terça-feira, 11 de novembro de 2008

Moçambique - literatura e artes plásticas

Ontem, preparei uma apresentação para a disciplina de Estágio de um tema que muito me agrada: as letras e telas moçambicanas. A partir da diversificada produção de Mia Couto, com trechos de romances, contos e crônicas tracei diálogos com as produções dos artistas plásticos Malangatana Valente, Roberto Chichorro e Naguib Abdula.

Comecei com a crônica de Mia Couto, “Perguntas à Língua Portuguesa”. Nesta, apresentei sua postura em relação ao uso da oratura na escrita, os neologismos e suas brincriações, e a emancipação de um falar moçambicano independente à matriz européia.

A seguir, selecionei um trecho inicial de “Terra Sonâmbula” e apontei a característica expressionista do romance, ambientado em tempos de guerra, com intensa presença de cores como o vermelho e com a fragmentação da família, das perdas da raízes. Daí a comparação com a tela “Onde está a minha mãe, meus irmãos e todos os outros?” de Malangatana. Ambas, tratam de uma busca incessante das raízes perdidas em tempos de horror e inconseqüências desestabilizadoras da sensibilidade humana.

Depois, li trechos da crônica “O Gênio Ingênuo" de Mia Couto a respeito da obra de Malangatana Valente. Basicamente, comentei características formais e temáticas da pintura do pintor da Matalana como o surrealismo e a presença dos sonhos em “Monstros grandes comendo monstros pequenos”, explorando a representação de seres do imaginário da etnia ronga como os shetanis, lumpfanas, xicuembos etc., as cores vibrantes, os excessivos elementos asfixiados no espaço da superfície pintada e a analogia com a situação moçambicana perante o colonialismo português, o sincretismo religioso em “O feitiço”, e a planaridade da tela numa relação próxima com a técnica do all over de Jackson Pollock.

Ao usar o conto “O cego Estrelinho” de “Estórias Abensonhadas”, atentei-me às novas formas de olhar engessadas em meio à voracidade da guerra, expressas no conto quando o cego Estrelinho conduz sua guia além dos vários firmamentos com as pinturas oníricas de Roberto Chichorro. Destaquei o lirismo da narrativa coutiana acompanhado pelas cores e temas expostos por Chichorro. O predomínio da cor azul e a analogia com o infinito, a liberdade e a imaginação criadora, segundo Gaston Bachelard; os olhos também na cor azul, sendo o surrealismo onírico citado por Carmen L. T. Secco, os olhos dos sonhos a imaginar uma vida sem as atrocidades reinantes dilaceradoras da paz entre os homens. Além das alegorias de pássaros, do ar como elemento da natureza, representando os vôos da imaginação e da liberdade.

Ainda com Mia e Chichorro, aproveitei para mostrar dois momentos de esperança na história recente de Moçambique. O primeiro está retratado na tela “sonhar amanhã sem lágrimas”, onde Chichorro transmite toda a euforia do momento de nascimento de Moçambique independente com destaque para a representação de duas personagens lendo livros. Lembro que o idioma português, ou seja, a língua do colonizador, foi utilizado como arma para unificação das etnias contra o regime então vigente. No segundo momento, usei o conto “Chuva: a abensonhada” para falar do encerramento da guerra fratricida, a desconfiança inicial do narrador com o futuro e a entrega feliz, lúdica, com a paz que se inicia.

Para finalizar, abordei possíveis relações da obra coutiana com a arte multifacetada de Naguib. Em texto para catálogo de sua exposição, em que Mia frisa o caráter plural da arte do artista da região do Tete. A respeito da arte deste artista, Mia comenta: “obra de mestiçagem, sem buscar as identidades mas as fronteiras, os cruzamentos e as viagens. Nos seus quadros reconhecemos os múltiplos tempos do nosso tempo moçambicano, as diversas raças do nosso ser colectivo”.

Foi explorando o multiculturalismo nas obras de Naguib que comentei as múltiplas linguagens utilizadas por ele, como a fotografia, a pintura, o uso de jornais, sites specifics, grafismos como hieróglifos nos remetendo a um passado esgarçado na tentativa de revivê-los. Além disso, sua arte é sensual, erótica, livre e celebradora da vida de um novo tempo moçambicano, com destaque para as mulheres zoomorfas.

Para finalizar a apresentação, entre Mia e Naguib, em comum, a linha tênue da ancestralidade/modernidade. Em Naguib, os procedimentos contemporâneos: fotografias para retratar a árvore sagrada, o embondeiro, com pinturas rupestres. Em Mia, o conto “O embondeiro que sonhava pássaros” de “Cada homem é uma raça”, também aponta para o resgate das raízes perdidas por séculos de colonização, representado pelo menino Tiago, filho de portugueses no tempo da colonização, o seu envolvimento com a cultura local e a presença do animismo africano trabalhado com brilhantismo pelo narrador.

Com isso, procurei mostrar a confluência das artes desses artistas moçambicanos, perseguidores da memória esfacelada, dos sonhos esgarçados, desbravadores das sendas de lirismo da poesia em um mundo dominado por mentes obliteradas. Artistas que prezam por expor um país multicultural, sem omitir os olhares atentos às mazelas sociais e políticas na expectativa de um tempo novo para Moçambique. Um tempo sem a crueldade do outrora e distante da perversidade neoliberal da atualidade.

Para quem quiser acessar a apresentação, basta acessar este endereço:
Ricardo Riso

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