Acaba de sair um livro de autoria de Moraes Moreira com a sua versão para a história do criativo grupo/comunidade Novos Baianos, surgido na virada dos anos 1960/1970 em meio ao terror estabelecido pela sangrenta ditadura militar que assombrava nosso país. Soube do livro pelo programa Espaço Aberto – Literatura (Globo News/Net) com o sereno jornalista Edney Silvestre, e fiquei a recordar os meus primeiros contatos com a obra do conjunto de cabeludos, sujos e largados. Verdadeiros hippies.
Entre os incontáveis discos de vinil que meu pai possuía, havia o antológico “Novos Baianos – Acabou chorare”. Álbum de capa dupla com diversas fotos dos numerosos integrantes no sítio que ocupavam em Jacarepaguá. Eu ficava espantado (tinha então uns seis ou sete anos de idade) com o estilo despojado, alegre, descontraído e sem maiores caprichos com a aparência que eram parecidos com as primeiras idas da minha família para Figueira, em Arraial do Cabo, no final da década de 1970. Lugar que na época não tinha energia elétrica, anoitecia e ficávamos sob a inconstante luz do lampião de querosene, ausência de água encanada conseguida através de uma bomba manual à qual os adultos tinham que ficar agachados para “tentar” tomar banho. A comida era feita em um fogão de tijolos e todas as pessoas ficavam amontoadas em barracas. Bons tempos em vida comunitária, mesmo que fosse por poucos dias.
Diante de tais semelhanças, logo de cara construí uma simpatia por aquela desconhecida galera. Peguei o disco e coloquei na minha vitrolinha portátil Philips. Era um aparelho que, quando fechado, parecia uma maletinha, quando aberto posicionava-se a caixa de som que ficava presa à tampa.
Os Novos Baianos chegaram ao Rio de Janeiro em 1971 e iniciaram sua experiência comunitária em uma cobertura na zona sul e um belo dia receberam a visita de João Gilberto, um dos grandes nomes da bossa nova. Esse contato faria com que o grupo ampliasse suas influências no clássico álbum “Acabou chorare”, um dos mais antropofágicos discos da música brasileira, e a bossa nova faz-se na música-título, composição de Galvão e Moraes, tanto no som quanto na letra:
“Acabou chorare, ficou tudo lindo
De manhã cedinho, tudo cá cá cá, na fé fé fé
No bu bu li li, no bu bu li lindo
No bu bu bolindo
No bu bu bolindo”
Depois, o grupo estabeleceu-se no famoso sítio de Jacarepaguá onde uniu música, futebol e vida alternativa. Tudo com muito humor e alegria, contrastando com a barra pesadíssima da sanguinária passagem do ditador Médici pelo poder usurpado, e os versos iniciais de Brasil Pandeiro (composição de Assis Valente), “Chegou a hora dessa gente / bronzeada mostrar seu valor”, retratam a coragem e ousadia dos integrantes ou como canta Baby em “Tinindo trincando” (composição de Moraes e Galvão), mostrando o espírito que norteava o grupo:
“Eu vou assim
E venho assim
Porque quem invade não
não chega não
chega não porque pera aí
sou mesmo assim
sou mesmo assim
sou mesmo assim
assim”
Entretanto, nessa transição que desencadearia no movimento do desbunde, a experiência no sítio, a idealização e tentativa de concretização do sonho da contracultura em levar uma vida libertária a enfrentar o sistema capitalista pela mudança de comportamento, e não se associando ao radicalismo da esquerda que na época vivia o auge da luta armada, Moraes Moreira na entrevista a Edney Silvestre relata que a experiência foi bem sucedida até a chegada dos filhos do grupo. Aí, a falta de grana começou a pesar e o sonho do flower power tropical começou a ruir.
Para combater o inferno astral do período, “Besta é tu” (composição de Galvão, Pepeu Gomes e Moraes Moreira) convoca a todos a buscar um novo olhar perante a realidade estabelecida:
“Besta é tu, besta é tu
Besta é tu, besta é tu
Não viver nesse mundo, se não há outro mundo
(Por que não viver?)
Não viver nesse mundo
(Porque não viver?)
Se não há outro mundo
(Por que não viver?)
Não viver outro mundo
E pra ter outro mundo, é preci-necessário
Viver, viver contanto em qualquer coisa
Olha só, olha o sol. O maraca domingo. O perigo na rua
O brinquedo menino
A morena do Rio, pela morena eu passo o ano olhando o Rio
Eu não posso com um simples requebro
Eu me passo, me quebro, entrego o ouro
Mas isso é só porque ela se derrete toda só porque eu sou baiano”
Galvão, inspirado, para confundir a censura, a caretice de direita e esquerda, defini-se em “Mistério do planeta”:
“Vou mostrando como sou e vou sendo como posso
Jogando meu corpo no mundo, andando por todos os cantos
E pela lei natural dos encontros, eu deixo e recebo um tanto
E passo aos olhos nus ou vestidos de lunetas.
Passado, presente, participo sendo o mistério do planeta.
O tríplice mistério do "stop", que eu passo por
e sendo ele no que fica em cada um.
No que sigo o meu caminho e no ar que fez e assistiu.
Abra um parênteses, não esqueça que independente disso
eu não passo de um malandro.
De um moleque do Brasil, que peço e dou esmolas.
Mas ando e penso sempre com mais de um,
por isso ninguém vê minha sacola.”
No disco encontramos frevo, samba, bossa nova, rock’n’roll e outras citações sonoras exploradas com ousadia e competência por Moraes, Galvão, Baby Consuelo, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor, Dadi, Jorginho Gomes, Baixinho e Bolacha num intenso diálogo com as idéias tropicalistas de Gil, Caetano e Mutantes. Talvez a melhor fusão do rock com ritmos brasileiros já feita por aqui.
Para termos uma noção da recepção do álbum “Acabou chorare” pela crítica, cito o que Torquato Neto, compositor, músico, ator, jornalista, poeta e um dos pilares do tropicalismo ao lado de Gilberto Gil e Caetano Veloso, escrevia entusiasmado a respeito do grupo:
“Essa é pra ninguém perder: o Teatrão da Siqueira Campos vai apresentar hoje, à meia-noite, um superconcerto dos Novos Baianos, o conjunto (conjunto?) mais ligado desta banda de cá. Quem se amarra neles não pode, mesmo, perder. Quem não se amarra está por fora e é muito bom entrar nessa dança: vamos lá: é no Teatrão, à meia-noite, hoje, hoje, hoje.” (NETO, 22/10/71. p. 123)
Em outra nota de sua famosa coluna Geléia Geral, no jornal Última Hora, Torquato Neto extravasa toda a sua empolgação com o show citado acima, em uma simpática forma de escrever. E creio que tenha sido uma experiência além do que retratou:
“Eu não estou sabendo de nada mais importante pra ser curtido do que o show dos Novos Baianos. Todo mundo já sabe: começa hoje e vai até domingo, no Teatrão da Siqueira Campos, vulgo Teatro Teresa Raquel. Um concerto hoje, outro amanhã e dois no domingo: dá de sobra pra ninguém arranjar desculpas: se querem ficar por fora, fiquem, mas fiquem sabendo que a transa dos Novos Baianos é o que existe de melhor, mais limpo e integralmente porreta entre tudo o que está pintando por aí depois do show da Gal.” (NETO, 29/10/71. p. 131)
Fui crescendo ao som de “Acabou chorare”, chegou o Rock in Rio em 1985, estavam lá Baby Consuelo, Pepeu Gomes e Moraes Moreira. Além da gravidez de Baby, o fato que mais me marcou das apresentações dos antigos representantes do grupo naquele festival foi o solo de guitarra arrasador de Pepeu Gomes na chamada “noite dos metaleiros”. Aliás, considero Pepeu o mais criativo guitarrista do Brasil! Seu disco instrumental “A geração do som”, gravado no final dos anos 70, é uma pérola perdida da mistura rock e ritmos brasileiros, não devendo nada a álbuns de Stevie Vai, Joe Satriani e Ingwie Malmsteen.
Portanto, coloco “Acabou chorare” como um dos melhores álbuns de todos os tempos da música popular brasileira, fundamental na década de 1970 e que marca uma época em que a transgressão e a utopia andavam de mãos dadas. Uma referência cultural que jamais poderemos perder.
Bom, este texto foi motivado pelo livro de Moraes que ainda nem vi, mas que pretendo comprá-lo em breve. Em Uma outra história dos novos baianos e outros versos, lançado pela Editora Língua Geral, Moraes escolheu o estilo da literatura de cordel para narrar a sua versão da história do grupo. Uma opção interessante e agradável. A literatura de cordel já rendeu ótimos exemplos nas nossas letras. Inspirou João Cabral do Melo Neto, com o obrigatório “Morte e vida Severina”, e contou com a simpatia do respeitável poeta Ferreira Gullar em sua passagem pelo CPC da UNE, no raiar da década de 1960.
Para quem quiser conhecer uma outra versão da história dos Novos Baianos, basta procura o livro Anos 70 – Novos e Baianos, de Luiz Galvão, pela Editora 34.
A seguir, alguns vídeos raros que estão no Youtube com músicas de Acabou Chorare. É só curtir!
Riso
A menina dança
http://www.youtube.com/watch?v=mqcq4wwjL8o&feature=related
Brasil pandeiro
http://www.youtube.com/watch?v=jY3cppFA3aQ&feature=related
Mistério do planeta
http://www.youtube.com/watch?v=WWfseMcAUZY&feature=related
Preta pretinha
http://www.youtube.com/watch?v=2eomEoNO4qc&feature=related
Novos Baianos e Marisa Monte – A menina dança
http://www.youtube.com/watch?v=H3E_JrEKFvQ&feature=related
BIBLIOGRAFIA:
NETO, Torquato. Os últimos dias de paupéria. Ed. Aeroplano. 1973.
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