sexta-feira, 18 de abril de 2008

Émile Zola e Aluísio de Azevedo

A função social da mulher em Naná e O cortiço, uma análise comparativa*

Ricardo Riso

A presente análise comparativa abordará as tensas relações sociais sob o ponto de vista das personagens femininas, com ênfase nas prostitutas, em dois romances do final do século XIX: Naná, de Émile Zola, e O cortiço, de Aluísio Azevedo. Ambos os livros escoram-se nas teorias cientificistas amplamente divulgadas à época, que especulavam sobre o comportamento humano pelo naturalismo e o determinismo, influenciadores das classes sociais a partir do meio em que viviam.

O romance naturalista vem de encontro à estética romântica dominante no século, pois propõe-se a apresentar o real a partir de ideais deterministas, tais como raça e meio. Segundo Alfredo Bosi, “o Realismo se tingirá de naturalismo, no romance e no conto, sempre que fizer personagens e enredo submeterem-se ao destino cego das ‘leis naturais’ que a ciência da época julgava ter codificado”. (BOSI, p. 187)

Isso leva o romance a eliminar o subjetivismo, a mostrar situações típicas e personagens-tipo: “ambos, enquanto síntese do normal e do intelegível, prestam-se docilmente a compor o romance que se deseja imune a tentações da fantasia”. (BOSI, p. 189)

O romance se concentra em situações urbanas, questiona a hipocrisia e a mediocridade que moldam o convívio social, teoriza, pelo determinismo, corrente filosófica preponderante, o destino de seus personagens.

Entretanto, ao exportar tais pensamentos da Europa para a realidade brasileira, nossos intelectuais entram em conflito com os modelos sociais urbanos, aqui encontrados. No caso de Azevedo, os cortiços do Rio de Janeiro metonimizam o país. O escritor nacional procura fugir do modelo português, mas, como percebemos em O cortiço, apesar de Azevedo denunciar a relação explorador-explorado, representada pelo português e pela junção negro-mestiço, deparamo-nos que o único modelo de ascensão social se dá com o personagem João Romão, dono do cortiço.

Romão, para conseguir mudar de posição, acumula capital de todas as maneiras possíveis, conforme aponta Sant’anna: “a cada avanço na escala social e financeira corresponde a um degrau abaixo na degradação moral e humana” (SANT’ANNA, p. 107). Ele mente e explora Bertoleza, rouba materiais, maltrata os inquilinos enquanto expande o cortiço, abre uma venda, torna-se proprietário de uma avenida etc. Antonio Candido complementa que:

“Aluísio escolheu para objeto a acumulação do capital a partir das suas fases mais modestas e primárias, situando-o em relação estreita com a natureza física, já obliterada no mundo europeu urbano. No seu romance o enriquecimento é feito à custa da exploração brutal do trabalho servil, da renda imobiliária arrancada do pobre, da usura e até do roubo puro e simples, constituindo o que se poderia qualificar de primitivismo econômico”. (CANDIDO, p. 113)

Depreendemos que para o português crescer na sociedade não deve se misturar com o meio em que vive, apesar de viver nele, o que é constatado com o outro português, inquilino do cortiço, Jerônimo. Este, quando chega é um exemplo de trabalhador, austero e bem casado. Contudo, envolve-se com o meio, passa a gostar da música brasileira, é seduzido por Rita Baiana, começa a tomar vários banhos por dia, relaxa com o trabalho e, assim, inicia sua derrocada como demonstra o narrador ao “estabelecer uma competição entre a sensibilidade européia e a brasileira, descrevendo como o europeu sucumbe quando abre seus sentidos ao sol dos trópicos” (SANT’ANNA, p. 108).

Podemos constatar que há, em Azevedo, certo nacionalismo diante da exploração do português. Há incômodo perante a postura do estrangeiro, porém o autor não apresenta alternativas para o brasileiro, submetido a uma raça inferior e ao meio. Segundo Candido:

A visão dos intelectuais brasileiros do final do século XIX era bastante ambígua, pois não encontrando nas obras da civilização apoio suficiente para justificar o orgulho nacional, eles recuavam para a natureza como segunda linha, entrincheirando-se numa posição que era também capitulação, ao ser um modo colonial e pitoresco de ver o país. (CANDIDO, p. 116)

O determinismo do meio levou Candido a apontar três possibilidades de atuação para os personagens de O cortiço: “1. português que chega e vence o meio; 2. português que chega e é vencido pelo meio; 3. brasileiro explorado e adaptado ao meio”. (CANDIDO, p. 116)

Aluísio Azevedo inspira-se nos romances de Émile Zola, porém, neste, os conflitos entre os personagens ampliam-se. Por ser oriundo de um país colonizador europeu, a opressão econômica não é tão enfatizada por Zola, mas, sim, as hipocrisias da sociedade urbana parisiense e as sutilezas que regem o convívio. Contudo, ainda vemos o “senhorio cobrando aluguéis nos momentos difíceis” (CANDIDO, p. 113), ou desalojando aqueles que não o pagam, como a personagem Satin: “havia seis meses que o senhorio ameaçava pô-la fora”. (ZOLA, p. 219)

A função da mulher

A mulher no romance naturalista é bem diferente da representada pelos românticos. De acordo com Sant’anna, “a mulher é descrita principalmente como fêmea, que se acasala com o macho por interesses físicos e materiais” (SANT’ANNA, p. 109), ou seja, suprime-se a mulher idealizada do Romantismo.

Sant’anna, em sua análise sobre O cortiço, que podemos estender para Naná, apresenta três tipos de mulher:

“a) a mulher-objeto que é trocada como nas sociedades primitivas; b) a mulher sujeito-objeto que aceita as regras do sistema dando tanto quanto recebe; c) mulher-sujeito que regula os regimes de troca capaz de impor condições e manobrar o macho em benefício próprio.” (SANT’ANNA, p. 109)

No primeiro caso, podemos citar a personagem Bertoleza, de O cortiço. Mulher que se une a João Romão no princípio da construção do cortiço, é a fêmea explorada pelo seu corpo e pelo seu trabalho. Mais adiante, com a ascensão social de Romão, é desprezada sexualmente por ele por ser de uma raça diferente (inferior) e tem o seu trabalho aumentado. Já em Naná, a mulher-objeto está presente na relação de Bordenave com as mulheres do seu teatro, que são tratadas como animais por ele, podendo substituí-las a qualquer momento. É o que acontece quando Naná toma o posto de atriz principal de Rose Mignon, e depois quando ela própria é trocada por Violine. Inferimos que as relações nos casos apresentados são circunstanciais, pois as mulheres somente atuam enquanto possuem alguma utilidade.

Para exemplificar a mulher sujeito-objeto podemos citar o casal Mignon, em Naná, e o casal Estela/Miranda, em O cortiço. Os dois homens da relação são dependentes financeiros das mulheres, com isso, ambos aceitam suas infidelidades e, assim, não perdem a posição social. O sistema de trocas é intenso, M. Mingon oferece a esposa como no exemplos a seguir:

“uma só preocupação lhe era constante, aumentar os bens administrados com uma austeridade de intendente fiel o dinheiro que Rose ganhava no teatro e fora dele. Quando ele a desposara, então regente de orquestra no café-concerto em que ela cantava, amavam-se apaixonadamente. Hoje, eram bons amigos. Estava acertado entre eles: ela trabalhava o mais que podia, com todo o seu talento e sua beleza; ele deixara o violino para melhor valer pelos êxitos da artista e da mulher. Não se teria encontrado um lar mais burguês nem mais unido...” (ZOLA, p. 93)

“Sabe do que ele é capaz? Espera repetir o que fez com o pequeno Jonquier... Lembra-se de Jonquier, o que estava com Rose e que tinha um xodó especial por Laure, a alta?... Mignon conseguiu Laure para Jonquier, depois levou-a de braço dado à casa de Rose, como um marido a quem acabam de permitir uma travessura...” (ZOLA, p. 97)

“D. Estela era uma mulherzinha levada da breca: achava-se casada havia treze anos e durante esse tempo dera ao marido toda a sorte de desgostos. Ainda antes de terminar o segundo ano de matrimônio, o Miranda pilhou-a em flagrante delito de adultério. (...) mas a sua casa comercial garantia-se com o dote que ela trouxera, (...) Prezava, acima de tudo, a sua posição social e tremia só com a idéia de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem coragem para recomeçar a vida, depois de se haver habituado a umas tantas regalias e afeito à hombridade de português rico que já não tem pátria na Europa.” (AZEVEDO, p. 19)

Como mulher-sujeito, destacamos as que se impõem em relação ao poder masculino, subvertendo os padrões sociais da época, algo que as prostitutas conseguem atingir através do sexo, o conseqüente desprezo pelos homens e seu dinheiro. Léonie é o tipo de mulher que sai do cortiço e torna-se prostituta da alta sociedade. Embora ainda seja um tipo marginalizado, por ter alcançado uma camada social elevada é admirada pelos moradores do cortiço. Ela conduzirá Pombinha ao mesmo destino. Sant’anna afirma que: “Repete-se em, termos onomásticos o determinismo: a pombinha vai ser devorada pela leoa através da iniciação homossexual”. (SANT’ANNA, p. 110)

Com o meio determinando o destino das personagens, à frente veremos, que Pombinha fará o mesmo com a filha do casal Jerônimo/Piedade, Senhorinha, que ficou abandonada após a saída do pai e a mãe ter se tornado alcoólatra: “A cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria.” (AZEVEDO, p. 201) Influenciada pelo estilo de Léonie, Pombinha desinteressa-se pelo marido, pela vida pacata e discreta que leva:

“a princípio, para conservar‑se mulher honesta, tentou perdoar‑lhe a falta de espírito, os gostos rasos e a sua risonha e fatigante palermice de homem sem ideal; ouviu‑lhe, resignada, as confidências banais nas horas intimas do matrimônio; atendeu‑o nas suas exigências mesquinhas de ciumento que chora; (...) não lhe falou nunca em coisas que cheirassem a luxo, a arte, a estética, a originalidade; escondeu a sua mal‑educada e natural intuição pelo que é grande, ou belo, ou arrojado, e fingiu ligar interesse ao que ele fazia, ao que ele dizia, ao que ele ganhava, ao que ele pensava e ao que ele conseguia com paciência na sua vida estreita de negociante rotineiro; mas, de repente, zás! faltou‑lhe o equilíbrio e a mísera escorregou, caindo nos braços de um boêmio de talento, libertino e poeta, jogador e capoeira. (...) daí a meses, Pombinha desapareceu da casa da mãe. (...) Só a descobriu semanas depois; estava morando num hotel com Léonie. A serpente vencia afinal: Pombinha foi, pelo seu próprio pé, atraída, meter‑se‑lhe na boca.
Agora, as duas cocotes, amigas inseparáveis, terríveis naquela inquebrantável solidariedade, que fazia delas uma só cobra de duas cabeças, dominavam o alto e o baixo Rio de Janeiro. Eram vistas por toda a parte onde houvesse prazer; a tarde, antes do jantar, atravessavam o Catete em carro descoberto, com a Juju ao lado; à noite, no teatro, em um camarote de boca chamavam sobre si os velhos conselheiros desfibrados pela política e ávidos de sensações extremas, ou arrastavam para os gabinetes particulares dos hotéis os sensuais e gordos fazendeiros de café, que vinham à corte esbodegar o farto produto das safras do ano, trabalhadas pelos seus escravos. Por cima delas duas passara uma geração inteira de devassos. Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera‑se tão perita no ofício como a outra; a sua infeliz inteligência, nascida e criada no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida; seus lábios não tocavam em ninguém sem tirar sangue; sabia beber, gota a gota, pela boca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a vitima pudesse dar de si.” (AZEVEDO, pp. 199-201)

Em Naná, a relação mulher-sujeito é mais complexa. Naná despreza os seus parceiros, procura manter a liberdade de ter quem quiser graças a sua beleza estonteante. Com os homens que cedem aos seus caprichos, querendo uma relação estável, Naná humilha-os. Deseja-os submissos, exige presentes e posses caras; também fidelidade, mas não admite que a controlem, como aconteceu com banqueiro Steiner e o conde Muffat. Os dois, em momentos diferentes, compram casas para Naná, porém só podem freqüentá-las em horários determinados e devem aceitar que Naná receba seus “amigos”, e quando lá estão são tratados com desdém: “Quanto a Steiner, dormira no divã do salão”. (ZOLA, p. 166) Enganava-os, como, a seguir, com Muffat:

“Por que lhe tinha mentido mais uma vez? De manhã, ela lhe escrevera que não se incomodasse à noite, pretextando que Louisse estava doente, e que passaria a noite em casa de sua tia, a velá-lo. Mas ele, desconfiado, apresentara-se em casa dela e soubera pela porteira que a senhora acabava justamente de partir para o seu teatro. (...)”(ZOLA, pp. 179-180)


Sua luxúria leva os homens à falência, cegos pela sedução só percebem-na quando já é tarde. No seguinte trecho, Muffat está reflexivo ao deparar-se com a realidade:

“O jornal tinha caído-lhe das mãos. Naquele minuto de visão nítida, sentia desprezo por si próprio. Era aquilo: em três meses ela corrompera-lhe a vida, sentia-se gasto até a medula por porcarias de que nunca suspeitara. Tudo ia apodrecer nele, dali em diante. Teve, por um instante, consciência dos acidentes do mal, viu a desorganização levada por aquele fermento, ele envenenado, a sua família destruída, um canto de sociedade que estalava e derruía. E, não podendo desviar os olhos, olhava-a fixamente, tentava encher-se de nojo pela sua nudez.” (ZOLA, p. 191)

Determinismo e hipocrisia social

Apreendemos que Zola, de certa maneira, escorando-se no cientificismo da época, culpa as mulheres pelos desvios de conduta masculinos. Porém, para ele, a questão é mais complexa. O autor vasculha as sutilezas do comportamento social parisiense. Embora as prostitutas venham de uma classe social inferior, elas transitam pela alta sociedade, como companheiras dignas dos homens, para depois serem desmascaradas. Walter Benjamin esclarece a questão, lembra que “representar os prazeres do adultério sem provas é um dos temas populares preferidos entre os dramaturgos”, do século XIX, e cita as pensões retratadas por Ferdinand von Gall em seu livro “Paris e seus salões”:

“Nele se fica sabendo que, em inúmeras pensões, era do regulamento que, à hora do jantar, do qual podiam participar pessoas estranhas, desde que previamente anunciadas, estivessem presentes algumas mundanas, cuja tarefa era parecerem moças de boa família, e que, de fato, não estavam dispostas a deixar cair a máscara de imediato; antes, envolviam-se num invólucro de decoro e cordialidade, que parecia não querer acabar nunca, e que, para ser retirado, dependia de um farto jogo de intrigas, que, afinal de contas, aumentava seu preço.” (BENJAMIN, p. 241)

Apesar das duas classes freqüentarem o mesmo ambiente, Zola vale-se do determinismo biológico para mostrar a distinção entre os seres. Em razão disso, as mulheres são associadas à sujeira, ao desleixo, à falta de educação, como na passagem em que descreve o quarto de Satin:

“em menos de treze meses, ela quebrara os móveis, afundara as cadeiras, numa tal gana de sujeira e desordem que a casa parecia habitada por uma matilha de gatas doidas. Nas manhãs em que ela própria, enojada, queria limpar, ficavam-lhe nas mãos paus de cadeiras ou farrapos de tapeçaria, à força de brigar ali dentro com a imundice. Naqueles dias, ficava tudo ainda mais sujo, não se podendo entrar ali, porque havia coisas quebradas atravancando as portas.” (ZOLA, p. 219)

Seguindo o determinismo biológico, Zola apresenta, em várias passagens, além das comparações com animais, as características físicas que comprovam a condição inferior:

“duas garotas, muito alegres, mostravam uma à outra os seus sinais” (ZOLA, p. 141)
“Dobrara o pescoço, olhando com atenção ao espelho um sinalzinho trigueiro que tinha por cima da anca direita.” (ZOLA, p. 191)
“Naná tinha uma penugem, um musgozinho de pelinhos ruivos que fazia de seu corpo um veludo; mas nas suas ancas e nas suas coxas de égua, nas intumescências cavadas em dobras profundas, que davam ao sexo o véu perturbador da sua sombra, havia qualquer coisa de animal. Era o animal de ouro, inconsciente como uma força, e cujo simples cheiro estragava o mundo.” (ZOLA, p. 192)

Entretanto, tais apontamentos deterministas nunca foram corretos, como seria tão questionado no decorrer do século XX. A narrativa de Zola apresenta-nos a linha tênue das relações sociais, uma curiosa passagem é transcrita a seguir:

“Mas, à medida que a noite se adiantava, se ainda não tinham feito uma ou duas viagens à Rue la Rochefoucauld, voltavam à prostituição barata, a sua caça tornava-se mais difícil. Havia ali, junto das árvores, ao longo dos bulevares ensombrados que se despejavam transações ferozes, palavras obscenas e pancadas, enquanto famílias honestas, pai, mãe e filhas, habituadas àqueles encontros, passavam tranqüilamente, sem apressarem o passo.” (ZOLA, p. 235)

Em uma séria discussão com o Conde Muffat, Naná ironiza as mulheres da alta sociedade, incluindo todas em um mesmo patamar:

“– Que não as conheço! Mas elas nem decentes são, as tuas mulheres honestas! Não, nem limpas são! Desafio-te a encontrares uma que ouse mostrar-se como eu! Na verdade, dás-me vontade rir com as tuas mulheres honestas! (...) Eu, se fosse homem, é que havia de fazer pouco das mulheres! As mulheres, tu vês, da alta como da baixa, são todas as mesmas coisas: todas querem divertir-se (...) (ZOLA, p. 196-197)

O vínculo com a sujeira tão declarado entre as prostitutas é observado por elas. Satin critica os ideais deterministas e a dissimulação dos homens, surpreendendo Naná com suas colocações e jogando-lhe a dúvida:

“Nas noites úmida, quando Paris molhada exalava um cheiro enjoativo a grande alcova pouco limpa, ela sabia que esse tempo mole, esse odor de recantos suspeitos, enlanguescia sensualmente os homens. (...) É verdade que ela tinha um certo medo, porque os mais finos eram os mais porcos. Todo o verniz estourava e a besta aparecia, exigente nos seus gostos monstruosos, requintando a sua perversão. Por isso aquela meretriz da Satin faltava ao respeito, rindo às gargalhadas, diante da dignidade das pessoas que andavam de carruagem, dizendo que os seus cocheiros eram mais amáveis, porque respeitavam as mulheres e não as mortificavam com idéias de outro mundo. A queda das pessoas finas na crápula do vício surpreendia Naná, que conservava ainda preconceitos de que Satin a embaraçava. Então, como ela dizia quando conversava a sério, já não havia virtude? De alto a baixo, tudo rolava? (ZOLA, p. 236)

As contradições das teorias cientificistas, mais precisamente o realismo/naturalismo comum entre os intelectuais do período, são questionadas por Naná em forma de metalinguagem. Ela discorda da forma que uma personagem é tratada em um livro que acabara de ler, e notamos a ironia com que o autor trata os escritores românticos em relação aos novos tempos:

“Tinha lido durante o dia um romance que era muito falado, a história de uma prostituta; e revoltava-se, dizia que tudo aquilo era falso, denunciando uma repugnância indignada por aquela literatura imunda, cuja pretensão era descrever a realidade. Como se todas as coisas se pudessem mostrar! Como se um romance não devesse ser escrito para se passar uma hora agradável! Em matéria de livros e de dramas, Naná tinha opiniões definitivas: queria obras ternas e nobres, coisas que a fizessem sonhar e engrandecer a alma. Depois, tendo a conversa caído na perturbação que agitava Paris, nos artigos incendiários da imprensa, nos começos de motim a seguir ao chamamento às armas lançado todas as noites nas reuniões públicas, enfureceu-se contra os republicanos.” (ZOLA, p. 293)

Conclusão

Apreendemos que Aluísio Azevedo utiliza idéias importadas para tentar compreender a sociedade brasileira em construção através do cortiço (meio) e do negro e mestiço brasileiros (raça), inclusive inspirando-se em um autor francês, Émile Zola. Tal preocupação em representar um problema nacional, torna seu romance específico a nossa realidade, porém diminui qualquer impacto universal. Contudo, O cortiço, retrata, de certa maneira, as inquietações da intelectualidade brasileira que ainda se espelhava em soluções européias para explicar nosso país. Posição que somente avançaria com Lima Barreto e os modernistas da Semana de 1922.

Émile Zola, liberto da necessidade de representar o país, conseguiu fazer um romance de alcance universal, explorando as contradições dos relacionamentos sociais parisienses, todavia, mostrando a mulher como um ser inferior e animal.

Nos dois romances, a mulher é apresentada como ser submisso às vontades masculinas, uma fêmea. Somente as prostitutas ganham relevância, embora mantenham a marginalidade, e fazem do desprezo aos homens o escudo para alcançar alguma liberdade e controle sobre si. Algumas conseguem mudar de classe social quando casam-se por interesse com um homem velho e rico. A partir daí, contam com a hipocrisia da sociedade para se tornarem “damas” ou “madames”. Outra alternativa de liberdade é dada por aquelas que não fazem da prostituição uma profissão; mantendo-se casadas, assumem infidelidades constantes, protegendo-se nos dotes ou, no medo dos maridos em ter a vida arruinada por um escândalo e descerem na escala social.

*Análise feita para a disciplina Literatura Comparada - UNESA - abril/2008.

BIBLIOGRAFIA:
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Ática, 2004.
BENJAMIN, Walter. Jogo e prostituição. In: Charles Baudelaire – um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1991.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1975.
CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In: Novos estudos Cebrap nº 30, julho/1991.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Análise estrutural de romances brasileiros. Petrópolis: Vozes, 1984.

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