segunda-feira, 9 de julho de 2007

Ana Cristina Cesar, a palavra viva
Ana Cristina César graduou-se em Letras PUC/RJ entre os anos 1971/1975. No ano seguinte inicia atividade profissional com críticas,traduções e poesia. Liderou questões que envolviam o movimento estudantil, inexistente naqueles anos devido à ditadura.
Este texto foi elaborado para uma palestra na Universidade Estácio de Sá.


Navarro,
Te deixo meus textos póstumos. Só te peço isto: não
permitas que digam que são produtos de uma mente
doentia! Posso tolerar tudo menos esse obscurantismo
biografílico. Ratazonas esses psicólogos da literatura
– roem o que encontram com o fio e o ranço de suas
analogias baratas. Já basta o que fizeram ao Pessoa.
É preciso mais uma vez uma nova geração que saiba
escutar o palrar dos signos.


Ana Cristina Cesar, ou Ana C., como assinava seus textos, nasceu em 1952 e decidiu dar um basta a sua vida em outubro de 1983, menos de um ano após o lançamento de A teus pés (dezembro/1982), seu único livro publicado em vida e que reunia os três anteriores que havia publicado independentemente, a saber: Cenas de Abril (junho-julho/1979), Correspondência Completa (agosto/1979) e Luvas de Pelica (novembro/1980).

Diante do exposto, como evitar leituras simplificadas da obra de Ana C.? Seguindo sua sugestão, como fugir do tal obscurantismo biográfílico? Foi este o desafio a que me propus. Concentrei-me no poema enquanto poema, junção de palavras, de sensações e efeitos, apesar de seu trabalho literário ser calcado em diários e cartas que tendem ao tom confessional.

Bom, a própria Ana C. nos apresenta algumas pistas para entendermos sua criação literária. Em seus textos críticos pensou literatura, pensou poesia, fez crítica literária, estudou tradução, e assim, podemos perceber que tudo isso participava intensamente de sua produção literária. Nos ensaios e artigos confrontamo-nos com uma teórica consistente, que levanta questões para compreensão de seus próprios textos.

Não devemos dispensar a leitura da produção crítica da autora, pois através dessa produção esclareceremos a leitura de seus poemas, que a princípio, nos parecem estranhos, difíceis, herméticos etc. o que poderia nos levar a uma leitura surrealista ou simbolista, a procurar significados ocultos por entre palavras e linhas.

Diários, cartas, tom de confidência e temas íntimos são características que induzem a leitura de sua literatura em busca de um espelho da vida da autora. E Ana C. adorava brincar propositadamente com esse desejo do leitor, por isso insistia em uma escrita que parecia esconder segredos íntimos de mulher.

Os diários, que compõem todo o livro Luvas de Pelica e parte de Cenas de Abril, não são seus, mas diários inventados. Ela dizia: “Eu acho que exatamente é esse tipo... essa armadilha que estou propondo. Existem muitos autores que publicam seus diários mesmo, autênticos. Aqui não é um diário mesmo, de verdade, não é meu diário. Aqui é fingido, inventado, certo? Não são realmente fatos da minha vida. É uma construção. (...) Se você vai ler esse diário fingido, você não encontra intimidade aí.” Ainda diz: “(...) intimidade... não é comunicável literariamente. A subjetividade, o íntimo, o que a gente chama de subjetivo não se coloca na literatura.”

Assim, ficcionando diários e cartas, ela brinca com o obscurantismo biografílico.

Para Ana C., ainda que o poeta parta de uma emoção vivida, um acontecimento particular para escrever, esta sua intimidade só é trabalhada como material bruto, pois ao produzir o texto literário, não há como ser fiel ao sentimento inicial, ainda que assim se desejasse. Sendo assim, o escritor deve “morrer”, enquanto sujeito fixo e fechado em suas crenças e obsessões pessoais, e se abrir ao texto: “Em todo o texto, o autor morre, o autor dança, e isso é que dá literatura.”, falava Ana C..

Aqui, Ana C. aproxima-se de pensadores contemporâneos e podemos traçar um paralelo com a idéia de morte do autor, de que a literatura não é o lugar da afirmação, mas antes da desconstrução do sujeito. Roland Barthes, em A morte do autor: a escrita como a destruição de toda voz, de toda a origem e a constituição de um espaço neutro da linguagem; a escrita começa com a morte do autor. Nesta concepção da literatura, não se trata mais de um sujeito que se afirma no texto, mas de um sujeito que se desfaz para dar voz à própria fala.

Trata-se de fabricar o real e não de responder a ele. Não há um real falsificado no poema, mas um real fabricado no poema. O texto como fábrica de um real; assim era o poema e a literatura para ela. O texto literário é construção, construção da realidade, constitui em si uma realidade, um real inédito, um universo próprio. “O poeta pode representar, fingir descaradamente; não tem mais um compromisso com uma Verdade, não se propõe a simbolizar um inefável e preexistente sentir ou existir.” (pg. 164). O texto assume-se como criador: “o poema é uma produção, um modo de produzir significação mediante o fingimento poético, e não uma nobre tradução do indizível.” (Crítica e Tradução, p. 164)

Nesse sentido, em Ana C., a palavra é viva, a palavra cria realidades. O poema de Ana C. deve ser visto como um ser com vida própria, que visa interferir sensorialmente no mundo, nas pessoas, nos corpos, como qualquer outro objeto real. Sendo assim, a palavra é libertária, o texto possui liberdade, a liberdade de poder dizer e inventar tudo, criar a realidade que se quiser, porque o real do texto é outro, espaço livre em que tudo pode existir. Na realidade que a escrita constrói, o poema pode nos ferir como uma faca:

“olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas”
(A teus pés. Cenas de Abril. P. 89.)

Aqui temos o corpo do poema e o corpo que sente, uma mistura de corpos, de reais: o real do poema e o real da gente. O corpo do poema surge como provocador de sensações no corpo de quem lê, como causar um filete de sangue nas gengivas. O poema cria esse real que é feito de palavras, uma realidade própria à linguagem que atua na realidade das pessoas.

Em A teus pés, ela radicaliza, fragmenta mais a escrita, os textos são aparentemente desconexos, com versos que parecem não se encaixar, mas ainda mantém a cara de diário, de correspondências, e podemos continuar com a impressão de que há segredos escondidos que aguçam a curiosidade. Para ela, os vazios, espaços em branco seriam o que ela define como “não-dito” do texto literário, algo que difere de “entrelinha”. Ela diz: “A entrelinha quer dizer: tem aqui escrito uma coisa, tem aqui escrito outra, e o autor está insinuando uma terceira. Não tem insinuação nenhuma, não. (...) Eu acho que, no meu texto e acho que em poesia, em geral, não existe entrelinha. (...) Existe a linha mesmo, o verso mesmo. O que é uma entrelinha? Você está buscando o quê? O que não está ali?” (Crítica e Tradução, pp.262-263)

Como vemos, a poesia de Ana C. não lida com simbologia alguma, os elementos não estão no “lugar de” ou representando algo. Em um debate público ela foi questionada sobre o que quis dizer com “pato” em Luvas de Pelica, sua resposta: “Pato, por acaso, é um significante que puxa muitos outros (...) Quanto mais puxar melhor (...) Não vou dizer nunca para você o que, para mim, o símbolo do pato significa...”.

Não busquem “o que eu quis dizer”, por exemplo em “contramão”, no poema “Mocidade Independente”: “(...) Voei para cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma graça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta contramão”. (A teus pés. p. 44)

Ana C. via o ato da leitura no que chama de “puxar significante”, ou seja, ir fazendo associações mais diversas e inesperadas a cada vez: “Ler é meio puxar fios, e não decifrar.” (Crítica e Tradução, p. 264). Encarar as palavras como significantes nômades, que mudam a cada leitura, significados múltiplos.

Assim, Ana C. acredita no não-dito da literatura, um não-dito da própria realidade textual. A entrelinha remete a uma insinuação escondida, já o não-dito é aquele que pertence ao próprio texto, e não remete a algum objeto externo originário. Seria um não-dito da liberdade: os espaços em branco, o silêncio em torno das palavras, que relacionam infinitos “fios”, que cada leitor puxará e abrirão imprevisíveis associações.

Ana C. dizia: “Você pode ter lido um ou dois [poetas] e já sacar o que é poesia: que a poesia é um tipo de loucura qualquer. É uma linguagem que te pira um pouco, que meio te tira do eixo.” (Crítica e Tradução. p. 270) Esta aí a poesia e sua força, Esta aí a chance de nos desvencilharmos, quem sabe, de uma concepção limitada da poesia como representação.

Para sorte nossa, Ana C. foi uma promessa que se cumpriu suficientemente: por ter sido precoce foi bastante, talvez intuindo o pouco tempo que teria para registrar o esplendor da sua inteligência e da sua vocação.
Armando Freitas Filho



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Textos
“Escrever cartas é mais imperioso do que se pensa. Na prática da correspondência pessoal, supostamente tudo é muito simples. Não há um narrador fictício, nem lugar para fingimentos literários, nem para o domínio imperioso das palavras. Diante do papel fino da carta, seríamos nós mesmos, com toda a possível sinceridade verbal: o eu da carta corresponderia, por princípio, ao eu ‘verdadeiro’, à espera de correspondente réplica. No entanto, quem se debruçar com mais atenção sobre essa prática perceberá suas tortuosidades. A limpidez da sinceridade nos engana, como engana a superfície tranqüila do eu.”
(César, Ana Cristina. O poeta é um fingidor. Jornal do Brasil, 1977. In: Crítica e Tradução.)


“A relação entre professor e aluno assume muitas vezes um caráter de sedução: o aluno copia a matéria sem dizer palavra, embasbaca-se com o brilhantismo do professor, aplica os seus modelos e injeições ao texto literário. O bom professor passa a ser aquele que ‘tenta’ eroticamente sua turma, e que reina sobre ela como um sultão sobre o seu harém.
Por outro lado, o aprendizado da teoria literária pressupõe uma competência cultural e lingüística que o sistema educacional como um todo não fornece; e a instância oficialmente incumbida de transmitir os instrumentos para que se pense a literatura não sabe ou não se julga obrigada a transmiti-los metodicamente a alunos cada vez mais despreparados. Daí se estabelece uma outra dimensão na relação docente, que é o terrorismo, o medo da onipotência intelectual do professor. Essa sujeição porém não é simplesmente intelectual mas está inscrita no próprio corpo dos alunos e dos professores e se expressa na sua postura na dentro de sala de aula e diante do próprio trabalho: na ocupação física do espaço escolar, na submissão a um modelo de comportamento ou a uma teoria, na afirmação de uma determinada teoria como a Teoria.”
(César, Ana Cristina. Os professores contra a parede. Jornal Opinião, 12/12/1975.
In: Crítica e tradução. Pp. 147-148)




Primeira lição
Os gêneros de poesia são: lírico, satírico, didático, épico, ligeiro.
O gênero lírico compreende o lirismo.
Lirismo é a tradução de um sentimento subjetivo, sincero e pessoal.
É a linguagem do coração, do amor.
O lirismo é assim denominado porque em outros tempos os versos sentimentais eram declamados aos sons da lira.
O lirismo pode ser:
a) Elegíaco, quando trata de assuntos tristes, quase sempre a morte.
b) Bucólico, quando versa sobre assuntos campestres.
c) Erótico, quando versa sobre o amor.
O lirismo elegíaco compreende a elegia, a nênia, a endecha, o epitáfio e o epicédio.
Elegia é uma poesia que trata de assuntos tristes.
Nênia é uma poesia em homenagem a uma pessoa morta.
Era declamada junto à fogueira onde o cadáver era incinerado.
Endecha é uma poesia que revela as dores do coração.
Epitáfio é um verso gravado em pedras tumulares.
Epicédio é uma poesia onde o poeta relata a vida de uma pessoa morta.

Nestas circunstâncias o beija-flor vem sempre aos milhares
Este é o quarto Augusto. Avisou que vinha. Lavei os sovacos e os pezinhos. Preparei o chá. Caso ele me cheirasse... Ai que enjôo me dá o açúcar do desejo.

Meia-noite, 16 de junho
Não volto às letras, que doem como uma catástrofe. Não escrevo mais. Não milito mais. Estou no meio da cena, entre quem adoro e quem me adora. Daqui do meio sinto cara afogueada, mão gelada, ardor dentro do gogó. A matilha de Londres caça minha maldade pueril, cândida sedução que dá e toma e toma e então exige respeito, madame javali. Não suporto perfumes. Vasculho com o nariz o terno dele. Ar de Mia Farrow, translúcida. O horror dos perfumes, dos ciúmes e do sapato que era gêmea perfeita do ciúme negro brilhando no gogó. As noivas que preparei, amadas, brancas. Filhas do horror da noite, estalando de novas, tontas de buquês. Tão triste quando extermina, doce, insone, meu amor.

Anônimo
Sou linda; gostosa; quando no cinema você roça o ombro em mim aquece, escorre, já não sei mais quem desejo, que me assa viva, comendo coalhada ou atenta ao buço deles, que ternura inspira aquele gordo aqui, aquele outro ali, no cinema é escuro e a tela não importa, só o lado, o quente lateral, o mínimo pavio. A portadora deste sabe onde me encontro até de olhos fechados; falo pouco; encontre; esquina de Concentração com Difusão, lado esquerdo de quem vem, jornal na mão, discreta.

Vacilo da oração
Precisaria trabalhar – afundar –
como você – saudades loucas –
nesta arte – ininterrupta –
de pintar –

A poesia não – telegráfica – ocasional –
me deixa sola – solta –
à mercê do impossível –
– do real.



Quando entre nós só havia
uma certa carta
a correspondência
completa
o trem os trilhos
a janela aberta
uma certa paisagem
sem pedras ou
sobressaltos
meu salto alto
em equilíbrio
o copo d’água
a espera do café



Bibliografia:
Barthes, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. Edições 70. Lisboa, 1987.
Cesar, Ana Cristina. A teus pés. Editora Ática.
Cesar, Ana Cristina. Crítica e tradução. Editora Ática. Rio de Janeiro, 1999.
De Hollanda, Heloísa Buarque. Impressões de viagem. Editora Brasiliense.
Revista José, agosto/1976. Pp 3-9. Debate: Poesia Hoje com Luiz Costa Lima, Sebastião Uchôa, Jorge Wanderlay, Heloísa B. de Hollanda, Ana Cristina Cesar, Geraldo Carneiro e Eudoro Augusto.

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