quarta-feira, 17 de junho de 2009

Tchale Figueira - Ulisses a espera de Penélope (conto)

Conto enviado pelo artista plástico e escritor Tchale Figueira, que revisita o mito grego e aborda temáticas pertinentes à literatura de Cabo Verde.
Ricardo Riso

Ulisses à espera de Penélope
Tchale Figueira

Ulisses como todos os rapazes de S. Vicente, tinha os olhos voltados para a baía do Porto Grande. Deslumbrado com os vapores da Blue Star e da Mala Real ancorados na baía da velha cratera em semicírculo, e o Monte – Cara secularmente contemplando nuvens passando, como um poeta em silencio, Ulisses idealizava a distante Argentina nas Américas e…um belo dia, enchendo-se de coragem foi ter com António Cara Linda, um abastado negociante de barcos e velho amigo da família, que o ajudasse a realizar seu sonho. Tirando o boné em sinal de respeito, entrou no enorme armazém do negociador repleto com miríades de cordas, tintas, e objectos marítimos, para ele desconhecidos e encontrou Cara Linda sentado numa velha cadeira americana de vai vem a moda dos Cow Boys, com as pernas estendidas numa enorme mesa repleta com papeis, lendo um jornal desportivo. Sem rodeios foi directo ao assunto e, expressando de forma clara o seu desejo, prometeu ao Cara Linda, jurando por Deus, ir trabalhar arduamente na terra das pampas, e um dia devolver ao comerciante a quantia do empréstimo para a sua viagem à terra das vacas infinitas, e de um tal de Jorge Luís Borges, escritor…

Cara Linda, homem bondoso, antigo emigrante que, após trinta anos de dura labuta no mundo tinha regressado endinheirado a Mindelo, compreendeu perfeitamente o direito de sonhar do rapaz, foi generoso…

Anos mais tarde, depois de muitas peripécias, bem na vida, Ulisses era o mulato mais desejado de Doc Sur em Buenos Aires. Bailava Tango melhor do que ninguém, trabalhava com primor, e tinha já amealhado em pouco tempo, uma considerável fortuna, vendendo charutos de contrabando. Visitou frequentemente alcovas e bordéis das belas senhoritas portenhas, sem nunca se esquecer da sua Penélope, a mulata mais linda da sua ilha, que ele carregava religiosamente na sua carteira de couro argentino genuíno... numa bela fotografia a preto e branco…

Após uma longa troca epistolar com a sua princesa que durou cinco anos e cinco meses, pediu por correspondência a mão da amada aos pais, e com grande felicidade foi-lhe concedido a bênção dos progenitores e… através de um procurador, após rígidas instruções de Ulisses, foram regrados os papéis num rigor burocrático colonial só visto, marcou-se o dia do casamento por procuração, devido a ausência do noivo, emigrante na distante Argentina…

Naquele dia, a cidade brilhou! …E dizem os mais velhos, que Penélope é até hoje, a mais linda noiva deste burgo e naquele dia fora conduzida ao altar pelo excelentíssimo Sr. Doutor juiz, Manuel da Cunha e Sacramento Pais Ferreira, padrinho do enlace por consentimento do aventureiro Ulisses… Célebre foi também, a festa do enlace com centenas de convidados distintos na sala do Nho Jom Tolentino, no bairro do Monte de Deus onde tudo era foguetes tambores e comida durante dias…

Terminado a festança, meses mais tarde a noiva embarcou para Buenos Aires numa noite de Fevereiro, num escuro de breu, em que a cacimba chicoteava as costas dos remadores semi nus do bote de Cara Linda. Penélope triste, embarcou no navio inglês de nome Faith, barco da mala real que rumava primeiro ao porto de Santos no Brasil, logo a capital Argentina…

Com um ambíguo sentimento de alegria e saudade, Penélope partira para terra longe, com os pais no cais chorando inconsoláveis, acompanhados por alguns familiares que acenavam a princesa com lanternas, no piche da noite tropical naquele cais da Alfândega, com as suas gruas fálicas fornicando a escuridão… Era a hora di bai… pensava a bela musa, lembrando-se por um segundo da morna do poeta Eugénio Tavares, ao mesmo tempo que escutava, o chapinhar dos remos cadenciados do bote, entrando e saindo da água…

Com o paquete cortando o azul imenso do mar, num esforço titânico, no segundo dia, Penélope logrou sair da sua cabine, depois de ter vomitado as tripas coração, chorar até não ter lágrimas para derramar tanta saudade… Com as pernas tremendo, dirigiu-se ao salão da nave, ali dentro, depara com um outro passageiro Cabo-verdiano, um belo homem, com quem tinha cruzado várias vezes na pequena praça da cidade… cavalheiro de paletó branco e sapatos a duas cores, preto e branco, brilhando impecavelmente… Que, ao avistar a linda mulata entrando no salão, convidou-a cordialmente para a sua mesa naquele amplo salão inglês, decorado com um enorme quadro com motivos de uma caçada, onde homens a cavalo com vários sabujos raivosos, perseguiam uma raposa, numa floresta bem deprimente. O pintor, um medíocre, com certa habilidade, lograra transmitir uma certa atmosfera kitch para a tela…

Com o seu cabelo crespo, preto de azeviche, alisado com brilhantina a moda de Carlos Gardel, e um bigode perfeitamente simétrico, o elegante gentil-homem, que residia em Salvador da Baía, regressava ao Brasil, após longas férias no arquipélago terra onde nascera. Com ar de sedutor afro-latino, Penélope não resiste ao charme do peralta, e no quinto dia de navegação, ela é seduzida de forma admirável, com gestos e palavras bonitas do finório, no seu belo e cantado português do Brasil… Foi desflorada com mestria num piscar de olho pelo o astuto António Cabo-Verde, um malandro e cafétão conhecido em toda as esquinas de Salvador da Baía. Apaixonaram-se perdidamente, amaram até a exaustão sem que os ingleses da tripulação interviessem nos seus jogos de amor e…

– Penélope, nunca chegou ao seu suposto destino… Como disse um sábio: O destino?... A gente faz! …

Arrasado com esta fatalidade, e sem nunca perceber o destino da sua amada, louco de dor, Ulisses perdeu a noção do tempo…

– Hoje, velho e andrajoso, com uma barba enorme e uns cabelos sujos e desgrenhados feitos punhais prontos para espetar-lhe no coração destroçado, triste Ulisses senta todos os dias no cais numero 7 em Doc Sur, Buenos Aires acompanhado do seu cão Argos, olhando o horizonte… Dizem, que está esperando o fantasma da amada, que nunca chegou aos seus braços.

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