Mito Hesperitano, Pasargadismo, Insularidade: momentos de construção da poesia cabo-verdiana no século XX
Ainda na comemoração do 32º aniversário de Cabo Verde independente, tentei elaborar um texto apresentando alguns aspectos da poesia cabo-verdiana que tanto interesse e espanto me causaram. Vamos a eles.
Quando estudei a disciplina de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, ministrada pela Profa. Norma Lima, algumas peculiaridades no percurso da poesia cabo-verdiana instigaram-me a curiosidade, tais como a maneira como foi tratada a colonização pelos portugueses, diferenciada das outras quatro colônias (Angola, Guiné, Moçambique e São Tomé e Príncipe), pois as ilhas não eram habitadas o que fez os navegadores das naus levarem escravos de Guiné para lá; a mestiçagem populacional; o bilingüismo com intensa presença do crioulo no falar local; as difíceis condições climáticas; o aspetcto geográfico reforçado pela insularidade do arquipélago causando um sentimento contraditório nos homens de sua terra em relação ao mar, em querer ficar, mas ter que partir, ou seja, a evasão e a posterior anti-evasão. Foram basicamente estes pontos que auxiliaram na reivindicação de uma identidade independente e a maneira como eram tratados pelos poetas que fizeram soprar o vento desbravador em mim.
No início do século XX, os poetas tentam criar uma história, um passado para o arquipélago diferenciando-o do português colonizador, o pai, e que valorizasse a mãe-terra crioula, a mátria. Entretanto, os escritores ainda recorrem a referências européias na busca de um passado heróico para sua pátria e, assim, chegam ao mito hesperitano. As origens do mito são descritas por Simone Caputo:
Aqui pontuamos um topos interessante do percurso de busca de identidade crioula: o recurso ao mito arsanário ou hesperitano como origem (associado à idéia de pátria). As obras de José Lopes e de Pedro Cardoso, já nos seus títulos (Hesperitanas, 1928, e Hespérides, 1929; Jardim das Hespérides, 1926, e Hespéridas, 1930, respectivamente) interpretam a origem como: ilhas do velho Hespério – pai das Hespéridas – que abrigavam jardins repletos de pomos de oiro, guardados pelo dragão de cem cabeças, morto por Hércules. As “ilhas perdidas no meio do mar”, destacadas por Jorge Barbosa em seu antológico Arquipélago, 1935, e já eram identificadas por Camões, em Os lusíadas (canto V, VII, VIII, IX) como Cabo Verde (Cabo Arsinário ou Estrabão).
Os poetas recorrem ao passado de glórias do paraíso perdido de Atlântida como uma maneira de acalanto à situação em que se encontravam, diante da miséria perpetrada pelas condições climáticas adversas das ilhas. Porém, apresentam ainda uma situação confusa, onde ora assumem a pátria lusitana, ora almejam “a terra onde nascemos” (ilha-mãe) como podemos constatar nos trechos a seguir.
Camões surge nos versos de José Lopes:
Mas somos filhos, nós, de outros gigantes
Que, “por mares nunca dantes navegados”
Nossas Ilhas tiraram do mistério
(Hesperitanas. p.29. Apud: trecho de poema retirado de um ensaio de Simone Caputo Gomes publicado em Marcas da diferença p.163.)
Todavia, clama as “ilhas nossas mães” (Hesperitanas. p.25. Apud: trecho de poema retirado de um ensaio de Simone Caputo Gomes publicado em Marcas da diferença p.163.)
Já Pedro Cardoso canta a pátria portuguesa, mas não se esquece da sua pátria crioula:
A minha pátria é uma montanha olímpica
Tamanha! (...)
Na verdade, escutai! – chama-se
Fogo!
(Hespéridas. p.57-58. Apud: trecho de poema retirado de um ensaio de Simone Caputo Gomes publicado em Marcas da diferença p.163.)
Nasci na Ilha do Fogo,
Sou, pois, caboverdeano,
E disso tanto me ufano
Que por nada dera tal.
Ser filho de Cabo Verde,
Assevero – fronte erguida –
Que me é honra a mais subida
Ser neto de Portugal.
(Algas e corais. p. 5. Apud: trecho de poema retirado de um ensaio de Simone Caputo Gomes publicado em Marcas da diferença p.163-164.)
Devemos frisar que a referência ao mito hesperitano foi motivada pelas “pesquisas de José Lopes e Pedro Cardoso nos alfarrábios e enciclopédias da biblioteca do Liceu de S. Nicolau, do qual foram alunos”. (GOMES, 2006)
Até mesmo a submersão de Atlântida, após os cataclismos, encontra justificativa nos versos de José Lopes, e com isso afirma que o arquipélago de Cabo Verde é o que sobrou da antiga civilização:
Das vastas extensões assim submersas
Então ficaram estas nossas ilhas
(Hesperitanas. Apud: trecho de poema retirado de um ensaio de Simone Caputo Gomes publicado em Marcas da diferença p.165.)
aos “Irmãos caboverdeanos”, Pedro Cardoso conclama:
pisamos...
talvez a mesma terra que os Atlantes
(Hespéridas. Apud: trecho de poema retirado de um ensaio de Simone Caputo Gomes publicado em Marcas da diferença p.165.)
Depreendemos que este recurso ao mito hesperitano já propõe uma alternativa para a terra-mãe, renegando a pátria portuguesa. Todavia, a referência a este mito ainda apresenta uma solução longe daquilo que é vivenciado, o sentimento de evasão está presente e também aparecerá em outro movimento literário surgido com os poetas que formaram o corpo da revista Claridade a partir de 1936, e será conhecido como Pasargadismo.
A revista Claridade (1936-1960) é liderada por Jorge Barbosa, Baltasar Lopes (Osvaldo Alcântara) e Manuel Lopes, integrantes da elite intelectual crioula cabo-verdiana, sendo acompanhados por Corsino Fortes, Gabriel Mariano, Onésimo Silveira entre outros. Esse grupo de escritores passa a assumir suas raízes locais e admiram as inovações literárias propostas pelo modernismo brasileiro. Vêm o Brasil como modelo de país mestiço independente de Portugal, com uma língua diferenciada do colonizador (cito “Pronominais”, de Oswald de Andrade), a semelhança climática com o Nordeste brasileiro, e o conhecimento de nossa literatura, como podemos inferir no poema “Você, Brasil”, de Jorge Barbosa:
Eu gosto de você, Brasil,
Porque você é parecido com a minha terra.
Eu bem sei que você é um mundão
E que a minha terra são
Dez ilhas perdidas no Atlântico,
Sem nenhuma importância no mapa.
(...)
Você, Brasil, é parecido com a minha terra,
as secas do Ceará são as nossas estiagens,
com a mesma intensidade de dramas e renúncias.
Mas há no entanto uma diferença:
é que os seus retirantes
têm léguas sem conta para fugir dos flagelos,
ao passo que aqui nem chega a haver os que fogem
porque seria para se afogarem no mar...
(...)
havia então de botar uma fala
ao poeta Manuel Bandeira
de fazer uma consulta ao Dr. Jorge de Lima
para ver como é que a poesia receitava
este meu fígado tropical bastante cansado.
Havia de falar como Você
Com um i no si
– “si faz um favor –
de trocar sempre os pronomes para antes dos verbos
– “mi dá um cigarro!”
(...)
Os claridosos terão como temas os flagelos sentidos pela população, a seca, a fome, assim como a presença constante da insaluridade e a conseqüente evasão para solucionar este drama. Podemos citar na prosa, o livro “Flagelados do vento leste”, de Manuel Lopes, como representante deste período.
Mas é com Manuel Bandeira e a sua busca da felicidade tendo como imagem a ida para Pasárgada, que os poetas assumirão a evasão como principal característica. Sua influência é tamanha que faz escritores como Jorge Barbosa considerá-lo como um irmão brasileiro citando-o em diversos textos, e outro importante admirador claridoso é Osvaldo Alcântara (Baltazar Lopes). Assim comenta Simone Caputo Gomes:
A imagem de Pasárgada fecunda seus textos, não mais motivada pela doença, como nos poemas do brasileiro, mas pela pobreza do arquipélago. A nova Pasárgada não se resume a um espaço único, mas propõe-se, por meio da evasão, sempre como transposição de limites: “Eu vou-me embora, / não vou mais ficar / avassalado pela Astral Inferior” (Rapsódia da ponta da praia. Claridade, n. 5, p.13.)
Ou como espaço perdido (e não lugar a conquistar, em Bandeira). No seu “Itinerário de Pasárgada”, Osvaldo Alcântara nos fala da “saudade fina de Pasárgada”.
Entretanto, a evasão proposta pelo pasargadismo será contestada pelos escritores das gerações seguintes, anunciar-se-á o sentimento de anti-evasão e tendo como lema o dito “Não vou mais para Pasárgada”, os poetas do Suplemento Cultural (1958) e da Geração da Nova Largada (Ovídio Martins, Gabriel Mariano, Aguinaldo Fonseca entre outros) recusam o mito pasargadista e propõem a permanência em Cabo Verde como forma de resistência e ação, postura esta que já vinha sendo discutida pelos representantes da revista Certeza (1944, dois números).
Ovídio Martins retrata o momento de ruptura nos versos que seguem.
Pedirei
Suplicarei
Chorarei
Não vou para Pasárgada
Atirar-me-ei ao chão
e prenderei nas mãos convulsas
ervas e pedras de sangue
Não vou para Pasárgada
Gritarei
Berrarei
Matarei
Não vou para Pasárgada
(Anti-evasão. apud: Antologia temática da poesia africana, Mário de Andrade, p. 48.)
Morremos e ressucitamos todos os anos
para desespero dos que nos impedem
a caminhada
Teimosamente continuamos de pé
num desafio aos deuses e aos homens
E as estiagens já não nos metem medo
porque descobrimos a origem das coisas
(quando pudermos!...)
Somos os flagelados do Vento Leste!
(Flagelados do Vento Leste. Apud: Antologia temática da poesia africana, Mário de Andrade, p. 46-7.)
Onésimo Silveira apresenta o gosto pela origem cabo-verdiana, seus ritmos, suas mulheres.
O povo das Ilhas quer um poema diferente
para o povo das Ilhas:
Um poema com seiva nascendo no coração da ORIGEM
Um poema com batuque e tchabéta e badias de Santa Catarina
Um poema com saracoteio d’ancas e gargalhadas de marfim!
O povo das Ilhas quer um poema diferente
para o povo das Ilhas:
Um poema sem homens que percam a graça do mar
E a fantasia dos pontos cardeais!
(Um poema diferente. Apud: Antologia temática da poesia africana, Mário de Andrade, p. 56.)
Depreendemos que a procura identitária na poesia cabo-verdiana vai se desenvolvendo com o passar dos anos. O início do percurso trilhado em sinuosos versos entre a “transpátria lusa”, o resgate do mito hesperitano como pátria, a terra-mãe, a evasão do pasargadismo até chegar à poesia atual ainda na incansável busca pela identidade, Almada passeia pela temática típica dos seus predecessores e propõe um novo canto:
Quero
Um canto diferente
Para Cabo Verde
Já não somos
Os flagelado do vento leste
Dominamos os ventos
Já não somos os contratados
Como animais de carga para o Sul
Conquistamos a dignidade de gente
Por isso
Vou cantar
De forma diferente
Para esta pátria do Meio do Mar
Vou esquecer, enterrar
Os lamentos, as lamúrias
A tristeza
De quem quer ficar
Com o destino de ter de partir
Não vou chorar
A pobreza, a fraqueza
A seca
A natureza madrasta
Canto
Para este povo
Um canto de alegria
(1988. Apud: trecho de poema retirado de um ensaio de Simone Caputo Gomes publicado em Marcas da diferença p.168-169.)
Bibliografia:
ANDRADE, Mário de. Antologia temática de poesia africana: na noite grávida de punhais. Sá da Costa Editora, Lisboa. 1977.
GOMES, Simone Caputo. Rostos, gestos, falas, olhares de mulher: o texto literário de autoria feminina em Cabo Verde. In: Chaves, Rita e Macedo, Tânia. (Orgs.) Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo, Alameda, 2006.
SECCO, Carmen L. T. R. (Org.). Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX: Cabo Verde. Rio de Janeiro: UFRJ, Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras Vernáculas e Setor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, 1999. v.2.
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