Em 1955, Clouzout conseguiu convencer Picasso a pintar para suas câmeras e fez um filme de raríssima sensibilidade. Em setenta e cinco minutos nos deleitamos com o genial Pablo Picasso desenhando e pintando vinte obras. Contudo, o que é interessante na película é a maneira como foi registrado o processo criativo de Picasso, o tal mistério. Clouzout foge da jeito tradicional de filmar um artista criando, vai além do que era até então um documentário. Ele não se dirige ao atelier de Picasso, mas monta um espaço onde pudesse inovar.
Valendo-se de tintas, papéis e telas especiais a filmagem é feita por trás da obra, ou seja, é como se Pablo estivesse pintando sobre a tela do cinema, pois ocupa toda a superfície da lente cinematográfica. Vemos apenas os traços sendo construídos por Picasso, não o vemos, e escandalizamo-nos com a rapidez como volume, forma e cores vão ocupando seu espaço na tela. É um belíssimo exercício de metalinguagem, com breves momentos da câmera mostrando Claude Renoir filmando. É um magnífico filme-pintura, muito além de qualquer “filme de arte”.
Um detalhe importante é que essas obras só existem no filme. Por razões contratuais, todas as obras feitas foram destruídas após as filmagens. Logo, vemos Picasso pintando incessantemente uma tela atrás da outra e, em alguns momentos, ainda era pressionado por Clouzout para que encerrasse antes do término do rolo de filme. Uma situação incômoda. Todavia, com isso temos a oportunidade de conferir uma das marcas do artista: sua imensa vontade de vencer desafios.
Como o grande astro do filme é o processo criativo, quase não há diálogos e temos poucas aparições dos artistas. Vale frisar a sutil e sensível opção pelo preto-e-branco durante a filmagem da realização das obras e nas poucas vezes em que Picasso, Clouzout e os outros integrantes do set são mostrados, deixando que as cores aparecessem somente nas pinturas no momento em que Pablo resolve usar o óleo. E aí o bicho pega porque Picasso cria trabalhos sensacionais.
Extraordinária é a percepção de como Picasso desenvolve as suas obras. A idéia inicial surge logo nos primeiros traços e pinceladas. Entretanto, o tema é progressivo e exaustivamente trabalhado, pintado e repintado incontáveis vezes, criando interessantes variações que são notadas com esplendor quando a filmagem utiliza a técnica da animação em stop-emotion. É uma espécie de palimpsesto pictórico. Dessa maneira, espantamo-nos com as diversas obras que poderiam ter sido feitas em torno de um mesmo tema. E, detalhe, cada variação mais interessante do que a outra, atestando a inigualável maestria e criatividade do artista. Creio, também, que ajuda a entender a quantidade assustadora de obras que Picasso fez ao longo da vida.
Excelente a música feita por Georges Aurenche. Acompanha com dramaticidade devida os temas criados por Picasso. Porém, no meu ponto de vista, a música é criticada com injustiça por François Truffaut em ótimo extra do DVD, que é uma crítica feita pelo também diretor francês na estréia do filme no festival de Cannes de 1956. Para meu estranhamento, Truffaut narra a frieza com que o filme foi recepcionado pelo público, mesmo assim ele não deixa de exaltar a genialidade e inovação de Clouzout na concepção do filme.
Além do ensaio de Truffaut, os extras do dvd contêm biografias resumidas de Picasso, Clouzout e Alains Renais, este último foi um dos líderes da Novelle Vague, filmou o clássico “Hiroshima, meu Amor” (Hiroshima, mon Amour), e comparece com o ótimo, belo e lírico curta-metragem “Guernica”. Neste curta, de intenso humanismo e amor à vida, podemos ver partes de várias obras de Picasso nas mais diferentes fases que percorreu ao longo da vida, acompanhadas de um belo texto em off que denuncia a agressividade do bombardeio sobre a população civil e da estupidez humana.
Para finalizar, uma crítica à infeliz tradução do título do filme tanto para o português quanto para o inglês (notado durante o trailer), pois não se trata d’O mistério “de” Picasso, mas, sim, d’O mistério Picasso, que permanece insolúvel após o término da projeção. O importante é que Henri-Georges Clouzout, com o fundamental auxílio de Pablo Picasso, realizou uma obra-prima do cinema de incomparável lirismo. Trata-se de um filme obrigatório para quem ama o cinema, ama a pintura e crer na ilimitada capacidade criativa do homem.
Riso - 12/01/2008
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