segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Nelson Saúte: A sombra vagabunda

- Estou a apodrecer vivo.

Olhei para trás e dei de chofre com o homem que pronunciara aquela frase. Mais do que uma pessoa, parecia o fiapo de uma extinguível sombra. Uma silhueta de si próprio, réstia de alguém que fora um ser humano. Olhei-o nos olhos. Olhei-o fixamente. Tinha um olhar que encenava uma tragédia. Um olhar que denunciava o estado do seu corpo já desfeito pelo tempo, não obstante a idade. Estava curvado e parecia levitar. Caminhava empurrado pela aragem. Com ele, havia a manhã de sol e algum frio naquele sábado findava. Tinha alguma luz naqueles olhos que acenavam à vida, que lhe fugia. Certamente.

Estávamos os dois em plena avenida Samora Machel, na baixa de Maputo. A cidade imitava o bulício de outros dias. Interrompi meus pensamentos sobre o esqueleto do prédio Pott, que também apodrecia – como as palavras pungentes do homem que parara diante de mim -, resistindo as suas paredes mijadas e defecadas, sujas e ultrajadas depois de longos anos de abandono. Também o prédio, cuja construção começara em 1905, cem anos antes justamente, se queixava das mazelas do corpo. Deixei-me do corpo de pedra e dediquei-me àquele homem que entrara na minha solidão.

Eu estava à espera que o Moisés e os seus mufanas (rapazes, miúdos) acabassem de lavar o meu carro. Há muito que eles cuidam do meu automóvel. Em compensação o Moisés -, o patrão, tem uma avença. Tudo isto ali na praça.

Pensava vagarosamente sobre as mutações constantes da cidade. Do alto da avenida surgia, hierático, o edifício da câmara municipal, vulgo conselho executivo, terminologia que veio a reboque da revolução.

- O senhor doutor não está a ver quem sou eu?

Não hesitei em ser sincero.

- A sua cara não me é estranha. Mas do nome não me lembro.

Fixei a sua imagem sofredora. Era um homem escuro, demasiadamente escuro. Magro, pelo pescoço se adivinhavam as marcas das veias. No olhar, a sombra dele próprio. Fiquei aturdido perante aquela imagem de um homem que sobrara naquele esqueleto, da vida que resistia naquela expressão.

- Estou a sofrer senhor doutor.

Nada disse. Permaneci em silêncio.

- Estou a vir do hospital, tenho bolhas por todo o corpo...

Sem acabar a frase, baixou-se vagarosamente e puxou as calças pela bainha. Fiz-lhe um sinal com as mãos e a cabeça:

- Não precisa, meu caro senhor.

De nada me valeu a advertência. O homem mostrou as suas partes íntimas, naquele instante breve entre a sua primeira frase e o meu inescondível espanto.

- Está a ver? Tenho o corpo todo assim. Preciso de setenta meticais para o hospital. Não posso prometer, mas um dia eu vou pagar.

Para evitar constrangimentos de ser interpelado e não saber mentir, muitas vezes, quase sempre, ando sem dinheiro. Como era sábado, naquela manhã, eu tinha algum.

O homem tinha os ombros recurvos, que os fez dobrar para intensificar a sensação da dor, perante meu indisfarçável espanto. Pensei comigo: por que razão não darei os setenta meticais? Talvez contribua com mais um dia de vida no incauto destino deste homem.

Provavelmente o dinheiro teria outra utilização e não o hospital ou a farmácia. Mas lá tranqüilizei minha consciência por estar a partilhar com o próximo as parcas benesses que me couberam neste mundo.

- Muito obrigado. Nem sei como lhe agradecer, doutor.

- Não tem que me agradecer. Desejo-lhe rápidas melhoras.

O homem baixou-se numa vênia, o movimento foi feito com a lentidão das forças que lhe restavam. Vestia uma camisa às riscas, de flanela, uma camisola por dentro, umas calças jeans, sapatos pretos e meias grossas igualmente escuras. Olhei outra vez para a sua mão e tornei a reparar nas manchas que lhe brotavam daquela zona do corpo.

Enquanto o bulício da cidade se imiscuía nos meus pensamentos, deixei-me por uns momentos fixado na imagem daquele homem que dobrava a esquina da avenida Zedequias Manganhela, em direcção ao mercado Central, o famoso Bazar da baixa. Eu continuava ali na Samora Machel, a avenida que termina justamente na praça 25 de junho, onde se levam os carros, que se encontrava encerrada, em obras, ouvindo ao longe as buzinas dos motoristas impacientes, o trânsito caótico do meio-dia, da cidade toda que descera à baixa, dos veículos que não tinham onde estacionar.

- Sou da família Nhantumbo, dissera.

Confesso que anuíra com a cabeça mas, na verdade, não o conhecia. A cidade é pequena, quase todos nos conhecemos. É provável que este homem tenha sido alguém que tivera ou travara algum conhecimento comigo no passado. É provável, mas não me recordo. Olhava fixamente para o cimo da Samora Machel e tentava descortinar, nas teias da memória, algo que trouxesse aquele rosto aos dias do presente.

Há muito que não escrevo, pensei, a matéria prima está aqui, nos dias que passam rente ao meu nariz. Aqui estão as histórias, as vidas destes homens desencontrados com o seu tempo.

Lembrei-me então da mulher grávida e imensamente magra que se cruzara comigo horas antes. Era também o mapa de uma mulher sofrida, cuja barriga era maior que o seu corpo. Caminhava sem olhar para a frente. Caminhava como muitos dos que se perdem na esquina adiante. Caminhava como quase todos nós caminhamos. Deixava pelo caminho um pouco de nós próprios, perdendo em cada rasto a nossa desconhecida biografia. Como aquele homem que me deixara assombrado e que caminhava, não obstante. Provavelmente, em cada esquina da cidade ele deixava cair – já poucas forças restavam – o que lhe sobrava da sua sombra vagabunda.

Saúte, Nelson. A sombra vagabunda. In: Rio dos bons sinais. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007. 1ª edição. pp. 47-51.

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