O nosso cinema nacional anda esquecido em retratar o Brasil. Desde a chamada “retomada do cinema nacional” em meados da década de 1990 com filmes como “Carlota Joaquina” e “Terra Estrangeira”, que as películas produzidas por aqui apresentam certo marasmo e ilusão típicos de uma novela do principal canal de televisão, comandante do país. Felizmente, não foi o acontecido com os dois filmes citados.
Foi criado nesses quase vinte anos um cinema que ouso chamar de “cinema de evasão”. Um cinema frio, de estórias românticas paupérrimas, de alegria efêmera, rostos bonitos de atores globais que muitas vezes representam os mesmos papéis das novelas. Isso quando os filmes apresentam uma estética televisiva, caso do fraquíssimo “Olga”. E ainda querem chamar aquilo de cinema.
A hipocrisia que domina nossa sétima arte é tanta que anos atrás, o jovem Erick Rocha, filho de Glauber Rocha, lançou a pertinente polêmica “estética da fome”. Rocha criticava abertamente este cinema de espetáculo, completamente submisso ao poder estabelecido, que conseguia a proeza de filmar um sertão sem miséria. Basta lembrarmos de “Eu, tu, eles”. Reivindicava o retorno a um cinema contestatório e independente no campo das idéias como foi o nosso Cinema Novo, sem que isso refletisse um retorno ao desleixo técnico da época, mas que era utilizado dentro de uma estética pré-estabelecida com os parcos recursos a que tinham acesso.
Hoje, quase não vejo cinema produzido neste país. Ainda temos alguns raros exemplos de diretores que arriscam novas linguagens, planos imprevisíveis, estórias que não seguem necessariamente uma linha narrativa linear e finais felizes. Cito Claudio Assis, de “Amarelo Manga” e “Baixio das Bestas”, Beto Brant, de “O invasor”, “Crime delicado” e outros filmes impactantes, Matheus Nachtergale com “A Concepção” e, parafraseando meu amigo Luíz Horácio, mais uma meia dúzia de dois ou três. Ah! Não posso deixar de citar o recente e belo “Mutum”, de Sandra Kogut, baseado na obra de Guimarães Rosa.
Pior que não precisamos ir muito longe para termos contato com cinema de alta qualidade, é só assistirmos às produções argentinas que por aqui chegam. Sempre revisitando seu passado, sem medo e sem se entregar aos grupos dominantes que tentam ofuscar a História.
Bom, após esse longo desabafo, vamos ao que interessa. Para quem está acostumado com um cinema que não encara os problemas sociais, políticos culturais etc. do seu país, terá uma surpresa que provavelmente será angustiante e inquietante diante da co-produção iraniana-iraquiana “Tartarugas podem voar” (Turtles can fly), filme que passou no domingo último no Telecine Cult/NET.
O filme narra o cotidiano de um campo de desabrigados curdos em uma região fronteiriça do Iraque dias antes da invasão norte-americana comandada por Bush Filho. A população do referido abrigo é formada por velhos e crianças, pois os homens e mulheres em idade ativa foram mortos, em sua maioria, na primeira Guerra do Golfo, patrocinada por Bush Pai. Irônico, não?
Acompanhamos um grupo imenso de crianças liderado pelo adolescente Satélite, que além de líder é também o responsável pela manutenção das antenas parabólicas do vilarejo e atua como tradutor de inglês (apesar do péssimo inglês e ser admirador dos Estados Unidos) para os mais velhos, líderes da comunidade. Para o sustento de seu grupo de crianças órfãos e muitas mutiladas pelas minas espalhadas pelo território, Satélite organiza a captura dessas minas e posterior venda em mercados da redondeza.
O detalhe curioso é que os atores não são profissionais, as crianças são realmente órfãos e foi o primeiro filme produzido em solo iraquiano após a invasão norte-americana.
É desesperador ver crianças mapeando áreas minadas e desarmando essas famigeradas armas de destruição e morte. Assim é a guerra, faz com que as pessoas sobrevivam em contato constante com a morte, com aquilo que mata.
O filme mostra a miséria e abandono a que são submetidas as crianças. Fome, roupas esfarrapadas, estupros, morte, famílias dilaceradas, ódio e violência são os alimentos diários dessas crianças impedidas de sonhar, de sorrir, de brincar. São seres amargos, embrutecidos pela vida, crianças que prematuramente são obrigadas a amadurecer em um mundo envolto em desencanto.
A personagem traduz em seu olhar um mundo de desesperança, sofrimento e dor. Em sua curta vida presenciou o assassinato de sua família, foi estuprada pelos assassinos e carrega à contra-gosto a criança fruto dessa violência. Arredia, a menina mal consegue se comunicar com outras pessoas, mesmo sendo de sua idade como o apaixonado Satélite, e não sente nenhum apreço ou carinho pelo filho. Procura abandoná-lo a qualquer custo, idéia que não é compartilhada por seu irmão (médium e sem braços), responsável por tentar passar algum amor ao pequeno menino.
Vemos a tensão crescendo com a proximidade do ataque norte-americano, o vilarejo se preparando para o ataque a sua maneira, com pouquíssimas armas para a defesa e uma quantidade mínima de máscaras para os ataques químicos. A agitação do menino-líder é intensa, aos berros comanda suas crianças e tenta dar alguma ordem ao caos.
Enquanto isso a menina abandona seu filho em um lugar que julga ermo e parte para um desfiladeiro onde comete suicídio. Entretanto, o menino retorna e é encontrado em uma área minada. O desespero toma conta das crianças, Satélite vai ao socorro do menino, mas não consegue evitar a explosão da mina que mata a criança e o atinge gravemente.
Satélite fica alojado em uma carcaça de tanque de guerra abandonado. Logo em seguida, o ataque norte-americano é implacável e ocupa a região. Satélite olha para aquilo tudo com desencanto e parte, com muletas, na direção contrária a dos soldados norte-americanos.
Uma dentre várias questões ou várias questões em uma: quando o nosso cinema retratará o cotidiano das crianças que vivem nas favelas, cercadas por traficantes, policiais assassinos, pais alcoólatras e desempregados quando os há, mães sozinhas e ganhando uma ninharia para sustentá-los, esgoto a céu aberto, sem escola, sem posto de saúde, mas com medo, desesperança e morte? Ah? O quê? Ah, tá! O problema é deles, vagabundos que não querem trabalhar e defendem os traficantes. Tropa de Elite neles! Além do mais, não haveria papéis para Alemão, o padrão de beleza nacional, e Graze Massafera. E para finalizar, quem gosta de miséria é intelectual. Quem quer saber e ver desgraças?
“Tartarugas podem voar” está na grade do Telecine Cult/NET e também pode ser visto em DVD.
Foi criado nesses quase vinte anos um cinema que ouso chamar de “cinema de evasão”. Um cinema frio, de estórias românticas paupérrimas, de alegria efêmera, rostos bonitos de atores globais que muitas vezes representam os mesmos papéis das novelas. Isso quando os filmes apresentam uma estética televisiva, caso do fraquíssimo “Olga”. E ainda querem chamar aquilo de cinema.
A hipocrisia que domina nossa sétima arte é tanta que anos atrás, o jovem Erick Rocha, filho de Glauber Rocha, lançou a pertinente polêmica “estética da fome”. Rocha criticava abertamente este cinema de espetáculo, completamente submisso ao poder estabelecido, que conseguia a proeza de filmar um sertão sem miséria. Basta lembrarmos de “Eu, tu, eles”. Reivindicava o retorno a um cinema contestatório e independente no campo das idéias como foi o nosso Cinema Novo, sem que isso refletisse um retorno ao desleixo técnico da época, mas que era utilizado dentro de uma estética pré-estabelecida com os parcos recursos a que tinham acesso.
Hoje, quase não vejo cinema produzido neste país. Ainda temos alguns raros exemplos de diretores que arriscam novas linguagens, planos imprevisíveis, estórias que não seguem necessariamente uma linha narrativa linear e finais felizes. Cito Claudio Assis, de “Amarelo Manga” e “Baixio das Bestas”, Beto Brant, de “O invasor”, “Crime delicado” e outros filmes impactantes, Matheus Nachtergale com “A Concepção” e, parafraseando meu amigo Luíz Horácio, mais uma meia dúzia de dois ou três. Ah! Não posso deixar de citar o recente e belo “Mutum”, de Sandra Kogut, baseado na obra de Guimarães Rosa.
Pior que não precisamos ir muito longe para termos contato com cinema de alta qualidade, é só assistirmos às produções argentinas que por aqui chegam. Sempre revisitando seu passado, sem medo e sem se entregar aos grupos dominantes que tentam ofuscar a História.
Bom, após esse longo desabafo, vamos ao que interessa. Para quem está acostumado com um cinema que não encara os problemas sociais, políticos culturais etc. do seu país, terá uma surpresa que provavelmente será angustiante e inquietante diante da co-produção iraniana-iraquiana “Tartarugas podem voar” (Turtles can fly), filme que passou no domingo último no Telecine Cult/NET.
O filme narra o cotidiano de um campo de desabrigados curdos em uma região fronteiriça do Iraque dias antes da invasão norte-americana comandada por Bush Filho. A população do referido abrigo é formada por velhos e crianças, pois os homens e mulheres em idade ativa foram mortos, em sua maioria, na primeira Guerra do Golfo, patrocinada por Bush Pai. Irônico, não?
Acompanhamos um grupo imenso de crianças liderado pelo adolescente Satélite, que além de líder é também o responsável pela manutenção das antenas parabólicas do vilarejo e atua como tradutor de inglês (apesar do péssimo inglês e ser admirador dos Estados Unidos) para os mais velhos, líderes da comunidade. Para o sustento de seu grupo de crianças órfãos e muitas mutiladas pelas minas espalhadas pelo território, Satélite organiza a captura dessas minas e posterior venda em mercados da redondeza.
O detalhe curioso é que os atores não são profissionais, as crianças são realmente órfãos e foi o primeiro filme produzido em solo iraquiano após a invasão norte-americana.
É desesperador ver crianças mapeando áreas minadas e desarmando essas famigeradas armas de destruição e morte. Assim é a guerra, faz com que as pessoas sobrevivam em contato constante com a morte, com aquilo que mata.
O filme mostra a miséria e abandono a que são submetidas as crianças. Fome, roupas esfarrapadas, estupros, morte, famílias dilaceradas, ódio e violência são os alimentos diários dessas crianças impedidas de sonhar, de sorrir, de brincar. São seres amargos, embrutecidos pela vida, crianças que prematuramente são obrigadas a amadurecer em um mundo envolto em desencanto.
A personagem traduz em seu olhar um mundo de desesperança, sofrimento e dor. Em sua curta vida presenciou o assassinato de sua família, foi estuprada pelos assassinos e carrega à contra-gosto a criança fruto dessa violência. Arredia, a menina mal consegue se comunicar com outras pessoas, mesmo sendo de sua idade como o apaixonado Satélite, e não sente nenhum apreço ou carinho pelo filho. Procura abandoná-lo a qualquer custo, idéia que não é compartilhada por seu irmão (médium e sem braços), responsável por tentar passar algum amor ao pequeno menino.
Vemos a tensão crescendo com a proximidade do ataque norte-americano, o vilarejo se preparando para o ataque a sua maneira, com pouquíssimas armas para a defesa e uma quantidade mínima de máscaras para os ataques químicos. A agitação do menino-líder é intensa, aos berros comanda suas crianças e tenta dar alguma ordem ao caos.
Enquanto isso a menina abandona seu filho em um lugar que julga ermo e parte para um desfiladeiro onde comete suicídio. Entretanto, o menino retorna e é encontrado em uma área minada. O desespero toma conta das crianças, Satélite vai ao socorro do menino, mas não consegue evitar a explosão da mina que mata a criança e o atinge gravemente.
Satélite fica alojado em uma carcaça de tanque de guerra abandonado. Logo em seguida, o ataque norte-americano é implacável e ocupa a região. Satélite olha para aquilo tudo com desencanto e parte, com muletas, na direção contrária a dos soldados norte-americanos.
Uma dentre várias questões ou várias questões em uma: quando o nosso cinema retratará o cotidiano das crianças que vivem nas favelas, cercadas por traficantes, policiais assassinos, pais alcoólatras e desempregados quando os há, mães sozinhas e ganhando uma ninharia para sustentá-los, esgoto a céu aberto, sem escola, sem posto de saúde, mas com medo, desesperança e morte? Ah? O quê? Ah, tá! O problema é deles, vagabundos que não querem trabalhar e defendem os traficantes. Tropa de Elite neles! Além do mais, não haveria papéis para Alemão, o padrão de beleza nacional, e Graze Massafera. E para finalizar, quem gosta de miséria é intelectual. Quem quer saber e ver desgraças?
“Tartarugas podem voar” está na grade do Telecine Cult/NET e também pode ser visto em DVD.
Riso
TARTARUGAS PODEM VOAR (LAKPOSHTHA HÂM PARVAZ MIKONAND)Curdistão/Irã/Iraque/França, 2004
Direção, roteiro e desenho de produção: BAHMAN GHOBADI
Fotografia: SHAHRAM ASSADI
Montagem: MUSTAFA KHERQEPUSH, HAYDEH SAFI-YARI
Música: HOSSEIN ALIZADEH
Elenco: SORAN EBRAHIM, AVAZ LATIF, SADDAM HOSSEIN FEYSAL, HIRESH FEYSAL RAHMAN, ABDOL RAHMAN KARIM, AJIL ZIBARI
Duração: 98 minutos
3 comentários:
Acabei de assistir a essa obra magnífica. Fiquei inquieto e tive que procurar referências a este filme.
Adorei o seu texto. Muito sincero e bem elaborado - não digo só à sua análise ao filme, mas também ao "desabafo" referente ao cinema nacional.
abraço!
Oi, Elton!
Este filme é realmente muito bom! Imperdível, principalmente para quem quer ver cinema de verdade.
Muito obrigado pelo comentário.
Abraço!!
Impossível assistir filmes nacionais com os canastroes e canastréas globais. O Tartatugas é maravilhoso em sua pungência. Os afegaos vivem assim, os palestinos vivem assim. Horrível - só nao é mais cruel que Incendios. E os americanos também enlouquecem, os soldados sao a soldo e voltam todos loucos e doentes. A guerra é sempre sempre para os dois lados, satânica. Laurene
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