Carro soviético que realizava as projeções cinematográficas pela pátria moçambicana. (Imagem de http://www1.uni-hamburg.de/clpic/img/cinema/kuxa_kanema.jpg)
Espelho Atlântico – Mostra de Cinema da África e da Diáspora iniciada ontem, no Caixa Cultural RJ (22 a 27 de abril), brindou o público carioca com a exibição do belíssimo documentário Kuxa Kanema – o nascimento do cinema, que retrata o momento inicial de Moçambique independente a partir de 1975.
O governo moçambicano liderado por Samora Machel, representante máximo do partido FRELIMO que conduziu a guerrilha contra o domínio português, criou o Instituto Nacional de Cinema (INC) para divulgar as conquistas e as reformas propostas pela revolução socialista. Assim como, ter o interesse de se “fazer um cinema para o povo, sobre o povo e do povo”.
Contando com o apoio técnico da extinta União Soviética, que cedia carros para levar os filmes produzidos nos mais distantes lugares do país, em que jamais a população havia tido contato com o cinema, acompanhamos a empolgação e o fervor revolucionário de Samora Machel em seus comícios, sempre lotados. Podemos conferir a sua constante defesa em afirmar a unidade moçambicana, sem divisões étnicas entre macuas, rongas etc., relembrando o passado de conflitos entre os moçambicanos, o que apenas favorecia o colonizador português.
Percebemos a euforia daqueles que participaram da criação dos filmes, como o escritor Luís Carlos Patraquim. Em uma atmosfera propícia à cooperação, tudo era novo, todos pela construção de um país, e o cinema participava desse nascimento: o nascimento de um país. Porém, com todos os percalços pela falta de estrutura e de pessoal tecnicamente capacitado. Não havia um cinema moçambicano até então e a maior parte da jovem nação era formada por pessoas que não tinham a mínima noção do que era cinema, ou de como seria para produzi-lo.
Para resolver o problema e tendo o apoio de pessoas simpatizantes da causa libertária moçambicana, além de cubanos e do bloco socialista europeu, nomes como os dos cineastas Ruy Guerra e Jean-Luc Godard chegaram a participar do INC, propondo idéias e ministrando cursos.
Entretanto, como era um cinema em formação, as divergências começaram a surgir. Na então comunista Iugoslávia, o poeta LC Patraquim conta a inusitada filmagem de um longa-metragem sobre a guerra colonial em que o roteiro proposto pelos iugoslavos determinava a filmagem de ataques aéreos com helicópteros, e no início do filme uma insólita cena com uma guerrilheira que apareceria nua à frente de combatentes portugueses. Patraquim afirma que precisou revelar que na guerrilha moçambicana nunca houve ataques aéreos, toda ela foi feita por terra, o que não foi aceito pelos roteiristas iugoslavos. Discordâncias à parte, o filme foi feito, mas, segundo o escritor, de uma maneira rasteira e maniqueísta.
As diferenças ideológicas logo começaram a vir à tona, porque a FRELIMO via o cinema, no caso o Kuxa Kanema, como forma de propaganda revolucionária. E nem sempre a teoria e a prática andam juntas, como com a sugestão de Godard, que desejava ministrar cursos de cinema às populações carentes, sendo que estas tivessem liberdade para realizar seus próprios filmes. Um projeto utópico que não foi aceito pelo governo.
Todavia, não foram apenas essas divergências. O mundo estava em um contexto de Guerra Fria. Logo em seguida à independência, a Rodésia e a África do Sul começaram a atacar Moçambique para derrubar o governo socialista. Iniciava uma sangrenta guerra. Veio o embargo econômico, o país começou a passar por dificuldades, pois não encontrava apoio entre a comunidade internacional e a ajuda soviética não era suficiente.
Sendo assim, a produção de filmes sofre uma queda significativa diante dos perigos em filmar pelo país. Chegou-se ao extremo da equipe cinematográfica só conseguir filmar acompanhada de um grande aparato militar. Com isso, os filmes passaram a tratar das mazelas às quais a população moçambicana era submetida. LC Patraquim narra uma passagem deplorável, enquanto as cenas são mostradas, de um ataque sofrido por uma aldeia, com centenas de mortos. Não havia mais espaço para filmar a construção do país, infelizmente.
A chamada “guerra de desestabilização” avançou e dilacerou o país. Em 1986, Moçambique passou a ser considerada a nação mais pobre do mundo, Samora Machel morreu misteriosamente em um acidente de avião, em território sul-africano. O fim de uma etapa na história moçambicana se encerrava. Era o fim do sonho de um país em construção.
Apesar de ter servido como instrumento de propaganda política da FRELIMO, o INC e a série Kuxa Kanema cumpriram um importante papel histórico ao retratar o carisma de Samora Machel e a euforia da construção de um novo país recém-independente. Hoje, o prédio de fundação do INC está em ruínas, por causa de um incêndio. Hoje, não há apenas o cinema, mas há uma televisão moçambicana, mas uma televisão globalizada como é ao redor do mundo, que ignora as manifestações culturais locais. O INC funciona precariamente entre escombros. Os filmes dos primeiros anos da revolução deterioram-se, como a situação do país e a esperança de uma população, que foi do sonho utópico à distopia após tantos anos de guerra e dificuldades.
Kuxa Kanema – o nascimento do cinema é fundamental por seu registro histórico, de uma época que o tempo e a elite dominante insistem em apagar.
Kuxa Kanema – o nascimento do cinema
(Bélgica / França / Portugal, 2003)
Documentário, 52 min.
Direção: Margarida Cardoso
Espelho Atlântico – Mostra de Cinema da África e da Diáspora iniciada ontem, no Caixa Cultural RJ (22 a 27 de abril), brindou o público carioca com a exibição do belíssimo documentário Kuxa Kanema – o nascimento do cinema, que retrata o momento inicial de Moçambique independente a partir de 1975.
O governo moçambicano liderado por Samora Machel, representante máximo do partido FRELIMO que conduziu a guerrilha contra o domínio português, criou o Instituto Nacional de Cinema (INC) para divulgar as conquistas e as reformas propostas pela revolução socialista. Assim como, ter o interesse de se “fazer um cinema para o povo, sobre o povo e do povo”.
Contando com o apoio técnico da extinta União Soviética, que cedia carros para levar os filmes produzidos nos mais distantes lugares do país, em que jamais a população havia tido contato com o cinema, acompanhamos a empolgação e o fervor revolucionário de Samora Machel em seus comícios, sempre lotados. Podemos conferir a sua constante defesa em afirmar a unidade moçambicana, sem divisões étnicas entre macuas, rongas etc., relembrando o passado de conflitos entre os moçambicanos, o que apenas favorecia o colonizador português.
Percebemos a euforia daqueles que participaram da criação dos filmes, como o escritor Luís Carlos Patraquim. Em uma atmosfera propícia à cooperação, tudo era novo, todos pela construção de um país, e o cinema participava desse nascimento: o nascimento de um país. Porém, com todos os percalços pela falta de estrutura e de pessoal tecnicamente capacitado. Não havia um cinema moçambicano até então e a maior parte da jovem nação era formada por pessoas que não tinham a mínima noção do que era cinema, ou de como seria para produzi-lo.
Para resolver o problema e tendo o apoio de pessoas simpatizantes da causa libertária moçambicana, além de cubanos e do bloco socialista europeu, nomes como os dos cineastas Ruy Guerra e Jean-Luc Godard chegaram a participar do INC, propondo idéias e ministrando cursos.
Entretanto, como era um cinema em formação, as divergências começaram a surgir. Na então comunista Iugoslávia, o poeta LC Patraquim conta a inusitada filmagem de um longa-metragem sobre a guerra colonial em que o roteiro proposto pelos iugoslavos determinava a filmagem de ataques aéreos com helicópteros, e no início do filme uma insólita cena com uma guerrilheira que apareceria nua à frente de combatentes portugueses. Patraquim afirma que precisou revelar que na guerrilha moçambicana nunca houve ataques aéreos, toda ela foi feita por terra, o que não foi aceito pelos roteiristas iugoslavos. Discordâncias à parte, o filme foi feito, mas, segundo o escritor, de uma maneira rasteira e maniqueísta.
As diferenças ideológicas logo começaram a vir à tona, porque a FRELIMO via o cinema, no caso o Kuxa Kanema, como forma de propaganda revolucionária. E nem sempre a teoria e a prática andam juntas, como com a sugestão de Godard, que desejava ministrar cursos de cinema às populações carentes, sendo que estas tivessem liberdade para realizar seus próprios filmes. Um projeto utópico que não foi aceito pelo governo.
Todavia, não foram apenas essas divergências. O mundo estava em um contexto de Guerra Fria. Logo em seguida à independência, a Rodésia e a África do Sul começaram a atacar Moçambique para derrubar o governo socialista. Iniciava uma sangrenta guerra. Veio o embargo econômico, o país começou a passar por dificuldades, pois não encontrava apoio entre a comunidade internacional e a ajuda soviética não era suficiente.
Sendo assim, a produção de filmes sofre uma queda significativa diante dos perigos em filmar pelo país. Chegou-se ao extremo da equipe cinematográfica só conseguir filmar acompanhada de um grande aparato militar. Com isso, os filmes passaram a tratar das mazelas às quais a população moçambicana era submetida. LC Patraquim narra uma passagem deplorável, enquanto as cenas são mostradas, de um ataque sofrido por uma aldeia, com centenas de mortos. Não havia mais espaço para filmar a construção do país, infelizmente.
A chamada “guerra de desestabilização” avançou e dilacerou o país. Em 1986, Moçambique passou a ser considerada a nação mais pobre do mundo, Samora Machel morreu misteriosamente em um acidente de avião, em território sul-africano. O fim de uma etapa na história moçambicana se encerrava. Era o fim do sonho de um país em construção.
Apesar de ter servido como instrumento de propaganda política da FRELIMO, o INC e a série Kuxa Kanema cumpriram um importante papel histórico ao retratar o carisma de Samora Machel e a euforia da construção de um novo país recém-independente. Hoje, o prédio de fundação do INC está em ruínas, por causa de um incêndio. Hoje, não há apenas o cinema, mas há uma televisão moçambicana, mas uma televisão globalizada como é ao redor do mundo, que ignora as manifestações culturais locais. O INC funciona precariamente entre escombros. Os filmes dos primeiros anos da revolução deterioram-se, como a situação do país e a esperança de uma população, que foi do sonho utópico à distopia após tantos anos de guerra e dificuldades.
Kuxa Kanema – o nascimento do cinema é fundamental por seu registro histórico, de uma época que o tempo e a elite dominante insistem em apagar.
Ricardo Riso
Kuxa Kanema – o nascimento do cinema
(Bélgica / França / Portugal, 2003)
Documentário, 52 min.
Direção: Margarida Cardoso
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