terça-feira, 7 de julho de 2009

FESTLIP - Mar me quer (Grupo Tijac - Moçambique/Ilhas Reunião)

Bela montagem de texto de Mia Couto cativa o público

Por Ricardo Riso

Transpor para o teatro o universo literário extremamente particular e inovador de Mia Couto não é uma tarefa simplória, exige de quem resolve encarar tal desafio, um profundo mergulho nos vários aspectos intangíveis trabalhados em sua escrita, tais como: a memória, o sonho, o tempo, o animismo africano e a sua criativa maneira de subverter a língua portuguesa, criando um “português moçambicano”. E é dentro desta experiência com a oralidade que Mia desfila a sua genialidade ao inverter provérbios, modificar a sintaxe etc.

Fruto de uma parceria banhada pelo Índico, “Mar me quer” alia o diretor das Ilhas Reunião Mickael Fontaine, o músico Matchume e um afinado elenco de atores moçambicanos, para encenar a história de Zeca Perpétuo e Dona Luarmina. Os dois moram à beira do mar, solitários. Ela, desfolhando uma flor invisível e querendo esquecer o passado quer ouvir as histórias de Zeca, enquanto este evita falar do seu passado e tenta conquistá-la de diversas maneiras sem obter sucesso. A memória tenta ser esquecida, ambos não desejam revelar o outrora que coincide com a violenta guerra civil do país. Os segredos do nebuloso passado são revelados a partir do momento que surgem as inserções do pai e do avô de Zeca Perpétuo e de um narrador. Assim, começamos a compreender que a história de Zeca e Luarmina vão se entrelançando.

A pluralidade cultural moçambicana está presente no texto, identificada nas três gerações dos Perpétuos. Seu avô representa o negro, apegado ao chão e às tradições; o pai assimila-se e procura aproximar-se da cultura do branco invasor, condição que será cobrada pelos antepassados o deixando cego e com os olhos azulados se tornando um adivinho que passa a ser procurado pelos pescadores. Enquanto Zeca sofre o conflito de viver entre culturas opostas – a negra e a branca do colonizador –, pois foi criado por um padre e em meio a livros, mas que busca o mar e a rede de pesca com a mesma constância que se afasta dos livros. Já a senhora Luarmina é uma mestiça, a mescla de raças que formam a nação moçambicana.

Diante dos conflitos entre tradição e modernidade, além da presença da memória, dos sonhos esgarçados e de certo mistério comuns na prosa coutiana, a direção da peça encontrou soluções cênicas interessantes e criativas que enriqueceram a narrativa bela e pungente. Sábia e caprichada a presença da música de Matchume, aliando tambores e sons eletrônicos sem jamais sobrepor as vozes dos autores. A presença constante do vídeo a pontuar os esgarçamentos da memória da velha Luarmina, simbolizados por um corredor interminável e vazio, ou a visão do mar e os momentos de fuga de Zeca Perpétuo fechando-se naquilo que quer encobrir. Os momentos de tensão e de presença do avô de Zeca são encenados dentro de uma tela circular em que ora o jogo de luz demarcar o ator, ora são as suas mãos e o seu rosto de encontro à tela a demonstrar os conflitos que passam os personagens. A iluminação do cenário, com destaque para a forte cor azul, também capta com bastante sutileza as passagens e tensões vivenciadas.

A atuação do elenco é segura, sem maiores sobressaltos, o que valoriza e reverencia a força do texto de Mia Couto. Zeca Perpétuo e Dona Luarmina são representados sem exageros, discretos e simples, angustiados com seus conflitos internos, de encarar seus medos, rever seus erros, de liberar a palavra e revelar o que está dentro de si. Daí a opção de Luarmina em refugiar-se na escolha de seu futuro (bem-me-quer / mar-me-quer) desfolhando as pétalas de flores invisíveis, enquanto Zeca Perpétuo escuta os gritos insistentes das gaivotas. Já o narrador possui a sobriedade e a serenidade necessária para pontuar os acontecimentos.

“Mar me quer” encenado pelo Grupo Tijac (Moçambique/Ilhas Reunião) convence por saber traduzir os aspectos essenciais do texto de Mia Couto, gratifica pela leveza de como os assuntos são tratados, por respeitar o sonho e, principalmente, por nos fazer refletir, a partir das tensões de Zeca Perpétuo e Luarmina, a maneira como encaramos nossos conflitos internos, nossos medos, os segredos sombrios que nos atormentam, que tentamos ocultar e esquecer, por conseguinte, travam a nossa evolução. “Mar me quer” fascina e emociona pela bela montagem, pelo final surpreendente como o é em todos os textos de Mia Couto. “Mar me quer” é uma peça obrigatória, naturalmente.


Última apresentação: 11/07 – 19h – Sesc Ginástico
Ficha Técnica:
Texto: Mia Couto
Adaptação e Direção: Mickael Fontaine
Elenco: Eliot Alex, Graça Silva, Leonardo Nhavoto e Zango Candido Salomão
Duração: 01:00h
Música: Matchume
Técnico: Hassan Aboudakar

12 comentários:

Yana Campos disse...

Ricardo! Definiu muito bem aquilo que nos passa a peça e que se passa na peça. Sabes que ainda não esqueci uma palavra do que lá foi dito, belíssima atuação, efeitos de luz e som...Agora me pergunto, quando passa de novo? rs.
Beijos

Wanasema disse...

Querida Yana,
fiquei encantado com a peça. E várias frases adentram nossos olhos, tocam o coração, tocam a alma. Foi uma ótima peça, realmente! Pena que a última apresentação coincidirá com a que tem texto do Arménio Vieira, acho. Se não fosse por isso, repetiria a dose com imenso prazer.
Obrigado pelo comentário!
Bjs!!

Norma Lima disse...

Querido Ricardo, é muito precioso este espaço e a sua gentileza em dividir conosco o que seus olhos e coração viram/sentiram. Precisamos de mais iniciativas como a da FLIP, que ajuda a estreitar esses laços tão belos entre Brasil e África. Um beijo orgulhoso!

Wanasema disse...

Prezada Norma,
torçamos para que o FESTLIP se firme no calendário cultural da cidade e cresça ainda mais.
Obrigadão pela visita!!
bjs!!!

nayara xavier disse...

Ricardo!!!
como queria está neste evento(morar por essas "bandas"!!!!

Mas vc se torna meu intermediador!!
bjs..

Denise Guerra disse...

Ricardo, suas palavras transmitem a obra do Mia Couto mais viva e bela! Parabéns por esta sensibilidade à flor da pele e pela delicadeza do seu texto! Obrigada por prolongar a beleza da encenação em nossos corações! paz e bem, bjs e axé!

Wanasema disse...

Menininha Nayara,
quem sabe um dia vc more por aqui e poderemos curtir tudo isso?
valeu a visita!
bjs!!
Ricardo Riso

Wanasema disse...

Que bom que vc sinta o que descreveu no meu texto. Muito obrigado pelo delicado comentário, Denise!
Bjs e abraços!!

natalouche disse...

Oi
muito obrigada pelo artigo e os comentarios. Realmente da uma força ao trabalho e ao grupo.
Apenas queria corrigir o nome do actor que interpretou o papel do Zeca Perpétuo. E o Eliot Alex, e não o Branquinho Adelina que vocês puderam ver no palco. Foi uma substituição recente, pois o Branquinho esteve doente.
A peça vai evoluindo e espero que terão a oportunidade de acompanhar as mudanças e ajustes futuras.
Abraços
Nathalie

Wanasema disse...

Prezada Nathalie,
obrigado pela força!! Esta parceria realizada entre a Tijac e a Show Co Arts é muito bonita! Desejo todo sucesso para vocês!!
E até amanhã!!!
Abraços,
Ricardo Riso

nayara xavier disse...

Pois é Ricardo!!!
Eu lí a peça e você à viu. Falta fazermos o contrário um do outro,rsrs!!!

Realmente é uma OTIMA peça[texto], me encantei, e além: me emocionei muito!!!

Xerão querido Ricardo!!!

Wanasema disse...

é isso aí, nayara!!
mia sempre encantando!
abração, menina!!