quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Dina Salústio: “Mornas eram as noites”

Os contos apresentados pela cabo-verdiana Dina Salústio em “Mornas eram as noites” levam-nos a refletir sobre diversas questões que afligem a condição humana, retratando, sob a ótica feminina, os dramas, anseios, felicidades, medos, angústias, revoltas, cumplicidades e tantos outros estados que perpassam pelo cotidiano da mulher. Tendo Cabo Verde como pano de fundo, em um constante movimento entre o local e o universal, depreendemos que tais relatos ora são específicos da mulher cabo-verdiana, ora atingem as mulheres de todo o mundo.

A própria escolha do termo “morna” no título apreende a importância da condição feminina nos contos do livro, porque a morna é “tradicionalmente canto de mulher (...) Música de mulheres, em que a mulher é a peça principal” (GOMES, 2000, p. 115) A morna é a principal expressão musical de Cabo Verde e a mais importante característica cultural do arquipélago, elemento unificador dos cabo-verdianos em qualquer lugar do planeta. Além disso, mostra a estreita relação que há entre a música e a literatura cabo-verdianas, presente em textos de Corsino Fortes, Jorge Barbosa, Pedro Cardoso, Manuel Lopes entre outros, como analisa a Profa. Dra. Simone Caputo Gomes em seu artigo “Ecos da caboverdianidade: Literatura e Música no Arquipélago” (pp. 4-7).

Dina Salústio é uma das principais representantes da literatura cabo-verdiana contemporânea. Pouco destacada, a autoria feminina encontra-se em ótimas letras nos trabalhos de Orlanda Amarilis, Vera Duarte além da própria Dina apenas para citarmos alguns nomes.

Chamada Bernadina Oliveira Salústio, nasceu em 1941 na ilha de Santo Antão. Sua obra apresenta-se em poesia na antológica coletânea “Mirabilis – veias ao sol” (1991), no romance “A louca do Serrano” (1998), no ensaio “Insularidade na literatura cabo-verdiana” (1998) e nos contos que aqui serão discutidos em “Mornas eram as noites” (1994) entre diversos textos espalhados em várias publicações.

Em entrevista concedida à Profa. Dra. Simone Caputo Gomes (USP), a escritora conta como elaborou o livro e da:

“necessidade de publicar as inúmeras histórias de mulheres, histórias de vida que passam por mim (...) Não são ficção, é cá um encontro que é verdade, um momento só (...) Não fiz uma seleção desses textos, só o primeiro foi intencional, para querer mostrar o meu reconhecimento a estas mulheres cabo-verdianas que trabalham duro, que fazem o trabalho da pedra, carregar água, trabalham a terra, que têm a obrigação de cuidar dos filhos, de acender o lume. Quis prestar homenagem a esta mulher (...) Falo das mulheres intelectuais, daquelas que não são intelectuais, daquelas que não têm nenhum meio de vida escrito, falo da prostituta, falo de todas as mulheres que me dão alguma coisa, e que eu tenho alguma coisa delas (...) Em Cabo Verde, quando nasce uma menina, ela já é uma mulher.” (Apud: Sepúlveda, 2000, p. 114)

Diante de tais esclarecimentos, quando deparamo-nos com as curtas narrativas de “Mornas eram as noites” percebemos a presença constante de um narrador-personagem que se vale da transmissão oral dos acontecimentos para compor a matéria literária. Para Walter Benjamin, em seu célebre texto O narrador, a sociedade moderna vem perdendo gradativamente a sabedoria de narrar, desaprendemos a ouvir e contar histórias “sempre foi a arte de contá-las de novo” (Benjamin, 1936, p. 205), algo que Dina Salústio realiza com maestria e encantamento, fazendo disso uma forte característica em seu texto, como na passagem a seguir:

“Há amigos que tenho prazer em oferecer um copo. Não pelo facto de só beberem água mas também porque entre um gole e outro contam estórias que me cativam.” (SALÚSTIO, 1999, p. 19)

ou até mesmo quando, com percepção investigadora, narra conversas de outrem e assume com ironia tal condição para o fazer-literário, ou quando se vale da cumplicidade feminina:

“Eu tinha que ouvir. Bom, não necessariamente, porque podia ter-me desligado como habitualmente, mas deixe-me estar, entrando na conversa, ficando de fora, protegida pelos óculos escuros e pelo livro aberto. (...) Optei por escrever esta crônica. Sem remorsos por ter roubado pensamentos.” (Ibid, ibidem, pp. 79-80)

“Não tínhamos pressa e deixámo-nos ficar conversando, interrompidas apenas pelo ruído das carruagens que chegavam e partiam.” (Ibid, ibidem, p. 60)

Assim, apreendemos que esse narrador-personagem aproxima-nos da atmosfera do cotidiano feminino, das confidências, problemas, amores e desejos que atingem impressionante lirismo durante as narrativas.

Um dos principais temas explorados por Dina Salústio é o sexo, mais precisamente, a prematura iniciação sexual e a posterior gravidez precoce das adolescentes cabo-verdianas. Um problema que mostra a opressão sofrida pelas meninas, o desrespeito dos homens e a falta de planejamento familiar. A autora resume com acidez: “Nasceu fêmea é mulher” (Ibid, ibidem, p. 58). O estupro e o abandono são rotineiros no arquipélago. Meninas são obrigadas a ter relações sexuais e, com isto, o fim dos sonhos da adolescência. O texto denuncia a crueldade da vida e reclama à Natureza:

“Aos dezasseis anos não se devia ter filhos. A natureza não soube fazer contas. Aos dezasseis anos não se devia carregar culpas. Nem vergonhas.
Paula perdeu o olhar meigo e livre de adolescente. Agora apenas um rostinho triste e resignado que de longe se abre, quando gargalhadas de menina como ela despertam o resto de menina que ainda existe.” (Ibid, ibidem, p. 42)

O narrador revolta-se com a situação estabelecida, porém sabe que não pode exigir tal comportamento de meninas. Apresenta soluções em meio a sua indignação, percebe a ilusão de esperança que a jovem ainda possui, mas que terminará em breve. Ficará apenas o intenso calor cabo-verdiano e as dificuldades futuras para quem se tornou “forçadamente mulher, forçosamente mãe”:

“Queria vê-la com raiva (...) Mas, por Deus, aos dezasseis anos quem pode ter essa força toda? (...)
Queria que ela e todas elas se juntassem e calassem para sempre os latidos daqueles que perseguem manhosamente as nossas meninas na quietude das noites (...).
Mas Paula chora às escondidas. E tem esperança. Ainda. Porque a esperança aos dezasseis anos é a última coisa a deixar-se ir. Mas secará com o primeiro leite do primeiro filho. Secará com os sonhos da adolescente forçadamente mulher, forçosamente mãe.
Para Setembro haverá calor.” (Ibid, ibidem, pp. 42-43)


Daí resulta a postura agressiva contra a hipocrisia social perante a exploração da prostituição infantil em “Tabus em saldo”, motivada pela miséria que assola as ilhas do arquipélago, afinal “as fêmeas são sempre as mulheres”, e a impotência da sociedade diante da pedofilia, preferindo o silêncio e a indiferença da omissão:

“há outros de nós que as desejam para o folclore das fantasias e para o encobrimento ridículo e camuflado da irracionalidade do estar.” (Ibid, ibidem, p. 58)

“Temos uma juventude tão bonita que há que se retirar os dividendos, transformando-as em objetos de gozo mais sofisticado, em produtos rentáveis (...) e expô-las em fotos aos instintos curiosos de outros.
O negócio rende. Cada espiadela vinte escudos, diz-se. (...) Barato como quase tudo em Cabo Verde. (...)
Desisti de querer ver mais. É o que a maioria faz, por cobardia, vergonha e secretos desejos que as coisas ruins deixem de acontecer.” (Ibid, ibidem, pp. 58-59)


No primeiro conto, “Liberdade Adiada”, a partir de um comentário do narrador-personagem a respeito do desejo de conhecer outros ares, o terra-longismo típico do cabo-verdiano, “de como seria bom montar numa onda e partir rumo a outros destinos”, escuta o relato sofrido de uma mulher que tinha sido iniciada prematuramente no sexo: “Disseram-lhe que tinha perdido a virgindade, mas nunca chegou a saber o que aquilo era”, os vários filhos que nasciam:

“Aos vinte e três anos disseram-lhe que tinha o útero descaído. Bom seria que caísse de vez! Estava farta daquele bocado de si que ano após ano, enchia, inchava, desenchia e lhe atirava para os braços e para os cuidados mais um pedacinho de gente.” (Ibid, ibidem, p. 7)

Com uma vida monótona e de extrema dificuldade financeira análoga às dificuldades geográficas e climáticas do arquipélago, como a busca da água que leva a mulher ao desespero, a odiar os filhos e a cogitar o suicídio diante do barranco:

“Pensou em atirar a lata de água ao chão (...) confundir-se com aqueles caminhos que durante anos e mais anos lhe comiam a sola dos pés, lhe queimavam as veias, lhe roubavam as forças.
Imaginou os filhos que aguardavam e já deviam estar acordados. Os filhos que ela odiava. (...)
O barranco olhava-a, boca aberta, num sorriso irresistível, convidando-a para o encontro final. (...)
Atirar-se-ia pelo barranco abaixo. Não perdia nada. Aliás nunca perdeu nada. Nunca teve nada para perder.” (Ibid, ibidem, pp. 7-8)

Entretanto, o amor de mãe cria forças para superar as dificuldades e que viver é preciso:

“À borda do barranco, com a lata de água à cabeça e a saia batida pelo vento, pensou nos filhos e levou as mãos ao peito.
O que tinha a ver os filhos com o coração? Os filhos... Como ela os amava, Nossenhor!
Apressou-se a ir ao encontro deles. O mais novito devia estar a chamar por ela.
Correu deixando o barranco e o sonho de liberdade para trás.” (Ibid, ibidem, p. 8)

A preocupação com a violência descontrolada na sociedade cabo-verdiana não se restringe apenas às adolescentes, expande-se aos atos agressivos dos jovens e da violência contra as crianças. Nos contos “Para quando crianças de junho a junho?” e “Filho de deus nenhum”, a revolta e a indignação apossam-se do narrador ao relatar dois momentos de crueldade extrema. No primeiro conto citado, um grupo de adolescentes espanca um doente mental sob os olhares inertes dos adultos, enquanto no segundo conto é mostrada a mobilização de segmentos da sociedade contra a morte à dentada de um menino de três anos de idade praticada pela madrasta:

“De repente, uma rua larga, agora espreitada pela violência que transborda e agride os caminhantes. Uma dúzia. Talvez menos de uma dúzia de rapazes da quarta, que deviam ser crianças e que se haviam transformados em feras, perseguindo e atacando um doente mental. Livros e pastas esquecidos na valeta. Nas mãos, pedras. Nos gestos, ódio. Olhares frios. O homem no meio, indefeso, confuso, louco, impotente, cada vez mais agitado pelos uivos dos estudantes que nunca deveriam lançar outros sons que os da alegria e da esperança.” (Ibid, ibidem, p. 28)

“Homens e mulheres enfurecidos atacam a cadeia onde se encontra detida a assassina do pequeno Lizandro, de três anos, morto à dentada. (...) O pequeno Lizandro não resistiu às mordeduras e pancadas da madrasta. (...) Não conheceu alegrias. Para ele, apenas tristezas que o seu corpo cedo recusou.” (Ibid, ibidem, pp. 53-54)

Nos dois contos a violência urbana e a insensibilidade da sociedade estão presentes. Problemas que ocorreram em Cabo Verde, mas poderiam ter acontecido e acontecem em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. É a violência causada por um sistema neoliberal que exclui e oprime as classes menos favorecidas, não dá oportunidade para os jovens que ficam impossibilitados de realizar seus sonhos. Famílias desestruturadas que vivem à beira da miséria, sem perspectivas, sem nada. Apenas indiferença e desencanto. Tempos amargos como o jovem que liderou o espancamento ao doente mental, jovem que reclama a ausência da figura paterna, o vazio da vida:

“‘... Se fosse meu pai, eu não teria pena... Se ele morresse, problema dele... Se eu gosto do meu pai? Se você o vir pergunte-lhe se ele gosta de mim, ou... se... se me conhece.’
Nas últimas palavras um soluço abandonado. Silêncio no grupo. Pedras que caem das mãos. Bando que se desfaz.
E quando o miúdo chefe se mexe e retoma o caminho para casa, arrastando os pés, não há crueldade nos seus olhos. Apenas uma criança amarga que havia parido prematuramente um homem. Desencantado.” (Ibid, ibidem, p. 29)

A sensação de impotência é apontada pela autora, que manifesta sua perplexidade com o crescimento e vulgarização da violência, levando-a a questionar o caráter brando, ameno e feliz do povo cabo-verdiano exaltado por teóricos como Gabriel Mariano, que nos anos 1950 dizia “a sua morabeza; o seu feitio hospitaleiro,de uma hospitalidade amorosa, integral, sem reservas; a sua franqueza, a sua liberalidade ingênua” (MARIANO, 1991, p. 77). Tal posição idealizada sobre o cabo-verdiano, fundamental em um momento de afirmação da cabo-verdianidade em plena ditadura salazarista, não é aceita pela narradora-personagem que procura explicações nas características geográficas do arquipélago diante da barbárie. Questionamentos confusos de um ser que faz da indignação a mola propulsora para não aceitar a situação vigente:

“Aparentemente revoltamo-nos com tudo, desde o aumento dos preços dos bilhetes do cinema, à morte, à dentada, do Lizandro, no Sal, mas vamo-nos habituando, docemente, nos habituando a casos semelhantes que se multiplicam. E vamos perdendo o sentido da tragédia e da relatividade dos crimes.
A sensibilidade que nos caracterizava, existia mesmo? (...)
Éramos um povo de brandos costumes. (...)
Na normalidade do quotidiano a violência ganha espaço e afirma-se. Alguns defendem que a nossa dureza vem das rochas, da fome e das secas. Outros encaixam-na na escravatura.
E vamos fabricando teorias para justificar a insensibilidade e o ser cruel que existem em nós. Em todos nós.” (Ibid, ibidem, pp. 53-54)


A violência atinge os lares, destrói a harmonia do casal que incompreensivelmente permanece junto após anos de brigas e desentendimentos, “num desafio permanente à vida, à morte, ao direito de viver” (p. 21), levando a mulher a assassinar o marido. É a denúncia do conto “Foram as dores que o mataram”. A autora trata de outro problema universal, a violência doméstica. Só que no caso relatado, a mulher rebela-se contra as pancadas e abusos do seu corpo que dilaceraram a sua vida, o seu amor, a sua esperança:

“Via-o partir e ali ficava horas e dias à espera de que as coisas iriam mudar. Nesse dia não lembraria mais os tempos duros, os paus de pedra que me roíam e me desgastavam as entranhas. Mas para mim, não voltava nunca. Apenas para pedaços do meu corpo que esquecia logo. (...)
Ele matou-se. Criou um espaço onde coabitavam a violência, a destruição, a miséria, o animalesco. E nós.
Deu-me as armas e fez-me assassina.” (Ibid, ibidem, p. 22)

No corpus literário cabo-verdiano o espaço físico do arquipélago marca sua presença, sendo a insularidade um dos seus aspectos mais representativos. Em palestra sobre a identidade cultural cabo-verdiana, David Hopffer Almada afirma que:

“A insularidade, dado o caráter arquipelágico das ilhas, circundadas por ar e mar, criando no espírito ilhéu o eterno dilema: ‘querer partir e ter que ficar’ e/ou ‘ter que partir e querer ficar’, a base do espírito evasionista e anti-evasionista tão cantado na literatura cabo-verdiana.” (ALMADA, 1989, p. 65)

Em razão das condições adversas da geografia, clima, desemprego e miséria o ilhéu convive com este impasse: ter que abandonar sua terra, conflitando os sentimentos de evasão e anti-evasão. O escritor e ensaísta Gabriel Mariano aprofunda um pouco mais a questão ao demonstrar o quanto é doloroso para o cabo-verdiano abandonar sua terra:

“É sabido que o isolamento provoca ou excita a ânsia de convivência. (...) a temática da ‘hora di bai’ ou da evasão não são mais do que a contra-prova do desejo de convívio, não são mais do que expressões de quanto é doloroso para o crioulo o corte de raízes, a interrupção do diálogo, a fuga do convívio familiar. (...) Querendo ficar, mas também querendo partir. (...) partindo, mas subordinando a partida ao regresso; não se desprendendo nunca em absoluto do seu solo nativo” (MARIANO, 1991, p. 77)

A insularidade atinge as relações amorosas, demarca os destinos das pessoas. A interrupção do amor é explorada por Dina Salústio no conto “Uma viagem de saudades”. Neste, a autora inverte a situação de despedida, porque a diáspora tem preponderância masculina, ao narrar a partida de uma adolescente que parte da ilha Brava aos dezessete anos, deixando o seu amor, contudo comprometendo-se em retornar brevemente:

“Ela saíra aos dezassete anos, trinta anos atrás. Deixou noivo e a promessa de emigrarem juntos para a América logo que voltasse da viagem que duraria três meses. Ia conhecer o pai, que por causa de uma hipótese de traição tinha jurado nunca mais voltar à Ilha Brava.” (SALÚSTIO, 1999, p. 19)

Após trinta anos, a mulher retorna com a esperança de encontrar o seu antigo amor adolescente. A narradora-personagem apenas escuta as experiências vivenciadas pela mulher no estrangeiro, o desejo de retomar a relação interrompida. Ela não emite opinião para não decepcioná-la, apesar de saber que o homem descrito não corresponde ao aspecto físico atual:

“Voltava agora. Intacta. Para casar com o primeiro namorado, moço bonito, branco e de cabelo fino (...) Voltava e nunca mais, em nome de coisa nenhuma se separariam.
Contou-me todos os sonhos da sua juventude, os segredos, os jogos partilhados com o noivo, as esperanças e as certezas. (...)
Disse-me o nome do homem e teve que o repetir umas duas vezes para eu o ligar à pessoa que conhecia, atarracado pelos anos e pelas gorduras, careca, avermelhado pelo grogue. (...)
Ela casara em França, foi feliz, foi infeliz, viveu e morreu como todos nós nesses anos todos; mas era como se o tempo lhe tivesse poupado o coração; como se a esperança não tivesse sofrido um lanho que fosse, enquanto estivera ausente.
Podia ter-lhe dito que voltasse para a França, para junto da filha e dos netos e que esquecesse os antigos amores que só devem existir na lembrança guardada, mas fiquei calado e nem pude sorrir para ela e desejar-lhe sorte quando se levantou do caixote para embarcar no Furna a caminho da sua ilha e do seu homem.” (Ibid, ibidem, pp. 19-20)

É importante frisar a polêmica questão da insularidade no corpus literário cabo-verdiano, pois sempre foi representada nas letras do arquipélago, causando diversas rupturas no decorrer do século XX, por exemplo: entre a geração da revista Claridade e os pós-claridosos. A autora não foge do embate e tece algumas considerações a respeito:

“A literatura cabo-verdiana revela o cabo-verdiano, ele próprio, que só se compreende na insularidade. (...) E nesta viagem ao encontro da literatura, antes de qualquer outra visa, surge-nos o mar enorme e sem fim, ditando o rumo, traçando rotas, revelando distâncias, marcando o silêncio. Imposições que vão definir as relações entre a ilha e o ilhéu. (...) cheiros do mar que o isola do resto do mundo, (...) e em atitude quase mítica entrega-se desarmado e só à insularidade, relação e sentimentos que constituem um autêntico maná, matéria prima para a escrita. (...) já cheguei a pensar que o recurso à insularidade poderia ser uma forma do escritor se vingar dela.” (Apud: SALÚSTIO, 1998, Insularidade, pp. 33 e 34)

No conto “Please come back to me” a irrealização do amor dar-se de forma inusitada. Novamente, o aspecto insular faz-se presente na narração da relação amorosa de uma mulher por um estrangeiro e a dificuldade de comunicação entre o casal, pois esbarram na barreira da língua:

“Devo confessar que sou dura para a aprendizagem de línguas e do inglês apenas sabia quatro palavras e o meu amigo John que é também fraco de idiomas, igualmente sabia outras quatro em português, e o nosso relacionamento era apenas silêncios e ternuras.” (Ibid, ibidem, p. 51)

É a partir da ausência do amor vivenciado por esta mulher, que recorremos a Roland Barthes, em “Fragmentos de um discurso amoroso”:

“Ora, só há ausência do outro:é o outro que parte, sou eu que fico. O outro vive em eterno estado de partida, de viagem. Ele é, por vocação, migrador, quanto a mim, que amo, sou por vocação inversa, sedentário, imóvel, disponível, à espera, fincado no lugar , não resgatado como um embrulho num canto qualquer da estação. A ausência amorosa só tem um sentido, e só pode ser dita a partir de quem fica – e não de quem parte. (...) Historicamente, o discurso da ausência é sustentado pela Mulher: a Mulher é sedentária, o Homem é caçador, viajante; a Mulher é fiel (ela espera), o Homem é conquistador (navega e aborda). É a Mulher que dá forma à ausência.” (BARTHES, 1977, p. 27)

Retomando o conto, ao fazer um pedido ao companheiro no seu parco inglês, o estrangeiro espanta-se com a solicitação e ela com a reação dele, o que levou ao fim do relacionamento. Sem compreender o sucedido, pede explicação a um amigo que revela o mal entendido. A partir daí, entra em um curso de inglês, mas já é tarde para uma reconciliação com o amante estrangeiro, porque este já não se encontra mais na ilha:

“Virei-me para o meu companheiro e, no inglês balbuciante que já ousava, pedi-lhe que me abraçasse. (...)
Ao meu pedido, John interrompeu o percurso de um pensamento que me desenhava o corpo, olhou-me espantado como se me estranhasse e quando lhe repeti ‘abraça-me’, (...) começou a bater-me, a princípio suave, muito suavemente, aumentando depois de intensidade e de fúria (...).
Por fim deixei de lhe suplicar que parasse, em português, claro, para apenas ser o momento que vivia.
Depois, sem Lionel, Hello ou pancadas; sem amor, friozinho e sem nada vi o John levantar-se, olhar para mim de modo incompreensível e sair.
Passados dias, ainda confusa, contei a um amigo comum o que acontecera entre nós (...).
Fez uma cara desconsolada, chamou-me burra e explicou-me que em vez de dizer ‘abraça-me’ tinha dito ‘bate-me’(...).
(...) decidi que ia aprender inglês, custasse o que custasse, para poder entender-me com ele (...) inscrevi-me num curso intensivo de inglês e com muita dificuldade, ao fim de cinco meses, aprendi mais cinco palavras ‘Please come back to me’.
Entretanto rebentou a guerra do Golfo e perdi o contato com o Koweit e com o John. Odiei Saddam, o poder e a paixão e soube que nunca mais iria poder dizer-lhe: Por favor, volta para mim.” (SALÚSTIO, 1999, pp. 51-52)

A vida sem maiores perspectivas de uma prostituta é retratada em “Um ilegítimo desejo”. Como muitos navios estrangeiros aportam nas ilhas de Cabo Verde, a prostituição é o caminho encontrado por algumas mulheres para sobreviver. Nha Djina, ou apenas Djina, era saudosa desses amores de porto, amava um francês que nunca mais o viu:

“Um dia ansiou pela volta do francês que colocou na mesa de cabeceira de pinho, em cima dos dólares franceses, um sabonete verde que cheirava a encontro suaves, palavras doces, análises ternas e urgências várias.
O francês não voltou, nem o cheiro e a cor do sabonete.” (Ibid, ibidem, p. 36)

O conto narra as desventuras que tal profissão pode trazer às mulheres que se encontram indefesas diante das vontades e desejos sádicos. Uma vez expôs a um cliente o medo que tinha de cemitérios. O cliente pagou-a e forçou-a a entrar, como não conseguiu superar seu medo, apanhou e perdeu o dinheiro:

“Um dia, distraída, falou do seu medo de entrar no cemitério a um cliente que, sádico, a troco de mais uns trocados, a obrigara a ir com ele até... só até a entrada.
A caveira da porta arrepiou-a e, apesar do dinheiro se ter triplicado, não conseguiu coragem com o desempenho pretendido. Preferiu os bofetões e insultos que apanhou sem refilar. Preferiu ficar também sem a renda da casa. Pelo menos por aquela noite.” (Ibid, ibidem, p. 37)

Certo dia, a vida sofrida de Djina chega ao fim e deixa para seu sobrinho a tarefa de cumprir o seu último desejo, uma música, mas não a morna cabo-verdiana, mas sim algo que lembre o seu amor insular, que represente, talvez, o único momento de alento em sua vida:

“Um dia a esquina acordou sem ela.
No ar, no único gemido, o seu testamento: – Música a acompanhá-la ao cemitério – o seu último e ilegítimo desejo.
O sobrinho (...) ao décimo dia o peito minguado encheu de esperança: um senhor e seu violino choravam na campa de alguém . Raúl arranjou coragem e pediu-lhe, quase soluçando, que tocasse uma música para tia Djina. Uma só. Não a clássica morna hora di bai, mas uma canção francesa que falasse de amor – com todo o respeito, senhor – soluçou o sobrinho. (...)
Djina sorriu no outro mundo e descansou para sempre ao lado de um anjo que falava francês.” (Ibid, ibidem, pp.37-38)

A condição marginalizada da mulher inquieta a narradora-personagem em “Álcool na noite”. No conto, o estado despudorado, obsceno e agressivo de duas mulheres bêbadas que choram suas mágoas e revoltas enquanto cantam uma morna, assustam a narradora-personagem que não compreende o comportamento de ambas e o seu próprio:

“(...) De lá das bandas do cemitério uma voz canta uma morna. Tudo normal se a voz não parecesse sair dos intestinos de algum bicho em vez de uma garganta humana, por muito desafinada que fosse. (...) Aliás, eram as vozes de duas mulheres. A segunda faz coro com obscenidades e a desarmonia, o desleixo transparecido e o despudor agridem os ouvidos. Há um sentimento incomportável nas palavras quotidianas. Vêm-se aproximando. E estão bêbadas. Depois um palavrão. Talvez o eco de uma topada. E outro. E gargalhadas. Não consegui entender a felicidade dos risos debochados. Mas haveria mesmo felicidade? Quem me encomendou o sermão? Sinto raiva. (...)” (Ibid, ibidem, p. 56)

A deplorável situação das mulheres agride a narradora-personagem que se impressiona ainda mais com os maus tratos dados à filha de uma das mulheres. Tamanha amargura de tal passagem aumenta a sua angústia, a crise instala-se diante de vidas desperdiçadas, e pensa em um problema universal da condição feminina:

“– Mamã, és tu mamã? – Angústia e alívio na filha que encontra a mãe.
– Que mania essa de andares atrás de mim feito cachorro? Qualquer dia ainda te desfaço. – Mais insultos. (...)
A noite não tinha mais magia. Acho que nem estrelas. Apenas uma ferida num sentimento antigo de ver nas mulheres, para além de tudo, seres diferentes. Porque um estatuto de pureza para elas? Porque esta incompreensão para sua embriaguês? Porque o preconceito contra as fraquezas que não são as minhas? E vou pensando, enquanto desço as escadas.
E os passos falam vergonha, humilhação e revolta. E pena.” (Ibid, ibidem, pp. 56-57)

Dina Salústio narra outro problema universal: a crise de uma mulher de meia-idade é abordada em “O que é isso de liberdade”. Trata-se de uma mulher recém-separada após vinte anos de relacionamento. Agora, aos quarenta anos de idade, busca adaptar-se à nova vida sem o companheiro, mesmo tendo-o ainda na memória. O tempo cronometrado do início da separação é recebido com ironia pela narradora-personagem; a mulher procura mudar o comportamento, amigas, tudo na tentativa de recomeçar:

“Estou mais magra, vês? Perdi doze quilos. Foi o divórcio, sabes? Há treze meses e onze dias que me divorciei. Agora não estou a sofrer, mas a princípio custou muito. Foram vinte anos juntos...
(...) mentalmente concordei com um amigo que diz que ser-se inteligente é tirar proveito dos desaires. Há mil anos que o não vejo. Mil anos e sete horas.
(...) pensei para mim que afinal ela ainda não estava divorciada, porque entre as várias fases de um divórcio há duas absolutamente decisivas: o veredicto e a conscientização de que a cena acabou. Para ela, a última ainda não chegara.
Tem quarenta anos, imagina-se com vinte e só anda com miúdas de dezassete. Vê lá o disparate.” (Ibid, ibidem, pp. 60-61)

Como uma nau sem rumo, a mulher tenta convencer-se de que está melhor. Contudo, o recomeço é dolorido, as lembranças do ex-marido são constantes, quer crer na sensação de liberdade adquirida rompendo antigas castrações. Porém a metáfora do barulho do comboio demonstra que ainda está presa ao passado, seu discurso não é escutado:

“(...) Estou livre e faço tudo o que quero sem ter que dar satisfações a ninguém, sem medos, sem culpas. (...)
... ouço as músicas que eu gosto e abro as janelas e deixo entrar o sol e o frio. Ele detestava abrir janelas e eu fazia-lhe a vontade. Para o poupar, sabes? Durante vinte anos. Agora abro as janelas. Agora sou livre.
O barulho do comboio que chegava abafou a sua declaração de liberdade.
Hoje, dias depois do nosso encontro, penso nela. Terá dançado na passagem de ano ou apenas abriu a janela para imaginar a vida lá fora?” (Ibid, ibidem, p.61)

A sensibilidade em lidar com os problemas femininos e discorrer sobre eles prendem a atenção do leitor em “Mornas eram as noites”. Como boa ouvinte e excelente narradora, valendo-se do lirismo imposto aos textos a encantar as situações cotidianas. O amor, a dificuldade em lidar com o ser amado e as crises existenciais são discutidos abertamente em “O conhecimento em debate”:
“(...) - O conhecimento destrói a fantasia, o vocabulário irracional e os sentimentos. Amor é ingenuidade, é vulnerabilidade, é incerteza. É ficção. Conhecimento é transparência, nudez e crueza e actua sobre o estímulo esvaziando-o, reduzindo-o ao nada existente antes do desejo.
- É cruel dissecar a coisa do amor. Penso que o conhecimento dá a possibilidade de não se violentar o outro.
- Engano. Enquanto há amor ninguém violenta ninguém para além do que a normalidade exige. E isso tem outro nome. (...)
Um amigo disse-me que o conhecimento dá nojo – disse uma voz vinda de um interior sofrido.
Nojo? É isso. Nojo é a palavra certa. Quando nos conhecemos uns aos outros, sentimos nojo porque o tempo todo fingimos o que não somos, o que não podemos ser, o que desejaríamos ser e o conhecimento mostra a realidade, as tripas fora, a pequenês. É por isso que querer conhecer alguém é querer violentá-lo, despir-lhe a armadura, exibir-lhe as cicatrizes, o intestino.” (Ibid, ibidem, p. 46)


Já em “Conversa de comadres”, a cumplicidade feminina dá a tônica do conto. Um grupo de amigas preocupa-se com o estado arredio, porém feliz de uma companheira, exige que compartilhe o que está sentindo, o que não é aceito por ela:

"Era uma verdade grande, bonita e tão minha que a escondia de toda a gente, incluindo os compadres e comadres com quem compartilho os segredos mais secretos. (...)
Alguns dias depois, à minha volta, comecei a notar uns cochichos, uns olhares desastrados e até certas reservas nos mais próximos. (...)
Como estava lá alguém que desconhece o tacto social, aliás despreza tudo o que é tacto, ao ver-me disse:
- Estamos preocupadas, porque já não és mais a mesma e damos conta que algo de grave se passa contigo. (...)
acordei. Afinal a lengalenga era comigo e procurei logo cortar as suas preocupações, afirmando e jurando que estava tudo bem e que não havia crise.
Muito bem até. Isso estamos a ver e que aqui é que está o problema – Sempre fomos todas uma por uma e uma por todas e agora com o teu alheamento, sentimo-nos penalizadas, porque sem dúvida, e isto é facto assente, tu estás feliz e nós resolvemos que devemos participar. (...)
Elas queriam participar para se sentirem vivas, concluí rapidamente, e, dispus-me a contar-lhes algo da minha felicidade." (Ibid, ibidem, pp. 83-84)

O clima adverso de Cabo Verde a flagelar o crioulo é o tema de a “Traição do tempo”. A escassez de chuva é um sério problema no arquipélago, como lembra a Professora Simone Caputo em suas aulas, Cabo Verde tem 360 dias de sol ao ano. Durante muitas décadas o clima hostil do país foi acusado pelo sofrimento do cabo-verdiano, mas Dina Salústio renega tal acomodação e questiona o fatalismo da ausência das águas do céu e a conseqüente seca:

"Não sei se pescado no discurso oficial, se por conta própria , a verdade é que a jornalista disse ao longo da reportagem que os problemas de São Nicolau e, quiçá, os problemas de Cabo Verde só se resolverão com as chuvas. Possivelmente nem terá dito isso e eu ouvi mal, ainda pensando na notícia anterior. Mas, se ela fez de facto a afirmação acima e se referia ao desemprego sem fim, à falta de bens e a inúmeras outras situações ligadas à pobreza, então eu não estou de acordo porque seria condenar desnecessariamente todo um povo à dependência de uma incógnita que há muito deixou de o ser para tomar corpo de uma certeza. Somos um país seco, de seca garantida. Se ela se referia aos humores do crioulo, então sim, tem razão, porque, cá entre nós, pensando como eu penso, só poderia estar certa. (...)" (Ibid, ibidem, p. 72)

Salústio ataca a postura conformista que acusa a seca como a desgraça maior, para isso aponta os problemas sociais e econômicos que revoltam o ilhéu. Rompe com a antiga afirmação de que o cabo-verdiano seria um ser pacato e benevolente como justificava Gabriel Mariano nos seus ensaios dos anos 1950. Esclarece que o crioulo rebela-se contra as agruras do tempo, com as chuvas que não vêm na estação esperada e transfere sua indignação para outras situações ou pessoas:

"O crioulo, a partir de Junho, começa a incubar dentro de si um ser ruim, desconfiado, medroso, inseguro. (...) resmungando por tudo e nada sobre a ingratidão das chuvas, a maldição das ilhas, os pecados cometidos. Traído, porque as nuvens maninhas mais uma vez cumpriram o seu destino de negar à terra o consolo da água, o crioulo enraivece-se contra tudo o que o rodeia. Torna-se insuportável de tão intolerante, tão feio, tão desamado. (...)
Eu fujo dos meus patrícios nos meses das águas frustradas. (...)" (Ibid, ibidem, pp. 72-73)

Como já mencionamos anteriormente, as condições climáticas ruins, os limites geográficos impostos pela insularidade participam ativamente da literatura do arquipélago, o que é constatado em diversos autores. O desejo de evasão aparece diante de tantos transtornos e dificuldades às quais o crioulo é obrigado a suportar, e a narradora busca a fuga, no sonho o lugar da utopia:

"Eu fujo de mim. (...)
Afasto-me e, no engano do sonho que me ensinaram a sonhar, vejo uma rua, uma aldeia, uma ilha, todas as ilhas do regadas, verdes de chuva clara, com gargalhadas de chuva na boca dos meninos, com risos de chuva nos olhos dos homens, com o perfume da chuva nos corpos das mulheres.
Tudo fica calmo.
Depois, recuso acordar, temendo enfrentar a cidade seca, as gentes secas, os amores secos." (Ibid, ibidem, p. 73)

A crise econômica e as adversidades por que passam a população também são denunciados nos contos de Dina. A exclusão social, os sonhos que não se realizam, os pequenos desejos de consumo de crianças à beira da miséria são mostrados nos textos que expõem a indiferença da sociedade. Indiferença não compartilhada pela autora no conto “Natal”, em que descreve com sensibilidade a entrada de um pequeno grupo de crianças humildes, fascinadas, ao entrar em uma loja no período das festas natalinas:

"Três mocinhos semi-esfarrapados entram. Não têm pressa. Não pedem para serem atendidos. Os olhitos passam de um brinquedo para o outro e neles vejo o mesmo brilho dos olhos dos meus filhos.
Timidamente, quando não se sentem observados pela vendedora, passam a mão – um dedo só – pela carroçaria de um camião. Estão mudos, num mundo à parte e nem sequer trocam olhares uns com os outros. Cada um vivendo o sonho de uma viagem, aventura de uma corrida." (Ibid, ibidem, p. 68)

Quando são percebidos na loja pelos clientes, explode o preconceito, insatisfeitos com a presença de moribundos, autênticos representantes do refugo humano citado pelo filósofo contemporâneo Zigmuth Baumann, pequenos ladrões que ameaçam as compras, suas consciências tranqüilas que não podem ter contato com a miséria:

“Um dos miúdos distrai-se e solta uma exclamação. Os clientes olham para ele, para eles e para vendedora e apertam com mais força os embrulhinhos de Natal. E a raiva e as frustrações que a contabilidade provoca soltam-se e aparecem nos olhos e nos murmúrios. São gente de bem que não podem aceitar a vadiagem que os fatinhos rotos deixam perceber.” (Ibid, ibidem, p. 69)

Tal situação leva a autora a questionar a hipocrisia da festa natalina, do consumo exacerbado ao qual as pessoas se sentem obrigadas a satisfazer, e a atitude tomada pelas crianças redimensiona o problema, porque estão acostumadas a enfrentar semelhantes situações e à margem da festa católica curtem “o seu Natal, tecido com olhares e imaginação: um Natal de espreita”.

“(...) o que os compradores queriam era que as lojas fechassem, que não houvesse coisas para comprar e que um decreto proibisse aquela mascarada toda. A sua consciência ficaria tranqüila, o orgulho salvo. Talvez o natal passasse a ser mais humano, mais de compromisso, porque não artificial.
Há um sorriso nos mocinhos que eu não percebo, como se não fizessem parte de nós. Como se fôssemos uns palhaços para os divertir. Ou quem sabe, uma certa nostalgia de não serem palhaços como nós.
Tranqüilamente saem, em busca de outras lojas de sonhos.” (Ibid, ibidem, p. 69)

Há espaço para as tradições crioulas nos contos de Dina Salústio. Em “A indústria dos tambores” apreendemos o conflito entre tradição e modernidade representado pela comunicação feita por tambores. Através dos sonhos uma personagem deseja recriar a tradição de sua ilha: do tambor como canal de informação. Pelo tambor, o renascer de antigos hábitos cabo-verdianos, tambor como intermediador de conflitos sociais, em sintonia com o canto do galo, ajudando a valorizar a comida local e comunicando breves assuntos entre as pessoas. O tambor como expressão destacada da cultura cabo-verdiana:

“... Sonhei um Cabo Verde despertado cada manhãzinha pelo som repicado do tambor, substituindo a horrenda música do programa radiofônico Bom dia Cabo Verde, abafando para sempre a inestética publicidade, rivalizando harmoniosamente com o cantar dos galos, o riso das galinhas, os motores, catchupa na frigideira, trapiches e computadores.
Sonhei que a tradição seria reposta e o jornal e a rádio não seriam os veículos monopolizadores das gostosas fofocas e mal dizeres e o tambor retomaria o seu tan tan para trazer e levar mensagens, mantenhas, recados, avisos, boas novas e também as más, porque infelizmente a vida é assim, Sr. Diretor.
Sonhei que o tambor voltaria a ser um complemento do aparelho judiciário e (meu Deus, como sonhei!) que cada indivíduo que ofendesse a moral, a sublime nobreza do parceiro, conhecido ou desconhecido, viria para a rua atrelado ao seu tambor e desdiria nas praças, nas ruas, nos largos, nos becos e avenidas o que houvera dito. (...)
‘... desdigue o que tenho digue, desdigue o que tenho digue sobre fulano ou beltrano.’” (Ibid, ibidem, pp. 48-49)

Até a atitude masculina é reavaliada no conto “Campeão de qualquer coisa”, em que o comportamento masculino é tratado por um prisma distante do lugar-comum e esteriotipado do homem. Apresentando um personagem discreto que não se vangloria de seus feitos, que não segue a tradição de poder comum aos homens, a autora redimensiona não só a masculinidade, mas também a postura feminina da narradora-personagem em relação ao homem, mostrando que novos caminhos podem ser trilhados na relação homem/mulher sendo apenas o que de fato são: homens ou mulheres.

"A noite ia a mais de meio. Grupo de homens e grupo de mulheres convenientemente estabelecidos. Eu fazia o protocolo e chegaste e como manda a praxe, fui-te passando um copo para as mãos e porque não te conhecia disse-te: os campeões das anedotas estão ao fundo, ao lado, os campeões da política internacional, à esquerda os do futebol, os do sexo, debaixo do abacateiro, os do copo, junto ao bar (...)
Espantado com o acolhimento (...) foi então que me disseste que não eras campeão de coisa nenhuma e nem sequer eras bom em qualquer coisa e que eras um tipo normal.
Não havia tristeza nas tuas palavras e, como pensei que um homem normal o mínimo que se devia sentir era triste pela revelação e porque já havia percorrido vários grupos onde cada um era melhor que todos e estava com uma espécie de raiva concentrada, disse-te não te preocupes, pois há um campo onde não precisas provar nada. Vai para debaixo do abateiro. (...) Conta as tuas fantasias e os teus fantasmas. Os teus e os dos outros, como coisa resolvida. Incarna os atores do hardcore. Inventa situações, viagens e encontros, princesas e prostitutas, virgens e lésbicas, homossexuais, mulheres casadas, ninfomaníacas, colegiais e o resto. Inventa. Inventa o mais que puderes. Faz como os outros. Dá nomes e moradas e não te preocupes porque não vão te julgar pela baixeza porque é prática aceite. (...) Mente. Mente muito. E sobretudo exagera. Exagera até o impossível. Vá. Campeão é assim.
Teimosamente dissste que não podias, que não querias fazer-te de atleta de façanhas tantas, porque eras adulto e há muito passaras os dezassete anos e que as tuas necessidades e os teus interesses eram outros e que as tuas fantasias eram as tuas parceiras e expô-las em público seria como veres-te ao avesso num grande écran. (...)
Ensinaram-nos que devíamos ser heróis de qualquer coisa. Exigem que façamos permanentemente exercícios de auto afirmação. Não nos educaram para corajosamente debatermos os nossos medos, falhas, hesitações, infernos. Apetrecharam-nos com o mito de super-machos e esperam que sejamos vencedores, fazendo-nos inimigos da própria maneira de estar, escamoteando a verdade, falseando as fronteiras. E porque somos apenas normais e temos vergonha da nossa normalidade, passamos o tempo todo a pensar numa roupagem que impressione. (...)
Alguém chamou-me porque o meu carro estava impedindo a saída. A conversa não podia ser retomada. Hoje lembrei-me de ti e pensei como podemos ser tão bonitos quando conseguimos ser nós próprios: homens ou mulheres." (Ibid, ibidem, pp. 13-15)

E é assim, inferindo diversos aspectos da condição feminina, “de mulher que se pensa e se escreve, procurando, além de expressar a intimidade de uma voz, dar voz a todas as mulheres” (GOMES, Ecos... p. 11) ora tratando um drama local, ora universalizando os sentimentos da mulher cabo-verdiana, lidando com problemas masculinos, dialogando com a insularidade e o eterno dilema evasão e anti-evasão, com os flagelos da seca e as características geográficas do arquipélago são alguns dos condutores da prazerosa leitura das curtas, porém belas e surpreendentes, narrativas de “Mornas eram as noites”.

Os contos deste delicado livro vão muito além da modesta declaração da autora que afirma: “Sou uma mulher que escreve umas coisas”. Contos que celebram o ato de narrar, distinguem Dina Salústio como uma voz marcante da literatura de autoria feminina de seu país e a equiparam aos grandes nomes das literaturas africanas de língua portuguesa. São contos que falam, sim, de Cabo Verde, mas, ultrapassam as fronteiras geográficas, e, sobretudo, nos fazem refletir sobre a condição humana:

“Se eu algum dia estive presa à cabo-verdianidade, acho que já ultrapassei esta fase (...) Ser cabo-verdiano é assumir um lado bonito, mas assumir também todos os lados horríveis (...) É uma sociedade de stress, de conflitos, porque somos de raças diferentes e pobres, pelos ciclos de fome. Mas eu não acho que sejamos diferentes, acho que todas as outras gentes têm os mesmos lados. Não tenho tido necessidade de afirma-me como cabo-verdiana. (...) As nacionalidades são defesas que nos afastam de outras pessoas.” (Apud: Sepúlveda, 2000, p. 123)


BIBLIOGRAFIA:
ALMADA, David Hopffer. A identidade cultural cabo-verdiana. In: Caboverdianidade & Tropicalismo – 2ª Jornada de Tropicologia. Recife: Massangana, 1992.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Franscico Alves, 1986.

BAUMANN, Zigmuth. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Magia, Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas – Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1985.

GOMES, Simone Caputo. Mulher com paisagem ao fundo: Dina Salústio apresenta Cabo Verde. In: SEPÚLVEDA, M. C. & SALGADO, M. T. (ORGs). África & Brasil: letras em laços. Rio de Janeiro: Atlântica, 2000.

MARIANO, GABRIEL. Mestiçagem: seu papel na formação da sociedade caboverdeana. In: Cultura Caboverdeana – ensaios. Coleção Palavra Africana. Lisboa: Vega, 1991.

SALÚSTIO, Dina. Mornas eram as noites. Colecção Lusófona. Lisboa: Camões, 1999.

SALÚSTIO, Dina. Insularidade na literatura cabo-verdiana. In: Cabo Verde: insularidade e literatura. Paris: Karthala, 1998. p. 33-34.

INTERNET:
GOMES, Simone Caputo. Ecos da caboverdianidade: Literatura e Música no Arquipélago. Artigo acessado em
www.simonecaputogomes.com no dia 28/01/2008.

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