou um trabalho técnico que se pode considerar de altíssima qualidade tendo em conta os condicionalismos da época, numa ilha então isolada ..do mundo,.. que se chama, S. Vicente. ....

Cesária ou Cize como é tratada pelos mais próximos, revelou-se ao público naquela época, naquele ambiente pós B.Léza e de sucesso do género Coladera. O Técnico Gustavo, conta que “Cesária Évora foi trazida para a antiga Rádio de Barlavento, por Gregório Gonçalves “Ti Goy” e Frank Cavaquim, a título de experimentar a sua voz em fita magnética gravando as belíssimas Coladeras compostas por esses dois compositores, isto na década dos anos 60… ela tinha 20 e tantos anos, e se não estou com erro ela começou a cantar com 14 ou 16 anos.” A versão da Cesária Évora não difere e ela conta assim como tudo se passou: “Bom, naquele tempo o Gustavo que trabalhava na Rádio Barlavento, falou comigo, e perguntou-me se eu gostaria de ir com o Ti Goy, o Caraca e outros músicos cujos nomes já não me lembro, fazer umas gravações… eu disse-lhe que sim, que combinasse com o Ti Goy porque para o Ti Goy, o seu maior prazer era que eu fosse à casa dele, para ele me ensinar as suas música para eu cantar…”

Naquela época, finais dos anos 50, princípios dos anos 60, os grandes compositores e músicos, tinham os seus “meninos”, a quem ensinavam novas músicas e que eram lançados na vida artística com o seu patrocínio. As revelações apareciam nas tocatinas de pau e corda, nos ensaios de blocos de Carnaval ou nos ensaios para ..as apresentações dos.. chamados “teatro” no “Cine-teatro Éden-Park”, espectáculos de variedades, com música, anedotas e “sketches”. Cesária Évora, era a “pérola” do Ti Goy. O prestigiado compositor, andava de um lado para outro a elogiar a jovem cantora a quem dava em primeira-mão as suas novas criações e não se cansava de levá-la para cantar nos mais variados locais. Diz a Cize: “Olha, eu o Goy, encontrávamo-nos sempre! Quando eu ia à casa dele, ele me ensinava as suas novas composições e quando era de tocar com o conjunto, íamos juntos… Eram aqueles dois corcundas, que tocavam sempre juntos comigo: o Goy e o Caraca!”

As sessões de gravação da Cesária Évora na antiga Rádio Barlavento, contam na sua maioria com composições do Ti Goy, ou seja Coladeras a especialidade deste músico que tocava violão e bateria. Cesária recorda que foi várias vezes, à Rádio Barlavento, para gravar. E como é que as coisas se passavam nessa altura, perguntamos? “Bem disseram-me que em princípio me pagariam 25$00 por cada gravação, e foi isso que me pagaram.” No Rádio Clube, outra estação daquela época, em Mindelo, a Cize também foi gravar, mas diz: “Ali nunca me pagaram nada!!!”

Os grandes sucessos daquela época, e a voz límpida da Cize, maravilharam a cidade do Mindelo daquele tempo. A difusão pela rádio de novidades musicais, sobretudo Coladeras picantes e com críticas ácidas a acontecimentos que marcavam a vida social, naquela época, contribuiu ainda mais para o sucesso desta cantora, que passou a ser chamada para actuar nos mais diversos locais. Diz a Cesária: “Recordo, que íamos (eu, e o Ti Goy) para muitos lugares juntos, íamos cantar em muitas casas, e íamos a bordo daqueles barcos portugueses, naquele tempo…” A fama de Cesária foi tão grande que ela foi convidada, para cantar no Grémio Recreativo Mindelo, clube muito reservado, frequentado pela alta sociedade, numa época em que vigorava uma divisão social muito rígida. Ali aconteceu um episódio que marcou a vida da Cesária e que ela conta assim: “Eram os irmãos Marques da Silva que me iam acompanhar. Era eu, a Arlinda…havia outra pessoa… Éramos três ou duas que íamos cantar… já não me lembro dos nomes. Foi então que o Lulu Marques, resolveu me dar um par de sapatos para eu, calçar… Eu disse-lhe: eu não quero sapatos, porque se não for descalça, eu não vou!!! Ele insistiu, e então acabei por aceitar um par de umas sandalhinhas pretas, que ele tinha comprado no Sr. João (Pereira) sapateiro… Bem, era para eu lá estar às 9 horas da noite e lá fui. E então, eu entrei e atravessei o corredor de entrada do Grémio calçada… e fiquei lá à espera, e quando chegou a minha vez de cantar, eu tirei os sapatos e coloquei-os ali ao lado de uma árvore, perto do palco... e fui cantar descalça. Olha, aquela gente toda me aplaudiu e ficaram contentes. Foi então que veio uma senhora (não me lembro do nome)… ela veio falar comigo e disse, para eu estar à vontade porque se era assim que gostava de cantar, então eu podia estar à vontade e podia descalçar e cantar descalça, porque não havia nenhum problema… Bem na hora da saída no final do espectáculo, eu não calcei e saí do Grémio descalça e levei os sapatos numa bolsa.”

Este episódio, foi naquele tempo muito comentado em voz baixa, na sociedade mindelense e deu origem a várias versões mais ou menos fantasiosas, o que acabou por popularizar, o retrato da “Diva dos pés descalços”.

O sucesso desta primeira fase da carreira de Cesária Évora, nos anos 60, atinge culmina com convite para gravar o seu primeiro disco que foi editado pela Casa João Mimoso. Cize recorda como tudo se passou: “Ele mandou-me chamar para eu falar com ele no seu escritório. Ele disse-me que gostaria de gravar um disco comigo. Eu disse-lhe: é para ir a Lisboa? Ele disse-me, não, vamos gravar o disco aqui em S. Vicente, não é preciso ir a Portugal. E então fomos fazer a gravação. O Damatinha tinha um bom gravador… E então gravamos: eu, o Luís Rendall e o seu filho John Rendall e mais outra pessoa que já não me lembro.” E onde foi realizada a gravação? A Cize responde: “Na casa do Gustavo, que morava na rua 1.º de Maio… a Rua da Papa Fria.”

Das lembranças do que se poderá agora classificar de sessões históricas de gravação na antiga Rádio Barlavento diz a Cize: “Uma daquelas músicas que eu gravei foi Terezinha - Dinher d’Angola já Cabá -, parece-me, Vaquinha Mansa. Da Coladera Terezinha da autoria de Gregório Gonçalves (Goy), a Cesária não poderia esquecer, pois foi um dos sucessos retumbantes daquele tempo. Vaquinha Mansa do mesmo compositor, junta-se a uma lista grande de Coladeras, deste mesmo compositor, gravadas em várias sessões que decorreram sensivelmente, entre 1962 e 1964: Pé di Boi, Nutridinha, Mata Morte, Falta de Força, Sayko Dayo… Quanto às Mornas, Cesária prefere composições novas e pouco batidas, uma vez que as suas colegas na altura, já tinham quase que esgotado o reportório B.Léza e Eugénio Tavares. E julgamos que Cize escolheu também Mornas que mais se adaptavam ao seu estilo de cantar como: Belga, Oriundina, Frutu Proibido, Mar Azul (esta uma Morna B.Léza que não tinha sido gravada) e Cize. Esta Morna (..de Morgadinho) nada.. tem a ver com a Cize, Cesária Évora. Sobre isso ela diz: “Pensam que fui eu que a fiz. Mas não, foi para outra Cesária...”

As primeiras gravações da Cesária Évora, testemunham o início da carreira desta grande artista, que desde o princípio se revelou como dona de uma bela voz, categoria na interpretação e presença. Alguns dos companheiros da Cesária que gravaram nessas históricas sessões da Rádio Barlavento, por Gustavo Albuquerque, conseguiram logo singrar e começar carreiras de sucesso, em disco e no palco. Cesária, apesar do sucesso inicial, foi ficando no Mindelo profundo, das tocatinas pelos bares, das noites cabo-verdianas e das serenatas… ..De meados dos.. anos ..60 a.. meados do anos 80 Cesária Évora, esteve longe da popularização que os circuitos da edição discográfica alcançam até foi redescoberta. Tempo longo é certo, mas que permitiu a esta grande diva, uma maturação, sempre na defesa da autenticidade e das raízes da Morna e Coladera. Note-se que ao longo destes 20 anos de espera da Cize, Cabo Verde foi trespassado por diversos movimentos: música revolucionária, retorno às fontes, Funaná, etc. etc. Serenados os ânimos aí pelos finais dos ..80, a.. Morna e a Coladera, encontram então no talento e na voz de Cesária Évora, o veículo ideal para se revelarem ao mundo, que por coincidência, assiste nesta altura, a um movimento que se dá pelo nome ..de 'World Music..'. Cesária inicia nos anos 90, um carreira fulgurante, conseguindo alcançar uma mundialização, que até hoje nenhum outro artista cabo-verdiano conseguiu… uma vingança do destino e uma vitória da música de Cabo Verde!....

Praia, 15 de Setembro de 2008....

Carlos Filipe Gonçalves....
Músico e Jornalista

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Dina Salústio - Natal


É época do Natal. De prendas, de frutas secas e fios dourados. De perus e bebidas várias. De plásticos. De muitos plásticos. E de sacrifícios.

Também festa de família.

Estou numa loja. Três mocinhos semi-esfarrapados entram. Não têm pressa. Não pedem para serem atendidos. Os olhitos passam de um brinquedo para o outro e neles vejo o mesmo brilho dos olhos dos meus filhos.

Timidamente, quando não se sentem observados pela vendedora, passam a mão – um dedo só – pela carroçaria de um camião. Estão mudos, num mundo à parte e nem sequer trocam olhares uns com os outros. Cada um vivendo o sonho de uma viagem, aventura de uma corrida.

Os compradores entram e saem atarefados. E não vejo alegria neles. A cada presentinho, a cada pacotinho de uma bagatela qualquer, um balanço às notas que ficam, um cálculo mental, uma decepção. E começam as lamentações que os artigos estão caros, que a vida está cada vez mais difícil, que já é tempo de se acabar com o Natal.

Não estou de acordo. É bom haver Natal. É bom escrever aos amigos e dizer-lhes que estão comigo o tempo todo, apesar do meu silêncio. É bom haver Natal e poder dizer-te que tenho saudades tuas, que te amo e que te queria abraçar forte. É bom haver Natal, quando não é época de sacrifícios e angústias e dívidas, para se manter uma ridícula aparência de sucesso.

A vendedora fica nervosa entre o atender os clientes e vigiar os meninos esfarrapados. Onde está a família deles? Já terão comido hoje? Só sei que estão a viver mais um Natal. O seu Natal, tecido com olhares e imaginação: um Natal de espreita.

Uma freguesa entra: Dezembro é mau, mas Janeiro é pior. Um mês comprido. Um mês de contas. Ela fala alto, enquanto enumera as prendas que faltam comprar. O show, para se fazer notada. No fundo, a eterna necessidade.

Um dos miúdos distrai-se e solta uma exclamação. Os clientes olham para ele, para eles e para vendedora e apertam com mais força os embrulhinhos de Natal. E a raiva e as frustrações que a contabilidade provoca soltam-se e aparecem nos olhos e nos murmúrios. São gente de bem que não podem aceitar a vadiagem que os fatinhos rotos deixam perceber.

A rapariga do balcão sente-se apoiada e expulsa os garotos. E não percebeu, porque não podia perceber que o que os compradores queriam era que as lojas fechassem, que não houvesse coisas para comprar e que um decreto proibisse aquela mascarada toda. A sua consciência ficaria tranqüila, o orgulho salvo. Talvez o natal passasse a ser mais humano, mais de compromisso, porque não artificial.

Há um sorriso nos mocinhos que eu não percebo, como se não fizessem parte de nós. Como se fôssemos uns palhaços para os divertir. Ou quem sabe, uma certa nostalgia de não serem palhaços como nós.

Tranqüilamente saem, em busca de outras lojas de sonhos.” (p. 69)

SALÚSTIO, Dina. Mornas eram as noites. Colecção Lusófona. Lisboa: Camões, 1999. p. 68-69

Feliz Natal

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Desejo a todos os freqüentadores deste blog um feliz Natal com o máximo de afetos reunidos, longe do consumo desvairado.
Abraços,
Ricardo Riso

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Carlos Drummond de Andrade - Organiza o Natal


Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.

Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.

Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.

A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.

A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.

Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.

O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.

Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.

A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.

O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.

E será Natal para sempre.


Texto extraído do livro "Cadeira de Balanço", Livraria José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 52.
http://www.releituras.com/drummond_organizanatal.asp

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Inveja dos Anjos - memória, encontros e despedidas emocionam a nova montagem da Armazém Cia. de Teatro

Ricardo Riso

Em um cenário atravessado por trilhos de trem que toma todo o palco da Fundição Progresso, a Armazém Cia. de Teatro realiza o belo e comovente Inveja dos Anjos.

O texto reúne histórias intercaladas de pessoas comuns, excessivamente simples, que vivem em uma cidadezinha qualquer e repassam cenas do cotidiano, acontecimentos que movem os relacionamentos humanos acompanhados de seus encantos e desencantos com seus afetos, desejos e frustrações com a vida. Por outro lado, são pessoas que nos comovem pela dignidade ao encarar suas alegrias e tristezas.

Como ponto comum entre os personagens, a memória. Em um exercício constante de revisitar o passado, eles procuram reconstruí-lo sem temer uma futura e velha decepção. Vivenciam os reencontros com esperança renovada e absorvem as partidas, as despedidas da melhor maneira possível seguindo em frente. Com isso, a importância do cenário. As idas e vindas das pessoas, do trem que chega e parte durante toda a encenação, torna o cenário vivo e fundamental nos constantes encontros e despedidas.

Peça sobre trilhos, Inveja dos Anjos emociona por tocar nas contradições humanas, nos acertos e erros da convivência com o outro. Ao expor variados sentimentos e seus desdobramentos nas vidas de pessoas tão simples, Inveja dos Anjos convida o espectador a sentar em “um dos vagões do trem e, pelas pequenas janelas, pudesse acompanhar um pedaço do filme da vida – que passa ligeira a sua frente”, como escreve o diretor Paulo de Moraes no catálogo da peça.

Inveja dos Anjos é teatro da melhor qualidade e consolida a Armazém Cia. de Teatro como a grande companhia da atualidade.

A peça retornará à Fundição Progresso no dia 8 de janeiro de 2009. Imperdível!

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Bando de Teatro Olodum – Cabaré da RRRRAça

Bando de Teatro Olodum – Cabaré da RRRaça: “É preciso ter coragem para ter a cor da noite” espetáculo em que não há espaço para o riso, expõe de forma clara e direta a discriminação vivenciada pelo negro brasileiro

Boa noite, resistência. Boa noite, brancos. Este é um espetáculo didático, panfletário e interativo. Portanto... Meu nome é Wensley de Jesus. Sou negro e estou fora! Faço questão de dizer isso. Não concordo com esse sistema estruturado por brancos há séculos para nos colocar em padrões que interessam a eles. Por isso, estou fora! Porque para mim, ser negro é isso, estar fora, cavando, buscando evoluir. (...)

(Fala da personagem Wensley, Cabaré da Raça)

Encerra-se neste final de semana a curta mostra do Bando de Teatro Olodum, no Teatro Villa-Lobos (RJ), com apresentações das peças Sonho de uma Noite de Verão – uma releitura de Shakespeare, e Áfricas, o contagiante e belo espetáculo infanto-juvenil.

As peças do BTO seguem as propostas do grupo musical: de reconstrução da história sob um olhar negro; da valorização de hábitos e costumes afro-brasileiro e africano; e das denúncias contundentes das mais variadas formas de discriminação racial em nossa sociedade. Sendo este, o foco da peça “Cabaré da Raça” que reivindica uma nova postura do cidadão negro ao procurar conscientizá-lo da opressão vivida por séculos de escravidão e dilaceramento de suas raízes.

Ao utilizar situações banais do cotidiano presentes na maneira como o negro é tratado, o BTO mostra a linguagem internalizada por nós como cruel, repressora e devastadora em relação ao negro, o que torna o espetáculo esclarecedor, inquietante e incômodo.

O riso da platéia, quando surge, e infelizmente perpassa todo o espetáculo, revela o costume inconsciente da discriminação, que, na peça, surpreende por ser ironizado por negros em acontecimentos que trafegam do menosprezo à exclusão. As expressões faciais fechadas, "marrentas", os olhares agressivos e a postura corporal determinada, ereta e insubmissa contradizem os risos. Exemplos notórios são as passagens em que as personagens esteriotipadas reforçam os clichês submetidos aos negros. Enquanto isso, o resto do elenco vira-se para o fundo do palco, reprimindo tais atitudes. Nessas ocaisões, não há espaço para gargalhadas. Entretanto, elas acontecem.

Por ser interativo, o grande acerto da montagem, percebemos o quanto as questões étnicos-raciais são pessimamente trabalhadas e encaradas pela platéia quando questionada pelo elenco. Uma clara metonímia da sociedade brasileira, pois o mito da democracia racial prevalece apesar das diversas manifestações de detrimento ao negro, encenadas durante o espetáculo.

Contudo, Cabaré da Raça, cumpre a sua função por ser um espetáculo panfletário, interativo e conscientizador. Feito por negros, para os negros e para toda a nossa sociedade, pois demonstra o quanto temos de hipocrisia nas nossas relações, apresenta a perversidade da língua que reforça os estereótipos perpetrados pela mídia dominante, e escancara a urgência do negro em valorizar a auto-estima e forçar a ocupação de espaços proibidos a ele durante séculos de repressão.


Por seu caráter inquietante e questionador, “Cabaré da Raça” deveria atingir o maior número possível de pessoas e, assim, ampliar a discussão das nossas conturbadas relações étnicos-raciais.

Sem riso, porém, perplexo, e por que não?, grato. Saí do espetáculo.

Ricardo Riso

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008


A Kitabu Livraria Negra e a Dapelepreta Arte e Publicidade convidam para o lançamento de Agenda Afro América 2009


Local: Kitabu Livraria Negra
Data: 18.12.2008
Horário: 19:00
End: Rua Joaquim Silva, N. 17 – Lapa – RJ
Tel: 2252-0533


quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Mito - SatisFashion

I Cant't Get No SatisFashion.
80x97 cm. 2008.

Para o período de consumo desenfreado, como se houvesse um tempo que não o fosse, do multifacetado artista plástico cabo-verdiano Mito, este ótimo SatisFashion.

Ricardo Riso

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

África e Africanidades - 3ª edição/novembro 2008

Está no ar a terceira edição da revista acadêmica África e Africanidades – www.africaeafricanidades.com. Neste novo número, analiso o livro de poesia “O útero da casa” da são-tomense Conceição Lima e destaco os importantes artigos selecionados para a seção África e Africanidades na Sala de Aula. Na área de Literatura, a pesquisadora Patrícia Camargo (UFF) comparece com dois textos sobre dois nomes fundamentais do lirismo de Cabo Verde e Moçambique: Vera Duarte e Eduardo White; e Érica Cristina Bispo (UFRJ) resenhou o romance guineense “A última tragédia”, de Abdulai Sila.

Para quem quiser participar da próxima edição, o regulamento encontra-se no site e o prazo para entrega de seleção de trabalhos encerra-se no dia 20 de janeiro de 2009.

A seguir, a relação dos artigos publicados nesta edição.

Abraços,
Ricardo Riso


SUMÁRIO

Artigos
Raça, gênero e sistema prisional: relato de experiências com mulheres negras que cumprem penas em regime aberto ou semi-aberto
Adriana Severo Rodrigues (PUC RJ - Brasil)

Negritudes e aprendizagem cotidiana
Ricardo Luiz da Silva Fernandes (Universidade de Aveiros - Portugal)
Henrique Dias Gomes de Nazareth (UNIRIO - Brasil)
Maria Amélia Gomes de Souza Reis (UNIRIO - Brasil e Universidade de Aveiros - Portugal)

Amar o mar, as águas, os sonhos e outras formas de sentir na construção poética de Vera Duarte
Patrícia Camargo (UFF - Brasil)

A posição brasileira diante da independência angolana: antecedentes e desdobramentos
Suhayla Mohamed Khalil Viana (FLACSO - Argentina)

Mulheres negras brasileiras construindo identidades negras positivas: um caminho para a consolidação da cidadania?
Caroline Fernanda Santos da Silva (PUC RJ - Brasil )
Vanessa Santos do Canto (PUC RJ - Brasil)

Resenhas
Escravidão na África: uma história de suas transformações, de Paul Lovejoy
Alejandra Luisa Magalhães Estevez (UCAM - Brasil)

A última tragédia, de Abdulai Sila
Érica Cristina Bispo (UFRJ - Brasil)

Relatório de Pesquisa
Relações entre o cotidiano escolar da educação infantil e a problemática racial brasileira
Daniela Xavier Cenciani (UNIRIO - Brasil)

Colunas
ALMANAQUE
Diferentes Novembros
Alejandra Luisa Magalhães Estevez (UCAM – Brasil)
Diego Novaes (UFRJ – Brasil)
CHARGE
Racismo Cordial
Diego Novaes (UFRJ – Brasil)
CORPO: SOM E MOVIMENTO
Tango: Dança e Música de matriz africana do Brasil à Argentina
Denise Guerra (SME de Queimados-RJ – Brasil)
DIREITOS HUMANOS
Direito humano à alimentação adequada: população negra e insegurança alimentar
Walkyria Chagas da Silva Santos (UFBA - Brasil)
ENTRE LETRAS E POESIAS
Espírito cabo-verdiano - 3 versões para Irene
Juliana Faria (CRETCAB-IAPO - Brasil)
FINANÇAS
Planejamento Financeiro Diário e 13º salário
Marcelo Fernando Ferreira Theodoro (Brasil)
KABEÇA URBANA
Memória Histórica - Porque cultivá-la?
Antonio Krisnas (Brasil)
LITERATURA AFRO-BRASILEIRA
O poético militante Solano Trindade
Assunção de Maria Souza e Silva (NEPA – Brasil)
LITERATURA – PERFIL
A leveza confluente entre sonho e amor na força poética de Eduardo White
Patrícia Camargo (UFF – Brasil)
RODA DOS ORIXÁS
Algumas pistas sobre mitos, orixás e self
Alexandre de Oliveira Fernandes (CEFET-BA e UESC – Brasil)
TRADIÇÃO ORAL
A tradição oral africana na música popular brasileira contemporânea
André Sampaio (UFF – Brasil)

SUPLEMENTO
ÁFRICA E AFRICANIDADES NA SALA DE AULA

ARTE E EDUCAÇÃO
Arte africana ou artes africanas? Uma imagem: uma arte, seu simbolismo e alguns apontamentos
Valdinei José Arboleya (SEED do PR - Brasil)
LITERATURA INFANTIL
O negro na literatura infantil: apontamentos para uma interpretação da construção adjetiva e da representação imagética de personagens negros
Valdinei José Arboleya (SEED do PR - Brasil)

A Teia da Aranha
Juliana Faria (CRETCAB-IAPO - Brasil)

Formação docente e cultura afro-brasileira
Waldeci Ferreira Chagas (UEPA - Brasil)

UMA OUTRA HISTÓRIA
Incursões acerca de experiências de educação das relações étnico-raciais
Maria Antonia Marçal (SEEPR – Brasil)

TRABALHANDO COM PROJETOS
Educar para a diversidade étnica e cultural – investigação e ação
Ricardo Luiz da Silva Fernandes (Universidade de Aveiro – Portugal)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Simone Caputo Gomes: Cabo Verde – Literatura em Chão de Cultura

ISBN: 978-85-7480-415-6

Desde o seu mestrado sobre Cabo Verde na obra do poeta Daniel Filipe, iniciado em 1976, Simone Caputo Gomes tem se dedicado à pesquisa sistemática e intensa a respeito da cultura e da literatura daquela jovem nação africana. Neste volume, reúne um conjunto de estudos que ganham unidade em torno de temas fundamentais da cultura do arquipélago: o milho, o batuque e o vulcão, através dos quais considera a sobrevivência, a música e a terra nas suas formas de representação literária. Além disso, noticia, apresenta e introduz o seu leitor nas mais recentes produções literárias daquele país, descortinando-nos um panorama bem mais amplo do que aquele a que os estudos brasileiros das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa se conformaram. A autora abre-nos outros campos de reflexão, já que avança para bem além dos tempos de formação da literatura de identidade cabo-verdiana e de suas relações com a literatura brasileira do século XX. – Mário César Lugarinho

Simone Caputo Gomes é Professora Doutora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP. Dedica mais de trinta anos de pesquisa à Literatura e Cultura de Cabo Verde, tendo defendido sua dissertação de Mestrado (Uma Recuperação de Raiz: Cabo Verde na Obra de Daniel Filipe) em 1979, provavelmente a primeira tese/dissertação acadêmica defendida na história da área de Literaturas Africanas e a primeira de Estudos Cabo-verdianos.
Medidas: 12,5 x 20,5 cm
Páginas: 320
Edição: 1ª
Ano: 2008
Assunto: Col. Estudos Literários 28, Crítica literária
Encadernação: Brochura

Fonte:

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Bando de Teatro Olodum no Rio de Janeiro


O Bando de Teatro Olodum (Salvador/Bahia) iniciou na semana passada uma curta temporada no Teatro Villa-Lobos, com apresentação de quatro peças: Ó, Pai, Ó (até o dia 14/12), Áfricas (até o dia 14/12), Cabaré da RRRRRRaça (dias 16 e 17/12) e Sonho de uma Noite de Verão (19 a 21/12). Formado em 1990, o grupo conquistou o respeito da crítica e a cada nova encenação o sucesso de público é garantido.

O Teatro Villa Lobos Avenida Princesa Isabel, 440 - Copacabana - Rio de Janeiro. Os preços variam de R$ 10 a R$ 30.

Ricardo Riso

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Angola é aqui – a nossa história africana

A Revista de História da Biblioteca Nacional, edição de dezembro/2008, apresenta como matéria de capa “Angola é aqui – a nossa história africana”, um dossiê das relações Angola-Brasil.

A seguir, a relação dos artigos publicados:

De onde vem nossa ginga – por Monica Lima
No vocabulário, na cultura e nos costumes, a identidade brasileira tem origem no outro lado do Atlântico

Custo Brasil – por Luiz Felipe de Alencastro
Desde as invasões holandesas estava evidente: a colônia americana só era viável com o braço escravo angolano. Crescemos à custa da miséria africana.

Angola é nossa! – por Roquinaldo Ferreira
Recém-independente, o Brasil tramou tomar de Portugal o controle da colônia africana. Brasileiros faziam fama e fortuna em Luanda e Benguela.

Idas e vindas – por Monica Lima
Ex-escravos queriam voltar à África para combater o tráfico. Enquanto isso, famílias de Cabinda educavam seus filhos no Rio para o comércio negreiro.

A raiz da liberdade – por Marcelo Bittencourt
Nos meios literário, intelectual e diplomático, a luta anticolonialista angolana contou com o apoio de muitos brasileiros.

Enfim, a paz. E agora? – por José Octávio Serra Van-Dúmen
Destroçada após três décadas de guerra civil, Angola tem que reinventar a democracia para promover a inclusão social. E o Brasil pode ajudar.
O endereço na internet da revista é http://www.revistadehistoria.com.br/

Abraços,
Ricardo Riso

Vicky Cristina Barcelona

Boas risadas em filme que tinha tudo para ser banal
Por Ricardo Riso

Neste final de semana assisti ao novo filme de Woody Allen, Vicky Cristina Barcelona, uma comédia com garantia de boas risadas diante da qualidade do elenco com destaque para o trio formado por Rebecca Hall (a mulher “certinha” seduzida pelo desejo), Scarlett Johansson (a espevitada que se entrega a qualquer paixão momentânea), Javier Bardem (o típico latin lover) e a mais bela atriz da atualidade, Penélope Cruz (uma estridente e insana mulher). Como podemos perceber, personagens que conduziriam a película a mais uma comédia de clichês, se não fosse dirigida por Woody Allen, um dos raros diretores de cinema em atividade, capaz de construir diálogos inteligentes diante de situações românticas previsíveis.

Com belas locações das cidades de Barcelona e Oviedo, e excelente trilha sonora, o filme narra a história de duas jovens Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson) que decidem passar o verão na Espanha. Quando chegam em Barcelona, encontram um artista galanteador muito bem sucedido (Javier Bardem). Ele as convida para conhecer Oviedo e iniciar um breve relacionamento. A partir daí, o desenrolar da história flui com agradável sensibilidade e fina ironia – algo raro –, guardando os momentos de “tensão” para as calorosas e hilárias discussões entre os personagens de Bardem e da histriônica interpretada por Cruz.

Ao mostrar o envolvimento de duas mulheres que se deixam seduzir por um relacionamento longe do que seria “racional”, causando intensos conflitos em suas personalidades, Allen conseguiu criar um filme leve, ainda assim sério e equilibrado. Vicky Cristina Barcelona equipara-se aos seus melhores filmes. O Cinema agradece.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Ricardo Riso no programa “Africanidade”, TV Litoral/Macaé (canal 21)

Profa. Dra. Sonia Santos e Ricardo Riso, programa "Africanidade" - TV Litoral/Macaé (canal 21)

Durante o seminário Contravento, pedra-a-pedra na USP, a Profa. Dra. Sonia Santos (FAFIMA) convidou-me para ser entrevistado em seu programa “Africanidade”, na TV Litoral/Macaé (canal 21). A entrevista foi realizada no dia 02/12 e foi transmitida na sexta-feira, dia 06/12.

No estúdio do programa "Africanidade"

Falei sobre a minha trajetória com as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, o contato inicial com a disciplina – à época presencial – ministrada pela Profa. Dra. Norma Lima na Universidade Estácio de Sá. Logo em seguida, sendo motivado por ela, os contatos com as Profas. Dras. Simone Caputo Gomes (USP) e Carmen Lucia Tindó Secco e Maria Teresa Salgado (UFRJ). A minha pesquisa que envolve a relação entre literatura e artes plásticas, a criação deste blog e a partir dele novas relações com escritores como Paula Tavares e João Tala; artistas plásticos como Mito, Tchalê Figueira e Abraão Vicente; professores como a Dra. Moema Parente Augel; e estudantes de graduação e pós-graduação do Brasil e do exterior entre outros assuntos.


Ricardo Riso e a Profa. Dra. Sonia Santos (FAFIMA) após a entrevista

Foram quatro blocos de 12 minutos em um bate-papo bastante agradável. Agradeço à Profa. Dra. Sonia Santos pela oportunidade que me ofereceu e meus parabéns pelo belo programa.

Ricardo Riso

Mia Couto - Espaços ficcionais, de Maria Nazareth Soares Fonseca, Maria Zilda Ferreira Cury (Orgs.)

Mia Couto - Espaços ficcionais
Maria Nazareth Soares Fonseca, Maria Zilda Ferreira Cury (Orgs.)

Sinopse
“Vejo este material principalmente como suporte da transmissão de conhecimento sobre a África, pura e simplesmente, o que não é coisa pouca, mas ainda como material usado para contrariar o processo de interiorização de uma série de lugares-comuns sobre a África e, consequente, sobre a construção de um sistema hierarquizante de valores culturais. Por isso, este livro pressupõe que se esteja atento a uma perspectiva ocidentalocêntrica, que tem plasmado, mesmo que inconscientemente, os estudos sobre a África feito por cientistas sociais das diversas áreas do saber.
O que não posso deixar de referir é que este livro, da autoria de Maria Nazareth Soares Fonseca e Maria Zilda Ferreira Cury, cumpre esta dupla função: por um lado, a de fornecer instrumentos para o estudo interno das literaturas como sistemas autónomos – o que não significa o seu isolamento, o seu fechamento em relação a outro qualquer sistema. Por outro, consolidar o seu reconhecimento como área de estudo eminente.”
Inocência Mata
Lisboa, Março/Abril de 2008

Sobre os autores
Maria Nazareth Soares Fonseca

Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais, é professora do Programa de Pós-graduação em Letras da PUCMinas e professora aposentada da UFMG. Responsável pela área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.

Maria Zilda Ferreira Cury

Possui graduação em Letras (Português, Inglês e Alemão) pela Universidade de São Paulo, mestrado em Estudos Literários: Literatura Brasileira, pela Universidade Federal de Minas Gerais (e doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. Além disso, fez Pós-doutorado pela Sorbonne Nouvelle- Paris III (1999). Professora Titular de Teoria da Literatura pela UFMG e coordenadora do projeto de pesquisa “Intelectuais e vida pública: mediações e migrações”, financiado pelo CNPq a que seu projeto individual de pesquisa “Imigrantes na literatura” encontra-se vinculado. Participa, como pesquisadora, no projeto de pesquisa “Topografia da cultura: representação, espaço e memória” coordenado pela Profa. Dra. Sara del Carmen Rojo vinculado ao Convênio UFMG/ Università degli Studi di Bologna. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Comparada, atuando principalmente nos seguintes temas: imigrantes, intelectuais e vida pública, Carlos Drummond de Andrade, Belo Horizonte, leitura e intertextualidade.

Ficha Técnica do Livro
Páginas: 136
Formato: 15,5 x 22,5 cm
Acabamento: brochura
Editora: Autêntica
ISBN: 9788575263686
Código: 10214
Área temática: Literatura brasileira e estrangeira
Edição: 1ª

http://www.autenticaeditora.com.br/livros/item/462

Para ler uma resenha sobre este livro, acesse:

http://www.autenticaeditora.com.br/noticias/item/277

Mito: Countdown to Basie's Blues (exposição)


sábado, 6 de dezembro de 2008

Coleções Caros Amigos - OS NEGROS

Informações e reflexões a respeito do papel dos negros na sociedade brasileira. Realizada pela mesma equipe que publica Caros Amigos a coleção traz a originalidade e independência que caracterizam a revista além da coordenação de Joel Rufino dos Santos, historiador, professor, escritor e um dos nomes de referência sobre cultura africana no país.

Serão 16 fascículos quinzenais, cada um com 32 páginas a quatro cores, ao fim dos quais você terá um livro de 512 páginas. Para encaderná-lo, junto com o número 8 você receberá uma capa dura.

Acreditamos que, pondo nas bancas este material paradidático, vamos estimular não apenas professores e estudiosos, mas a todo brasileiro interessado na sua história a debruçar-se sobre a questão. E concluir, como nós, que “contar a história do negro é contar a história do Brasil”.

PLANO DE OBRA

1 Resistência e rebeliões I
2 O que é o racismo
3 As muitas religiões I
4 Os fazedores
5 Resistência e rebeliões II
6 Música popular
7 O melhor futebol do mundo
8 Música erudita
9 As muitas religiões II
10 Bravas mulheres
11 Os Movimentos
12 As muitas religiões II
13 Arte afrobrasileira
14 Resistência e rebeliões II
15 Américas negras
16 Quem construiu o Brasil

Fonte: https://www.virtualclub.com.br/shop/caloja/

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Tchalê Figueira e a circum-navegação nas letras

Por Ricardo Riso
Somente um país como Cabo Verde entre os países africanos de língua oficial portuguesa e a sua vocação para um olhar universalizante poderia proporcionar-me o encontro com temáticas marginais, em sua literatura. Dentro de tal proposta, o nome melhor indicado seria o de Tchalê Figueira, mais reconhecido como artista plástico que ilustra os desfavorecidos de seu país em pinturas representando figuras grotescas e, em alguns casos, hilariantes, carregadas em cores fortes, traços viscerais e gestos expressionistas.

Ao arriscar-se pela literatura, Tchalê não foge à abordagem das personagens que o consagraram, apresentando a figura do marinheiro que navegou pelos sete mares do mundo, Ptolomeu Rodrigues, protagonista da novela Ptolomeu e a sua viagem de circum-navegação (Mindelo: Mar da Palavra, 2005).

Baseando-se na oralidade, com uma escrita descompromissada com as normas da língua culta, o autor utiliza um atento narrador que escuta as peripécias cheias de contra-tempos do velho marinheiro bêbado, que conta com prazer e algumas doses de irritação quando interrompido, suas artimanhas pelos diversos bares e prostíbulos das zonas portuárias dos quatro cantos do mundo.

As aventuras de Ptolomeu confundem-se com a história do autor, pois Tchalê Figueira também fugiu do arquipélago cabo-verdiano durante o final da ditadura salazarista para não ser convocado pelo serviço militar e lutar contra seu povo. Com isso, ainda na adolescência, tornou-se marinheiro e navegou pelo globo.

Cerceado pelos mares, o ilhéu cabo-verdiano possui uma inevitável relação de proximidade com as águas, sendo seu desafio e determinante em seu destino, o que o leva geralmente à emigração por causa das dificuldades trazidas pela seca, fome, miséria e falta de trabalho digno. Foi o que aconteceu com Ptolomeu. Saiu como clandestino durante a longa noite do período colonial, sofria com a repressão de ordem familiar, social e política. Logo, encarar o mar significava a liberdade em vários sentidos.

As aventuras e desventuras de Ptolomeu demonstram alguns lugares em que os cabo-verdianos se espalham pelo mundo. Muitos desses emigrantes viram marinheiros ou fixam residência, ou passam pelas cidades as quais o velho Ptolomeu cruzou, como Roterdã, Vladvostok e Salvador.

Ptolomeu conta suas histórias a uma platéia imaginária e ao narrador, que se surpreende com os momentos de erudição do velho marujo, suas passagens e encontros inusitados como quando foi salvo em Moscou das cruéis prisões russas pelos camaradas Amílcar Cabral e Pedro Pires (do PAIGC - Partido Africano da Independência de Guiné e Cabo Verde), que lá se encontravam para obter apoio do país comunista para a luta pela independência.

Seu desejo insaciável pelas mulheres é, por conseguinte, o motivo de seus infortúnios em reviravoltas que envolvem chantagens políticas, trapaceiros, policiais corruptos, cafetões, mulheres iradas com sua infidelidade e "cachorros" que cruzam o seu caminho.

Apesar dos percalços vividos pelo velho, as frenéticas viagens de Ptolomeu são saborosas, curiosas, rápidas e irônicas o que torna o pequeno livro uma agradável leitura.

Tchalê Figueira conseguiu apresentar com a novela Ptolomeu e a sua viagem de circum-navegação como seria a vida de um cabo-verdiano que decidiu encarar os mares e as diversas culturas do mundo, entretanto, acaba retornando a Cabo Verde. O seu lugar no mundo. O lugar que termina a sua circum-navegação.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Museu AfroBrasil e Cabo Verde: um encontro

Por Ricardo Riso

Na recente viagem a São Paulo, eu tinha programado duas visitas além do Seminário CONTRAVENTO, PEDRA-A-PEDRA na USP: a primeira à 28ª Bienal de Artes, em seguida, ao Museu AfroBrasil, ambos no Parque do Ibirapuera.

Quando conheci o artista plástico cabo-verdiano Mito no primeiro dia do Seminário, logo fiz esse convite que foi aceito imediatamente. Estendi-o às profas. Norma Lima e Sonia Santos que também se mostraram animadas com o passeio.

Na sexta-feira, a Profa. Sonia Santos conseguiu fechar um pequeno grupo de cabo-verdianos: o poeta Filinto Elísio, a documentarista Margarida Fontes, Mito, o jornalista Alveno Figueiredo e Silva e o Prof. Moacyr Rodrigues, incentivando-os com a ida ao Museu AfroBrasil, que estava fora da programação do seminário. Além deles, a Profa. Norma e a Graça, graduanda da USP.

Da esquerda para a direita: Filinto Elísio, Margarida Fontes, Mito e Emanoel Araújo

Após a passagem pela Bienal, chegamos ao Museu. Lá, a Profa. Sonia começou a costurar a possibilidade de uma entrevista com o artista plástica e curador da Instituição, o sr. Emanoel Araújo. Enquanto isso, íamos conhecendo a bela estrutura do local que conta minuciosamente a história do negro brasileiro com riqueza de imagens e obras em diversas linguagens. Tudo com o devido cuidado e dentro dos padrões de uma instituição de alto nível.

Para nossa felicidade, os esforços da Profa. Sonia alcançaram o objetivo e fomos atendidos pelo sr. Emanoel Araújo que nos recebeu com muita atenção e satisfação por estar com um grupo de artistas e pesquisadores cabo-verdianos.

Chegando à biblioteca, Profa. Dra. Norma Lima e Profa. Dra. Sonia Santos.

Após as apresentações, Filinto Elísio assumiu a função de porta-voz do grupo e destacou a importância em se estreitar os laços entre Cabo Verde e o Museu AfroBrasil. Já Emanoel Araújo expôs a vontade de concretizar essa aproximação e comentou sobre as dificuldades em manter um espaço dedicado à temática afro-descendente.

Emanoel Araújo e a nossa delegação

Encerrada a reunião, Araújo conduziu-nos pelo Museu passando preciosas informações acerca do acervo e levou-nos à ampla biblioteca. Para terminar nosso dia, brindou cada um de nós com o belo catálogo da Instituição.

Emanoel Araújo autografando o meu catálogo.

Foi uma tarde agradável que coroou o trabalho de bastidores da Profa. Sonia Santos para que os nossos companheiros cabo-verdianos fossem atendidos por Emanoel Araújo, sendo um passo inicial para que Cabo Verde e o Museu AfroBrasil estreitem as relações. Eu fiquei feliz por participar desse momento, por conhecer a grandiosidade do Museu e ter noção da necessidade de um espaço tão belo e tão bem cuidado, dedicado à cultura do negro brasileiro e, principalmente, um espaço para termos maior amplitude da formação identitária brasileira. O Museu AfroBrasil presta um excelente serviço por apresentar um olhar excluído pela história oficial.

Quando estiver em São Paulo, não deixe de visitar o Museu AfroBrasil e descubra o excepcional trabalho ali realizado, levando-o a conhecer a história do negro brasileiro, por conseqüência, a nossa história.


MUSEU AFROBRASIL
Rua Pedro Álvares Cabral, s/nº
Pavilhão Manoel da Nóbrega
Parque do Ibirapuera, portão 10
04094-050 - São Paulo, SP
Outros telefones: 5579-8542 / 5579-7716 / 5579-6399

http://www.museuafrobrasil.com.br
E-MAIL: agendamento@museuafrobrasil.com.br

O Museu funciona todos os dias, exceto às 2ªs feiras
Horário de atendimento: das 10h às 17h

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

CONTRAVENTO, PEDRA-A-PEDRA: um marco nos estudos cabo-verdianos


À Profa. Dra. Norma Lima (UNESA), amiga que me inseriu nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e minha principal incentivadora
À Profa. Dra. Simone Caputo Gomes (USP), que sempre estimulou minhas pesquisas acerca dos artistas de Cabo Verde, cedendo imagens e passando informações, além de ser uma das principais divulgadoras deste blog
À Profa. Dra. Carmen Lúcia Tindó Secco (UFRJ), por todo o carinho, orientação, incentivo e atenção desde que nos conhecemos
À Profa. Dra. Maria Teresa Salgado, pelo carinho e oportunidade oferecida no início de minha trajetória
Aos amigos cabo-verdianos Mito e Filinto Elísio, que demonstraram felicidade extrema com o meu texto sobre a "Sopinha de Alfabeto"

De 25 a 27 de novembro, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC/USP), graças à competência, à determinação e à dedicação da Profa. Dra. Simone Caputo Gomes, organizadora do CONTRAVENTO, PEDRA-A-PEDRA – I Seminário de Internacional de Estudos Cabo-Verdianos, que proporcionou a nós, estudantes e professores, dias de intenso contato com a cultura cabo-verdiana representada por importantes pesquisadores daqui e de lá nas áreas de História, Antropologia, Música, Lingüística, Artes Plásticas e, principalmente, Literatura.

Primeiro dia

A organizadora do seminário Profa. Dra. Simone Caputo Gomes (USP) na palestra de abertura

O primeiro dia começou com homenagens à Profa. Dra. Simone Caputo Gomes e à Ministra da Educação de Cabo Verde, Vera Duarte. A seguir, o historiador e embaixador de Cabo Verde no Brasil, Daniel António Pereira, ministrou palestra sobre a relação do arquipélago com o nordeste brasileiro. Logo depois, o Prof. Manuel Brito-Semedo (Universidade Jean Piaget de Cabo Verde) traçou uma concisa trajetória da construção da identidade nacional cabo-verdiana. Nesta mesa, os debatedores foram o Prof. Dr. Benjamin Abdala Jr. (USP), a Profa. Dra. Rita Chaves (USP) e o Prof. Sérgio Paulo Adolfo (UEL).


Riso e Vera Duarte após autografar o seu primeiro livro de poesia "Amanhã Amadrugada"


Na próxima mesa, a lingüista Dulce Almada Duarte brindou-nos com uma palestra sobre o crioulo cabo-verdiano.

Ao centro, a lingüista Dulce Almada Duarte proferindo a palestra "Do pidgin de 500 ao crioulo cabo-verdiano"


À tarde, o antropólogo João Lopes Filho nos mostrou algumas manifestações culturais do arquipélago, com ênfase no sincretismo religioso. Entretanto, sua exposição acelerada prejudicou a compreensão de algumas passagens importantes. Depois, Moacyr Rodrigues ministrou palestra sobre a presença do terra-longismo na música e na literatura de Cabo Verde.

O antropólogo João Lopes Filho (Universidade de Cabo Verde), Prof. Moacyr Rodrigues, Profa. Dra. Sonia Santos (FAFIMA/Macaé), Profa. Vima Lia de R. Martin (USP) e Prof. Jorge Valentim (UFSCAR)

Para encerrar o dia, uma mesa composta pela competentíssima Profa. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC/MG), a Profa. Salete Cara (USP) e os conferencistas Tomé Varela da Silva (poeta e pesquisador) e José Maria Semedo (Universidade de Cabo Verde). Silva abordou diversos aspectos das tradições orais do arquipélago e Semedo apresentou o batuque do século XIX até os dias atuais, contaminado por instrumentos elétricos, participação masculina etc.

A Profa. Dra. Maria Nazareth Soares da Costa (PUC/MG), o pesquisador e poeta Tomé Varela da Silva, o Prof. José Maria Semedo (Universidade de Cabo Verde) e a Profa. Salete Cara (USP)


No calçadão do MAC/USP: Carmen Lucia Tindó Secco (UFRJ), Fátima Fernandes (Universidade de Cabo Verde), Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC/MG), Norma Lima (UNESA) e Tânia Macedo (USP)

Segundo dia

O segundo dia começou com a bela comunicação de Vera Duarte sobre a presença das mulheres desde os primórdios da literatura cabo-verdiana e a relação de afetos entre as literaturas de Cabo Verde e Brasil. Sua fala, concisa e segura, foi um dos grandes momentos do Seminário.


Profa. Dra. Sonia Santos (FAFIMA/Macaé) e Ricardo Riso


Na mesa em que as mulheres reinaram, o momento mais belo e lírico de todo o Seminário deve-se à escritora Fátima Bettencourt após a leitura de uma crônica sinestesicamente linda sobre a cultura crioula, relacionando-a com cheiros e sabores do milho. Com voz suave, pausada e elegante, Bettencourt envolveu a todos em um profundo silêncio encerrando sua participação com a leitura do poema “Oração ao milho” de Cora Coralina, que aqui transcrevo:

Senhor, nada valho.
Sou a planta humilde dos quintais pequenos
e das lavouras pobres.
Meu grão, perdido por acaso,
nasce e cresce na terra descuidada.
Ponho folhas e haste, e se me ajudardes, Senhor,
mesmo planta de acaso, solitária,
dou espigas e devolvo em muitos grãos
o grão perdido inicial, salvo por milagre,
que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo
e de mim não se faz o pão alvo universal.
O Justo não me consasgrou Pão de Vida, nem
lugar me foi dado nos altares.
Sou apenas o alimento forte e substancial dos que
trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre.
Sou de origem obscura e de ascendência pobre,
alimento de rústicos e animais de jugo.
Quando os deuses da Hélade corriam pelos bosques,
coroados de rosas e de espigas,
quando os hebreus iam em longas caravanas
buscar na terra do Eito o trigo dos faraós,
quando Rute respigava cantando nas searas de Booz
e Jesus abençoava os trigais maduros,
eu era apenas o bró nativo das tabas ameríndias.
Fui o angu pesado e constante do escravo na
exaustão o eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha econômica o proletário.
Sou a polenta do imigrante e
a miga dos que começam
a vida em terra estranha.
Alimento de porcos e do triste mu de carga.
O que me planta não levanta
comércio, nem avantaja dinheiro.
Sou apenas a fartura penosa e
despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos na glória
do dia que amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras
à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal agradecida a Vós, Senhor,
que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho.
(http://www.lilianreinhardt.prosaeverso.net/blog.php?idb=11665)


Prof. Emerson Soares (USP) e a escritora Fátima Bettencourt. Foto de Norma Lima.

Na parte da tarde, as ações concentraram-se no CINUSP com três documentários realizados pela jornalista Margarida Fontes. O primeiro mostrava aspectos históricos da Cidade da Praia; o segundo era uma bonita biografia sobre o claridoso Manuel Lopes; e o terceiro tratava sobre o crônico problema da água potável em Cabo Verde, apresentando alternativas para acentuar o drama do arquipélago.


Profa. Dra. Norma Lima, a documentarista Margarida Fontes e o artista plástico Mito em debate no CINUSP.

Após um rápido intervalo, tivemos uma séria de clips do meu amigo, o artista plástico Mito. Experimentar é uma boa definição para o ousado Mito, artista único no panorama cabo-verdiano. Seus vídeos inquietantes e não-lineares – alguns lembram os works in progress de Hélio Oiticica e Neville de Almeida (que será abordado por mim em um futuro texto) –, revelam as múltiplas facetas de sua obra que retrata temas típicos de Cabo Verde, porém, com tendências universais, e altamente antenados com as propostas contemporâneas dos principais centros de arte do mundo. Destaque absoluto para o clip em que uma batida de drum’bass faz o fundo para a voz da tradicional cantadeira de batuque Nácia Gomi, sendo as imagens de um estádio de futebol lotado, comemorando a vitória da seleção do país.

O artista plástico e poeta Mito, Ricardo Riso e o poeta Filinto Elísio na entrada do MAC/USP


Em seguida, o debate com a claridosa participação da Profa. Dra. Norma Lima (UNESA), que com segurança e seu olhar perspicaz abrilhantou as discussões com suas observações. Enquanto Mito revelou o seu inquietante processo criativo, que mescla diversos meios de linguagem e referências de estilos artísticos. Aproveito para agradecer a generosidade de Mito ao citar o texto que fiz para a Sopinha de Alfabeto durante a sua fala.

Profa. Dra. Norma Lima (UNESA)


Nesta mesa ainda tivemos intervenções calorosas e coerentes dos poetas Filinto Elísio e Mário Fonseca acerca de um olhar amplo da produção literária cabo-verdiana pós-Claridade, antecipando o que viria no debate do dia seguinte.

Terceiro dia

No último dia de debates, a Profa. Dra. Maria Teresa Salgado (UFRJ), a Profa. Dra. Rejane Vecchia (USP) e o Prof. Dr. Mário César Lugarinho (USP) formaram a mesa inicial com os conferencistas Profa. Fátima Fernandes (Universidade de Cabo Verde) e o poeta Filinto Elísio. A Profa. Fernandes comentou sobre a importância dos escritores João Vário (que ainda não conheço), Corsino Fortes e José Luís Tavares na literatura do arquipélago. Depois, o incisivo Filinto Elísio (o grande destaque do Seminário) falou sobre a poesia surgida a partir dos anos 1980 com forte presença existencialista, diferindo-a da tradição claridosa dominante no cenário literário do arquipélago. Elísio criticou a insistência das temáticas da Claridade, que engessam o desenvolvimento da literatura em Cabo Verde, contudo, reconhece o valor da poesia dos claridosos e frisou que sua contestação se refere “não a Cristo, mas aos cristãos”. Suas declarações deixaram os ânimos inflamados e poetas como Mário Fonseca e Corsino Fortes expuseram suas opiniões contrárias. Esta mesa foi o grande momento do Seminário.


O poeta Filinto Elísio com o tema "A literatura não claridosa de Cabo Verde: a deriva existencialista da nova poesia cabo-verdiana" e a Profa. Fátima Fernandes (Universidade de Cabo Verde)


Para finalizar a manhã, Corsino Fortes e Mário Fonseca foram mediados por Tania Macedo. Corsino, com sua fala pausada e serena, recitou alguns de seus belos poemas. Já Fonseca, com sua fala expressionista, foi severo com a fragilidade da nova produção literária cabo-verdiana, segundo ele de baixíssima qualidade.

Profa. Dra. Tania Macedo (USP), o poeta Mario Fonseca e o poeta Corsino Fortes


Para encerrar o ciclo de debates, a aguardada palestra de Kiki Lima, tendo à mesa a Profa. Dra. Simone Caputo Gomes, a Profa. Dra. Carmen Lucia Tindó Secco (UFRJ) e o jornalista e pesquisador da música cabo-verdiana Alveno Figueiredo e Silva. Este, apresentou as relações entre a música do arquipélago e a influência dos nossos cantores de rádio no período colonial, com belas fotos e boas canções selecionadas.

A organizadora do Seminário, Profa. Dra. Simone Caputo Gomes (USP), Profa. Dra. Carmen Lucia Tindó R. Secco (UFRJ) e o pintor-músico-poeta Kiki Lima


Já Kiki Lima teorizou sobre as suas idéias do que é fazer pintura, do que representar, como e por quê. Apresentou imagens que percorreram toda a sua obra e as fases pelas quais passou: a princípio com uma forte crítica social, lembrando os muralistas mexicanos, até chegar na fase impressionista, por congelar o tempo, e expressionista ensolarada, por seu gestual agressivo que concilia ritmo as suas pinceladas, a “pincelada rítmica” à qual citei em um artigo aqui no blog e que foi mencionada pela Profa. Dra. Carmen Lucia Tindó Secco. Kiki ainda apresentou suas composições ao violão e cantou suas músicas que emocionaram a todos, encerrando sua participação.


Riso e Mito na exposição de pinturas de Kiki Lima, anexo MAC/USP (foto oficial do Seminário)

Para finalizar o Seminário, no anexo do MAC/USP houve um desfile de moda cabo-verdiana tradicional e moderna, coordenado pela estilista Teodora Neves.


Desfile de Moda Cabo-Verdiana. Foto de Norma Lima.

A confirmação

Parece-me que foi para lá de positivo o CONTRAVENTO, PEDRA-A-PEDRA: I Seminário Internacional de Estudos Cabo-Verdianos. Ótimo em vários sentidos, pois revi professores de outras Instituições e conheci outros, fiz contatos com diversos escritores, comprei livros que jamais pensaria em tê-los e participei de palestras que contribuíram para a minha compreensão de diversos aspectos da cultura cabo-verdiana.

CONTRAVENTO, PEDRA-A-PEDRA serviu para consolidar e dar maior visibilidade aos estudos sobre Cabo Verde em nosso país, coroando todo o esforço da Profa. Dra. Simone Caputo Gomes ao longo de mais de três décadas.

Ricardo Riso e Norma Lima

Parabéns, Profa. Simone! Parabéns aos conferencistas e toda equipe que trabalhou para a realização deste evento!

CONTRAVENTO, PEDRA-A-PEDRA foi um momento histórico. Aguardo o próximo.

Ricardo Riso

domingo, 30 de novembro de 2008

CD do III Encontro Internacional de Professores de Literaturas Africanas

A Profa. Dra. Carmen Lucia Tindó Secco (UFRJ) gentilmente me entregou o cd com os artigos publicados do III Encontro Internacional de Professores de Literaturas Africanas - Pensando África, durante o Contravento, Pedra-a-pedra - I Seminário de Estudos Cabo-verdianos realizado na USP. Foi uma grata surpresa.
Naquele Encontro, apresentei minha primeira comunicação: "Letras e desenhos encarcerados: a reclusão libertadora na arte de José Craveirinha e Malangatana Valente".

Para acessar este artigo, clique no endereço abaixo:

Bienal de Artes de São Paulo 2008 – a Bienal do vazio

Por Ricardo Riso


Estive na capital paulistana nesta semana. Como em todas as vezes, o circuito de artes plásticas sempre me atraiu e não poderia ser diferente desta vez, pois a Bienal de Artes de São Paulo está aberta e a cidade não decepciona quando se trata de eventos artísticos.

Questionar a autoria apresentando diversas reproduções de obras famosas. Uma idéia cansada, repetitiva e ultrapassada. Pobre Bienal...

Entretanto, fiquei estarrecido com o que vi nesta edição da Bienal! Já sabia pelas diversas críticas negativas que a seleção de trabalhos estava fraca, mas não imaginei que as obras fossem tão ruins. A atual curadoria conseguiu piorar o que já estava horrível. Sinceramente, não sei qual o papel da Bienal hoje. A edição anterior tinha uma boa proposta de concepção, ao menos. Contudo, a atual nem isso formulou. O vazio predominou.

Riso brincando no parquinho da Bienal de Artes de São Paulo

Por outro lado, o vazio citado corresponde ao momento que estamos vivendo. Sociedade sem sentido, vidas desperdiçadas e despedaçadas, sonhos esgarçados, memórias fraturadas, ausência de afetos, fim das utopias. Vazio de idéias, vazio de criatividade. Ou seja, a arte ali representada retrata a miséria em que vivemos. A miséria mental da contemporaneidade do neoliberalismo em estado terminal.

Entendiado com a Bienal. Realmente, o melhor da Bienal está no salão vazio.

A destacar, com profunda tristeza, o salão completamente vazio, por que é melhor do que as obras expostas em todo o prédio, e o escorrega, pois nele podemos sair rapidamente do prédio e do fajuto parquinho de diversões que se tornou a Bienal nesta edição.

O que resta na Bienal: brincar. Riso na chegada do escorrega. Foto de Norma Lima.

Bienal banal bienada. Adeus.

domingo, 23 de novembro de 2008

Abraão Vicente e a emigração em Cabo Verde

Obras de jovem artista relêem tema caro à literatura do arquipélago

Por Ricardo Riso

A condição insular de Cabo Verde impôs ao ilhéu os dilemas “querer ficar e ter que partir” e/ou “ter que partir e querer ficar” em razão das condições adversas do arquipélago, ora devido às condições climáticas e geográficas desfavoráveis com as persistentes secas e solo árido para o plantio, ora com situações políticas e/ou financeiras como o colonialismo português no passado, e as desigualdades sociais e econômicas que a independência do país não conseguiu resolver. Ou seja, emigrar faz parte da cultura de Cabo Verde.

Disseminadas na literatura cabo-verdiana, a evasão e a emigração foram temas que percorreram todo o século XX gerando profundas polêmicas e atritos entre os escritores de diferentes gerações. O caso mais célebre é o da geração que lançou a revista Claridade (1936), marco da cabo-verdianidade. Seus poetas: Jorge Barbosa, Manuel Lopes e Osvaldo Alcântara (Baltasar Lopes) foram injustamente acusados de evasivos por seus pares nas décadas seguintes.

Entre os claridosos, como eram conhecidos, não havia crítica explícita ao regime colonial português vigente à época, porém, havia, sim, o surgimento de um sentimento nacional independente a Portugal, de apego à terra, fazendo da evasão a válvula de espace para o sonho, como podemos inferir no “Poema de quem ficou” de Manuel Lopes:

Eu não te quero mal
por esse orgulho que tu trazes;
porque este ar de triunfo iluminado
com que voltas...

...O mundo não é maior
que a pupila dos teus olhos
tem a grandeza
da tua inquietação e das tuas revoltas.

...Que teu irmão que ficou
sonhou coisas maiores ainda,
mais belas que aquelas que conheceste...
Crispou as mãos à beira do mar
e teve saudades estranhas, de terras estranhas,
com bosques, com rios, com outras montanhas
– bosques de névoas, rios de prata, montanhas de oiro –

que nunca viram teus olhos
no mundo que percorreste...

(ANDRADE, Mario de.
Antologia Temática de Poesia Africana Vol. 1 – Na Noite Grávida de Punhais. Lisboa: Sá da Costa, 1977. 2ª ed. p. 27)

Nos anos seguintes, aparece a revista Certeza (1944), de forte tendência marxista, que explicita o absurdo do colonialismo enfatizando o desejo de liberdade. Na década de 1950, nasce o PAIGC (Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde) comandado por Amílcar Cabral; na década seguinte começam as guerras coloniais nos cinco países africanos dominados por Portugal que levariam à independência após a Revolução dos Cravos, em terras lusas, no ano de 1974.

O sentimento crescente de revolta e a nova relação com o mar, não mais castrador dos sonhos do ilhéu, são bens retratados por Ovídio Martins no poema “Unidos Venceremos”:

Estendemos as mãos
desesperadamente estendemos as mãos
xxxxxxpor sobre o mar
As ondas não são muros
são laços
de sargaços
que servirão de leite
à grande madrugada
Nosso amor de liberdade
xxxxxxxxxxxxe de justiça
será contemplado
e nosso povo terá direito ao pão
Povo que trabalha
xxxxxxxxxxxxMas não come
Povo que sonha
xxxxxxxxxxxxe obterá
Temos a ternura das nossas ilhas
temos as certezas das nossas rochas
Estendemos as mãos
desesperadamente estendemos as mãos
caboverdianamente estendemos as mãos
xxxxxxxpor sobre o mar.

(ANDRADE, Mario de.
Antologia Temática de Poesia Africana Vol. 2 – O canto armado. Lisboa: Sá da Costa, 1979. p. 142)

Conquistada a liberdade da nação, o cantalutismo domina a poesia engessando os temas tratados. Somente no final dos anos 1980, a antologia Mirabilis – de veias ao sol marcará uma ruptura com os eternos dilemas do ilhéu, tantas vezes versados pelos poetas cabo-verdianos. A proposta da antologia fica clara no prefácio de José Luís Hopffer Almada:

Fustigada pelos ventos (da incompreensão!), pelo sol (da hipocrisia!), pelos tempos vários do mau tempo literário, desse tempo querendo-se vegetação literária. No deserto, cresce a geração mirabílica, feita signo na margem desértica do mar. De veias ao sol. As veias da indagação. As veias alagadas da terra das estradas, da poeira do dia-a-dia, do massapé dos campos, do lixo dos caminhos suburbanos, do desespero recoberto de moscas, baratas e outros vermes. As veias loucas do mar, do marítimo lirismo dos dias afogados nos ciúmes dos montes. As veias, veias de vida, de morte, de desespero, das quatro estações místicas do que se medita no refúgio do silêncio. Veias do camponês e da enxada neste coito de séculos com a terra. Ao sol, hipócrita por entre a bruma e os cerros. Sol, signo de luz. Sol que ilumina. Sol que queima e ofusca o caminhar. Sol dependurado da perseverança secular. Mirabilis – de veias ao sol. Geração mirabílica indagando o sol. “No Deserto cresce a Mirabilis”. Diz o poeta Orlando Rodrigues. “Embora de veias ao sol”. Adita Rodrigo de Sousa, para que das imagens do deserto cresçam as palavras da nossa geração e delas reste, ao menos, o cadáver da poesia. Sugere Mito, o poeta plástico, ou que o cadáver se metamorfoseie em flor e espinho, num panorama azul, de onírico, sugere Mito, o plástico poeta. Uma única rosa é a Mirabilis, e dela queda um sol de sangue. O sol da poesia mirabílica.

(ALMADA, José Luís Hopffer (ORG.). Mirabilis – de veias ao sol – antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos. Praia: ICL, 1988. p.26-27)

Seguindo os novos rumos da poesia, Euricles Rodrigues escancara o rompimento com o passado literário em seu poema “Revolução – evolução”:

Viola a tua tradição
xxxxxxxxxxxxxenterra a tua paranóia marítima secular
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxrenega a tua estreita visão interior
E busca
xxxxxxxnovas formas
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxnovas artes
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxnovos engenhos
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxnova mente
De
xxcortar as amarras da estagnação
xxengravidar a terra de novo sangue
xxestabelecer nova aliança com o mar
(ALMADA, José Luís Hopffer (ORG.). Mirabilis – de veias ao sol – antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos. Praia: ICL, 1988. p.190)

A emigração hoje

Atualmente, Cabo Verde apresenta elevado número de emigrantes espalhados pelo mundo, principalmente nos Estados Unidos e continente europeu. Devido às dificuldades econômicas, o cabo-verdiano continua a sair do seu país a procura de melhores condições de vida nos lugares citados. Entretanto, a recessão econômica mundial crescente nos últimos anos e com maior evidência nos meses recentes, além do alto número de estrangeiros nos países de primeiro mundo, fez com que a entrada de estrangeiros sofresse sérias restrições e vigilância rigorosa.

Hoje, conseguir o “visto” para entrar em um país desenvolvido é extremamente difícil por causa das inúmeras exigências feitas pelos consulados. A conseqüência desse endurecimento é o aumento do fluxo de pessoas ilegais que arriscam a própria vida em embarcações superlotadas e com péssima estrutura, oriundas do continente africano.

Por outro lado, há um grave problema vivenciado por Cabo Verde. Por sua posição geográfica, o arquipélago acaba recebendo diversas embarcações ilegais que não conseguem atingir o seu destino, o mais comum são as Ilhas Canárias, território espanhol. Tal fluxo de clandestino gera imensos transtornos a Cabo Verde, pois o país não possui estrutura adequada para receber um grande número de pessoas vindos de várias partes da África, como a Mauritânia, Senegal, Mali e outros países. (Para ver algumas matérias sobre este problema, acesse os links relacionados no final deste texto)

Essa situação simplesmente denuncia o fracasso da política neoliberal dominante em nossos dias, onde os países do primeiro mundo fecham-se e ignoram a situação do continente africano, devastado pela miséria que assola seus países em boa parte causada pelas pressões econômicas dos europeus e americanos.

Os passaportes de Vicente

Nascido na ilha de Santiago em 1980, Abraão Aníbal Fernandes Barbosa Vicente, o Abraão Vicente, vive em Portugal desde 1998, onde se formou em Sociologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Abraão Vicente possui um blog - http://abraaovicenti.blogspot.com/ - com diversas séries expostas, carecendo das fichas técnicas das obras.

Vicente surpreende pela variedade das técnicas apresentadas, que vão desde fotografias com cenas de batuques, de senhoras e senhores que sofrem a intervenção da pintura, criando um belo efeito plástico na série “Len di li”, a trabalhos extremamente expressivos como seus óleos sobre papel, delicadas cenas de nu em aquarelas, e instigantes trabalhos conceituais em que alia grafismos e imagens. Diversidade que poderia traduzir indecisão em sua produção, porém, felizmente, demonstra segurança, conhecimento e, principalmente, ousadia na trajetória deste jovem artista cabo-verdiano.

Em duas séries, “Retratos” e “Passports Frames”, Vicente apropria-se de passaportes para criar tensas e inquietantes obras acerca de um documento que, se pode dizer, mais do que nunca se tornou objeto de desejo do homem cabo-verdiano. Entretanto, antenado com o momento em que vive, o artista transcreve o sugestivo título de uma música dos Rolling Stones em um de seus trabalhos: you can’t always get what you want.

Despedaçando o documento do passaporte, rasurando-o, contaminando-o com pinceladas e traços de giz agressivos, pedaços de fotografias, partes do corpo humano desenhadas e textos nervosos e caóticos, Vicente denuncia o desespero a que conduz as pessoas a abandonar suas famílias e o país. Estendendo o olhar, podemos dizer que ao desfigurar tão importante documento, o artista levanta profundas discussões a respeito da identidade desse homem e da diáspora cabo-verdiana em diversos países como Suécia, Eslovênia, Estados Unidos, Brasil, Portugal, Cuba e Venezuela.

Dialongando com os traços viscerais e o grafismo neo-expressionista típico do americano Jean-Michel Basquiat – não há como não lembrar de suas obras –, Vicente mostra, pela impessoalidade das figuras representadas, o cabo-verdiano que emigra, o cidadão comum, que busca suprir suas necessidades no estrangeiro. Figuras fragmentadas, nunca representadas de corpo inteiro, despedaçadas como a vida que pretendem abandonar e a incerteza de um futuro promissor no destino pretendido. Assim como o próprio dilaceramento do documento demonstra a dificuldade de alcançar o objetivo, a saída do país. O próprio dilaceramento de Cabo Verde.

Pluralidade, diversidade, multiplicidade na escolha dos meios para expor suas obras. Abraão Vicente é um artista em sintonia com as questões que afligem o seu tempo, renovando e não se omitindo em denunciar as novas vertentes de um tema que sempre atravessou a cultura cabo-verdiana: a emigração. Seus trabalhos são impacientes e inquietos pelo tratamento dado e pelo o que fazem pensar, deslocando o observador da pura passividade da contemplação.

Abraão Vicente, um novo nome das artes plásticas de Cabo Verde que merece estar ao lado de artistas inovadores e ousados como Mito e Tchalê Figueira.


Bibliografia:
ALMADA, David Hopffer. A identidade cultural cabo-verdiana. In: Caboverdianidade & Tropicalismo – 2ª Jornada de Tropicologia. Recife: Massangana, 1992.

ALMADA, José Luís Hopffer (ORG.). Mirabilis – de veias ao sol – antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos. Praia: ICL, 1988.

ANDRADE, Mario de. Antologia Temática de Poesia Africana Vol. 1 – Na Noite Grávida de Punhais. Lisboa: Sá da Costa, 1977. 2ª ed.

ANDRADE, Mario de. Antologia Temática de Poesia Africana Vol. 2 – O canto armado. Lisboa: Sá da Costa, 1979.
GOMES, Simone Caputo. Rostos, gestos, falas, olhares de mulher: o texto literário de autoria feminina em Cabo Verde. In: CHAVES, Rita e MACEDO, Tânia. (Orgs.) Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.

Sobre Abraão Vicente na Internet:
http://www.confrariadovento.com/revista/numero18/artista.htm
http://www.artafrica.info/html/artistas/artistaficha.php?ida=195

Textos sobre emigração na Internet:
http://www.cndhc.org/?sec=5&sub=5&art=170
http://arquivo.vozdipovo-online.com/conteudos/cabo_verde/emigracao_ilegal:_cabo_verde_quer_negociar_restricao_a_entrada_de_africanos/
http://noticias.uol.com.br/ultnot/lusa/2006/05/28/ult611u72222.jhtm
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u95700.shtml

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Mito e a Sopinha de Alfabeto: renovação nas artes de Cabo Verde

Por Ricardo Riso
Mito, pseudônimo de Fernando Elias Hamilton Barbosa, é um nome inquietante na cultura cabo-verdiana do pós-independência. Artista multifacetado, atua nas letras e nas artes plásticas com desenvoltura e fina ironia. Mito não se prende a gêneros ou estilos, transita por várias linguagens e meios para expor suas obras. A ousadia e a diversidade são algumas das suas características, e o diálogo com as vanguardas contemporâneas aparece com freqüência em seus trabalhos, algo pouco comum entre os artistas do arquipélago.

Com o objetivo de movimentar as artes em Cabo Verde, dominado pelo cantalutismo do país recém-independente e no ano do cinqüentenário da revista Claridade, publicação que marca a moderna poesia cabo-verdiana, em 1986, Mito, acompanhado de Arnaldo Silva, dos poetas Eurico Barros e Filinto Elísio, e do fotógrafo João Nelson, lança a revista Sopinha de Alfabeto.
http://www.tanboru.org/mito/sopinha/SP1capa.htm

A Sopinha de Alfabeto surge com a proposta de ampliar os temas artísticos no arquipélago, fazendo do humor e da ironia as suas principais bandeiras. Contudo, tal ousadia desejada por alguns, não seria bem digerida por outros. Em prefácio à reedição de Sopinha de Alfabeto, Lonha Heilmair afirma que:

Se o projecto da Sopinha de Alfabeto foi de molde a suscitar entusiasmos e mudar paradigmas, ele também provocou reacções menos benevolentes por parte de quem se sentia no dever de velar pela manutenção de algum rumo pretensamente sério da criação artística, porque relacionado, por definição, com um discurso oficial institucionalmente progressista. Assim, a Sopinha foi caracterizada como “sinal de decadência infantil”, não tendo a revista “importância nenhuma” (Manuel Delgado in: Michel Laban, Cabo Verde - Encontro com Escritores, tomo II, Porto 1992, p. 758 e 762, respectivamente).

Entretanto, ao visitarmos a publicação em formato eletrônico no site de Mito - http://www.tanboru.org/mito/sopinha/SP1capa.htm -, deparamo-nos com uma revista ousada, pretensiosa, híbrida. Não há como negar a proposta de renovação da Sopinha. Atrevida, sai do lugar-comum em meio às comemorações da Claridade, já na primeira página demonstra os caminhos que pretende seguir e a proposta plural e aglutinadora dos que querem mostrar suas obras:

Sopinha de Alfabeto surge com o objectivo de criar ou tentar criar um espaço livre de publicação e divulgação no domínio das Artes e Letras, não estando enfeudado a nada e a ninguém nem representará o compromisso com quaisquer padrões estético-formais e/ou mesmo temáticos.

Neste número publicamos apenas poemas, caricaturas, desenhos e fotografias mas as páginas deste projecto estão disponíveis para qualquer outro género literário, do ensaio às reportagens, da poesia à crítica literária e do desenho à fotografia.
http://www.tanboru.org/mito/sopinha/SP1Pag1.htm

Posteriormente, essa postura seria radicalizada e celebrada no início da década de 1990, com a antologia Mirabilis – de veias ao sol, organizada por José Luís Hopffer Almada, o grande marco da renovação literária cabo-verdiana.

Em agradáveis vinte e seis páginas, a Sopinha de Alfabeto apresenta variadas formas de linguagem. Mito comparece, dentre outras ilustrações e poemas, com o belo “Poemito Concreto”, além do desencanto com as conquistas sociais não alcançadas pelo país independente, o curto e agressivo poema cheio de assonância e aliteração “A revolta e sua inflação”:

A vida é cara meu caro
Cara de jarro
Carro de barro
Farejo o meu charro
Fumo o cigarro da farra
E escarro na cara do descarado
(MITO - 11 - 84)

http://www.tanboru.org/mito/sopinha/SP1Pag13.htm

O bom poeta Filinto Elísio apresenta poemas em estilos vários: o hai kai, figuras de linguagem como a assonância, a prosa poética estão entre as características formais de sua poesia. Com temáticas inovadoras no panorama literário do país. Utilizando-se da versificação livre futurista, sua matéria poética surge em cenas do cotidiano como no poema “Ao Mito”:

aquela do coveiro boa gente que a Deus pede mais morte
e o recurso de mais pão
aquela do artista travestido de absurdo
e subversivo mefisto das horas substantivas
aquela da mulher náufraga e sem rumo
que como as ondas do mar vem dar às nossas praias íntimas
aquela que nos abre a flor e nos fecunda a alma
aquela do cão vadio que ninguém dá a mínima
mas que o menino triste acompanha e quer adoptar
aquela da estrela cadente na qual "o da passiva"
viaja na ponta do charro
aquela da "luamito" da metalinguagem futurista
aquela da boca do lixo engolindo os nossos titãs
aquela do sol com vergonha de aquecer corações
aquela do coveiro boa gente e etc
aquela cena da vida para ser vivida...
http://www.tanboru.org/mito/sopinha/SP1Pag3.htm

Filinto Elísico também lança poemas muito bem elaborados, com no ótimo e metrificado “A poesia do reverso”

lusoáfricas berço terço
o terceto da nova poesia

onde passava a Passargada
passa agora o pássaro da paz

tão linda e ledice lírica
vero verso e vertigem

cantiga antiga do amigo
contigo ate canto o cantar

o trottoir da trova trolley
que troveja tartex e tempo

o silêncio silex do Simas
da sirene morna muda

lá onde a noite atinge
de esfinge o Conde finge

o poeMito faz lexema
no pão da poesia morena

à Cris à cruz à luz
o sufixo e o crucifixo

o lixo o Kitsch o bicho
dura lex pax lua

o perverso e o avesso
na poesia do reverso ...
http://www.tanboru.org/mito/sopinha/SP1Pag21.htm

O outro poeta que forma o corpo da Sopinha de Alfabeto, Eurico Barros, possui uma poesia intimista, existencialista, crítica do passado histórico como em “Acidente Danado”:

...e ficou a imagem cósmica
de Titicaca
Tibete

dos deuses que levaram

a outra vida
essa vaga possibilidade de ser feliz,
deixando-nos com o Deus

ocidente

danado.

... e ficou o sofrimento bíblico,
captando a telepoesia

dos espíritos

da antiga

Tibete
Titicaca
... e ficou a imagem religiosa do ÉDEN DESABITADO.
http://www.tanboru.org/mito/sopinha/SP1Pag23.htm

Barros experimenta grafismos e ilustrações para seus poemas. O poema “‘o’culto” demonstra a agonia dos tempos de distopia, chamando para a realidade a perplexidade causada pela desilusão com o país:

http://www.tanboru.org/mito/sopinha/SP1Pag11.htm

Para fechar a publicação, uma ilustração de Mito antecipa as reações que Sopinha de Alfabeto cometeria no meio cultural cabo-verdiano:



Neste texto, mencionei apenas o primeiro número da revista, mas está disponível no site o segundo número, este já com participação maior de artistas e outras propostas estéticas estão presentes. Ao digitalizar e disponibilizar a Sopinha de Alfabeto em seu site, Mito presta uma linda homenagem ao percurso recente da literatura de seu país. Para quem admira ou pesquisa a arte do arquipélago, encontra ali um excelente material para compreensão do desenvolvimento literário de Cabo Verde.