terça-feira, 12 de julho de 2011

Rinkel – poesia feminista moçambicana assaz corrosiva


Rinkel – poesia feminista moçambicana assaz corrosiva
Ricardo Riso
A independência de Moçambique em 1975 gerou inúmeras expectativas, dentre tantas, medidas que estimulassem a emancipação da mulher e o fim de posturas discriminatórias por parte dos homens. Entretanto, mudanças de comportamento em sociedades machistas não acontecem da noite para o dia, nesse sentido, podemos citar o exemplo do panorama literário moçambicano onde encontramos uma crassa hegemonia masculina após trinta e seis anos de independência.

Em razão disso, não devemos estranhar e sim olhar com atenção uma assumida poesia de intervenção social e em defesa intransigente da mulher como a da jovem poetisa Rinkel*, pseudônimo de Márcia dos Santos, em seu segundo livro, “Revelações”, sob a chancela da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), publicado no ano de 2006. Antes, a jovem havia lançado “Almas Gêmeas” também pela AEMO em 1998.

A poesia de Rinkel procura revelar as diversas maneiras de opressão que as mulheres são submetidas, da dificuldade de serem respeitadas e o encontro a um destino pré-determinado, sem sonhos: “Na procura da minha liberdade/ Encontrei a injustiça e o cativeiro// (...) Procurei novamente a minha liberdade/ Encontrei a realidade da vida a que estamos cativos/ Sem hipóteses de fuga” (p. 12).

O sujeito lírico busca desvelar as castrações submetidas às mulheres, possui a sensibilidade de apresentar os problemas coletivos, tornando a sua voz reveladora de sentidos encobertos por uma sociedade patriarcal: “Só os olhos do coração sabem/ O que vai dentro da alma de cada uma de nós,/ Mulheres (p. 18). O que a leva a escancarar as vidas de mulheres destruídas, de famílias dilaceradas por ‘companheiros’ irresponsáveis, descompromissados e ausentes, capazes de abandonar suas mulheres grávidas entregues à própria sorte como no sugestivo título do poema “Lei da Família Moçambicana”: “Barrigas grávidas/ De pais ausentes, infiéis, polígamos// Amantes/ Sem planos/ Sem promessas/ Sem esperanças/ Sem futuro// Apenas amantes” (p. 23). Assim como a crueldade feita com adolescentes vítimas de estupros, tendo seus sonhos esmagados por um homem cínico, certo da impunidade que o protege: “Seu corpo frágil não resistiu à brutalidade/ Sua inocência foi humilhada.// O vizinho questionado/ Afirma não saber de nada./ Não viu nada!/ Não fez nada!// Um novo amanhecer/ Maninha nunca mais foi cartar água/ Maninha tornou-se pó...” (p. 14).

Contra todas essas atrocidades que se perpetuam no cotidiano moçambicano, o sujeito lírico de Rinkel é rebelde e insubmisso diante dos preconceitos patriarcais predominantes na sociedade. Revolta-se e de forma avassaladora chama a atenção das mulheres para o destino cruel que as espera caso se mantenham inertes, e as convoca para a libertação de uma consciência feminina:

(...) Encara a realidade mulher!/ (...) Serás escrava do trabalho da tua própria casa,/ Não terminarás os estudos/ Serás amante de um barrigudo/ Teus filhos serão drogados// Não queres nada disso?/ Se não lutares para conquistares teus objetivos/ Vais acabar assim/ Por isso, minha irmã/ Mulher! Mãe!/ Vamos à luta!// Sem homens no comando,/ Sem ninguém dizendo que não conseguirás/ Apenas luta!/ Tu és capaz! A vitória é tua! (pp. 24-25)

O discurso é corrosivo, pois são gerações de mulheres humilhadas por seus companheiros, por isso a palavra contestatária firme e direta a tocar nos corações e mentes obliteradas. Apesar de ser uma voz inferiorizada que precisa lutar para se fazer ouvir, a persistência mantém-se, a perseverança continua acesa para iluminar um futuro sem as desigualdades da contemporaneidade: “Eu queria./ Queria muito./ Tanto mais que acreditei que iria conseguir!/ Enfim.../ Nem tudo se consegue.../ Mas continuo acreditando./ Ainda quero./ Quero bastante” (p. 17).

Perseverante em dias melhores, a poesia de Rinkel desconstrói imagens para ir ao encontro da paz: “É debaixo da ponte que eu quero viver. (...)// Estar debaixo da ponte significa ter entre os meus braços a felicidade./ É viver momentos inesquecíveis, é ter o mundo a meus pés./ É ter todo o amor existente só para mim” (p. 39). E ainda tem a sensibilidade intocada para dedicar poemas àquilo que a mulher possui de mais sagrado: o desejo de ser mãe. Em um lirismo comovente, esse sentimento revela-se com delicadeza e leveza: “És a poesia mais linda da minha vida!/ Meu ventre gerou o mundo, gerou o teu ser/ Eu tornei-me poeta da tua existência” (p. 33).

Como aborda diversos aspectos da mulher, o erotismo, o desejo de ser fêmea, de sentir prazer, de expor a sexualidade feminina sem amarras estão presentes nos poemas finais:

“Transpirada e molhada/ Sinto o peso do teu corpo sobre o meu/ Teu suor/ Meio doce, meio salgado/ Mistura-se com o odor másculo que sai de ti/ Meu corpo não agüenta mais/ Sinto que o teu corpo também não/ E a explosão surge/ Simultânea/ Entre gemidos e sussurros/ Totalmente desorientados/ Sinto o amor sendo derramado em mim/ E o mel transbordando do meu favo” (p. 45)

Poesia de denúncia, testemunha de seu tempo a mostrar a desgraça das enchentes em “Menina Cheia”; a exaltar sua cidade, Maputo, apresentando sua cartografia de “cidade cheia de encantos./ Cidade cheia de contrastes” (p. 8); de clamar o necessário sentimento pan-africano frente às mazelas que assolam o continente, relembrando célebres poemas do passado como “Sangue Negro” de Noémia de Sousa, assim versa Rinkel: “Chora África minha/ Tuas lágrimas serão a salvação/ Do teu povo// Tuas lágrimas serão a água e a chuva que/ O povo tanto precisa// Chora África minha/ Porque eu sou África/ E eu também choro” (p. 7).

Pan-africanismo ainda urgente para unir as nações fragilizadas, para que não se comentam os erros do passado, conforme assinala o pensador Joseph Ki-Zerbo:

Na África, cada vez que se tentou fazer uma reforma micronacional de um sistema, houve um fracasso. Todas as tentativas micronacionais de libertação da África (...) fracassaram, em grande parte, porque foram solitárias e não solidárias. Penso que se deveria colocar como postulado a fórmula seguinte: a libertação da África será pan-africana, ou não será. (KI-ZERBO: 2006, p. 35-36)

Pode-se argumentar que na poesia de Rinkel as questões de gênero em uma combatividade exacerbada, ou algum anacronismo na defesa pan-africana, ou que a boa consciência denunciando os problemas sociais se sobrepõe a um melhor conseguimento estético no plano da linguagem, com ressonâncias na ética direta da poesia de combate dos tempos de exaltação da pátria moçambicana. Entretanto, em nosso entendimento, e seguindo o pensamento do ensaísta brasileiro Alfredo Bosi, constatamos que

a poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos (...). Resiste ao contínuo harmonioso pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia. Quer refazendo zonas sagradas que o sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância, Eros); quer desfazendo o sentido do presente em nome de uma liberação futura, o ser da poesia contradiz o ser dos discursos correntes (BOSI, 1977, p. 146).

Por isso, inferimos como de extrema urgência uma poesia comprometida com questões de gênero, escancarando os preconceitos que as mulheres ainda sofrem na sociedade contemporânea, e assumimos os valores éticos, sociais e políticos constantes na poesia de Rinkel como critérios valorosos para nossa análise. Revelações de uma voz poética que incomoda a ordem estabelecida, voz poética assumidamente feminista, assaz corrosiva, ainda que incipiente em alguns momentos, mas imprescindível no atual panorama poético moçambicano.

* Márcia dos Santos nasceu em Inhambane, em 1977. Mestre em Linguística Aplicada e docente universitária. Coordenou a página juvenil do jornal “Savana”.

BIBLIOGRAFIA:

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1977.

KI-ZERBO, Joseph. Para quando África? – Entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.

RINKEL. Revelações. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 2006.

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