sábado, 18 de setembro de 2010

João Vário – Exemplos - Exemplo Coevo, por Ricardo Riso


João Vário – Exemplos - Exemplo Coevo
Por Ricardo Riso
Texto publicado no semanário cabo-verdiano A Nação, nº 159, 16/09/2010, p. 16.

Lançado em 1998 pela Spleen Edições, Exemplos - Exemplo Coevo, de João Vário, é o 9º volume de uma série de 12 exemplos que, segundo o autor em nota introdutória, “narram, ou melhor, tentam narrar o homem na sua exemplar singularidade”.

João Vário é o pseudónimo de maior complexidade de João Manuel Varela, também criador de T. T. Tiofe e G. T. Didial. As profundas indagações de cariz ontológico-metafísico, permeadas por citações de cânones da poesia universal em longos poemas narrativos, para além do intertexto com a Bíblia e da música barroca europeia, valeram à obra de Vário a ostracização literária (assim definida por José Luis Hopffer Almada) por parte da crítica especializada em virtude dos exemplos surgirem no cantalutismo dos anos 1960.

Entretanto, sob a pena de T. T. Tiofe, as críticas são rebatidas na “Segunda Epístola ao meu irmão António” (TIOFE. O Primeiro e o Segundo Livro de Notcha. Mindelo: Edições Pequena Tiragem, 2001. p. 167): “Sirvo-me da cultura ocidental como duma arma miraculosa, como diria Cesaire, para elaborar a partir de coisas nossas, de raízes específicas, uma poesia de interpretação ontológica ou uma poesia cabo-verdiana de vigor novo (...)”

Esclarece ainda o autor na “Oitava Epístola ao meu irmão António” (TIOFE, 2001, p. 302): “Essa poesia ontológica surpreendeu muitos compatriotas ou não foi, simplesmente, aceite (...), espante que um país, como o nosso, com (...) uma história de múltiplas carências várias, tal como o próprio continente, não tenha visto de imediato (...) que tudo isso levaria a seu tempo a uma criação literária de índole ontológica, que poderia dar a impressão de nada ter a ver com o arquipélago, mas que, no entanto, estaria a ele ligado por essa reflexão assim suscitada. (...)” (TIOFE, 2001, p. 302-303).

Em Exemplo Coevo, dividido em 3 cantos, as indagações ontológicas são feitas a partir dos acontecimentos do ano de 1937, ano de nascimento do autor, e de como influenciaram a sua vida: “E as coisas aguardam a chegada da besta apocalíptica”. Um tempo perverso e indaga: “Não há século maior nem mais vil que este vigésimo. (...) Pois que se assiste a grandes criações/ - soluções para a vida e para a morte -,/ era para a morte ou para a vida/ que o homem se erguia/ sobre seus dois escassos pés?”.

Apesar de asseverar que “trata-se dum ano/ de grandes tribulações e de grandes penas”, o pessimismo domina o poeta diante dos fatos relatados, das obras de arte apresentadas e das conquistas das ciências ao longo do poema, além das constatações que ferem a verosimilhança: “Porque também é verosímel/ que vítimas sejam dos molares do homem/ que no meio da sua alma todas as coisas/ desta vida mastigam, patético óbolo/ a um deus desconhecido, vivido na inverosimilhança”, visto que “havíamos passados vários anos a ler os presságios/ e sabíamos que a perversão e o ódio, a humilhação e o desprezo,/ a delação e o homicídio se instalariam/ por muito tempo à cabeceira das vicissitudes dos dias”. É nesse “naufrágio das alternativas” no qual o poeta “aos seus contemporâneos lembre/ a perenidade do mal e a quase impotência/ da generosidade neste mundo”.

Somente o Belo para atenuar a conturbada época: “a beleza é a única unidade revelada”, “nesse ano de grandes infortúnios e de grandes obras (...) o mundo nunca desnudou tanto/ suas maniqueias raízes como em tal tempo”, pelo qual o poeta, desolado, afirma: “a verdade começou a ser uma infeliz inauguração, um incerto medicamento”. Resta ao poeta optar pela solidão “afinal que tudo mostra à bem-aventurança” em um mundo agônico. O mal vence, a agonia perdura na contemporaneidade, e vaticina: “com os homens esteve o poeta/ em fraqueza, em temor e em grande tremor”.

Sendo assim, infere-se a excelência da obra de João Vário que “há já alguns anos que muitos patrícios começaram a aceitar esse tipo de poesia, como a praticá-la. Em suma, mudou-se o paradigma” (TIOFE, 2001, p. 302). Para o melhor da poesia cabo-verdiana, diga-se.

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá meu caro. Gostei muito do texto. Parabéns e obrigado.

Wanasema disse...

Muito obrigado, prezado!