Dina Salústio é uma conceituada voz da literatura feminina de Cabo Verde. Nascida em 1941, na Ilha de Santo Antão, em seus textos os dramas, anseios, desejos, medos da mulher cabo-verdiana ocupam posição de destaque. Entretanto, na escrita da autora os sentimentos femininos tornam-se universais, não se reduzem apenas à mulher de sua pátria, mas expandem-se a todas as mulheres do mundo.
Publicou, apenas para citar alguns, textos em poesia (Mirabilis – veias ao sol), prosa (A louca do serrano), contos (Mornas eram as noites).
Tabus em saldo
Se tivesse nascido macho era um rapaz, mas como nasceu fêmea é mulher. As fêmeas são sempre mulheres. Mas mesmo mulheres, elas são de todos nós. Para serem protegidas. No entanto, porque já têm tudo para serem motivo de tudo, há outros de nós que as desejam para o folclore da fantasia e para o encobrimento ridículo e camuflado da irracionalidade do estar.
De repente – ou não terá sido assim tão de repente? – vamos aos esconderijos privados desta sociedade que dolorosamente ou não, recorre a proibições, enfatiza princípios, agrupa-os em tabus para a defesa mínima de um certo decoro, ou, dando uma de evoluídas, parcelas outras há, que embandeiradas na necessidade de se cortar de vez com a hipocrisia social, em nome do progresso e outros mais, arranham a ferida onde ela dói mais: as crianças e as adolescentes.
Não satisfaz mais a orquestrada exploração da candura das meninas européias, a sedução das orientais, a instrumentalização das americanas do sul e do norte. Não. É preciso vir para mais perto. Temos uma juventude tão bonita que há que se retirar os dividendos, transformando-as em objectos de gozo mais sofisticado, em produtos rentáveis. E por isso vamos, outros de nós, aos liceus, às escolas para as envolver em collants e transparências e expô-las em fotos aos instintos curiosos de outros.
O negócio rende. Cada espiadela vinte escudos, diz-se. Dois rebuçados ao fim e ao cabo. Barato como quase tudo em Cabo Verde. Barato como nós, a nossa autenticidade, as ambições, os sentires, o orgulho e a existência. Dois rebuçados: o custo de uma espiadela ao clandestino filmado das nossas crianças fêmeas.
A gargalhada forte de um grupo de meninas perturba-me de alegria, mas imediatamente olho para os lados com medo que algum fotógrafo, caçador de corpos, esteja por perto para um primeiro contacto.
Desisti de querer ver mais. É o que a maioria faz, por cobardia, vergonha e secretos desejos que as coisas ruins deixem de acontecer.
Para depois ficam a luta, a briga e a denúncia. E as consciências tranqüilizam-se com a promessa.
... À noite, na televisão, passou um filme sobre prostituição infantil, em várias nuances. Eram crianças americanas. Podiam ser caboverdianas.
Era o primeiro dia do Ano Novo de 1992. A primeira noite.
SALÚSTIO, Dina. Tabus em saldo. In: Mornas eram as noites. Colecção Lusófona. Lisboa: Instituto Camões, 1999. pp. 32-33.
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