Peça parte da infelicidade amorosa de uma mulher para questionar as desigualdades do mundo contemporâneo
À Yana Campos
Por Ricardo Riso
Por Ricardo Riso
As perversas relações humanas proporcionadas pela desigualdade econômica obrigam as camadas inferiores da sociedade a constantes humilhações. No caso específico da mulher que é negra, pobre e camponesa em Moçambique os seus sofrimentos são extremos quando necessita encarar a cidade grande, Maputo, capital do país.
O Grupo M’BEU trouxe para o FESTLIP a peça “O homem ideal”, texto e direção de Evaristo Abreu. Trata-se da conturbada história de Deolinda e a sua incessante busca pelo homem ideal citado no título. Ela é uma mulher que já teve vários homens, dentre eles Afrísio, Afrânio, Euros e Américo (detalhe para os nomes dos homens, alusão à exploração externa sofrida por Moçambique), sendo sempre desrespeitada e menosprezada por eles.
Para acompanhar as agruras da vida de Deolinda, sua Consciência e um barman escancaram seus pontos fracos, seus sonhos, deixando-a ainda mais confusa sobre que caminho seguir. Um telão expõe imagens de Maputo e as dificuldades passadas por ela na cidade grande. Estão ali o egoísmo, a insensibilidade e a falta de solidariedade daqueles que vivem na cidade grande. A personagem encontra espaço apenas em uma oficina de modelagem de barro, o que remete ao lugar de onde veio.
Por não conseguir se adaptar à vida na capital e permanecer desempregada, Deolinda conta com a caridade de um dono de restaurante que a deixa dormir no local, o espaço onde a peça é encenada. Entretanto, essa situação a leva a sofrer sucessivas humilhações de um barman a lembrá-la sempre da condição pela qual está ali e a deseja sexualmente. Sua Consciência exerce papel semelhante ao recordar sua trajetória infeliz com os homens e a questionar os futuros caminhos a seguir na infrutífera busca do homem ideal.
Como podemos perceber, trata-se de um texto (criado por eles) com o papel de conscientização social, premissa do Grupo M’BEU, que realiza através de sua associação cultural um belo trabalho de ampliação do teatro, oferecendo oficinas e apoiando outros grupos em Maputo e nas áreas próximas desde sua criação, em 1989.
Contudo, “O homem ideal” não se restringe aos desejos de uma mulher que quer apenas ter um companheiro que a ame. A encenação aborda questões contemporâneas comuns às pessoas excluídas dos países subdesenvolvidos, que são obrigadas a sair das pequenas cidades onde vivem, com pouca ou nenhuma instrução e entregues à própria sorte quando chegam aos grandes centros. Em seu pano de fundo, a peça questiona se o atual mundo neoliberal com sua ganância desmedida e que submete milhões de pessoas a viver em condições sub-humanas seria o ideal.
Outro questionamento que a peça deixa no ar, e este fala diretamente a nós brasileiros, diz respeito às discussões muitas vezes fúteis de Deolinda e sua Consciência, sentadas ao redor de uma mesa, a remeter à estética das nossas novelas. Será que não é um grito de Moçambique para não enviarmos a representação máxima do nosso lixo cultural para lá? Parece-me que sim.
Com música de altíssima qualidade de Fran Perez e Paulo Macamo, figurinos de Adélia Tique e Sheila Alexandre, fotografia de Chico Carneiro e o bom trabalho do elenco formado por Yolanda Fumo, Isabel Jorge e Eliot Alex a peça “O homem ideal” cumpre muito bem o seu papel.
6 comentários:
Nossa, você vai no ponto!!!E as questões da mulher subjugada pela sociedade apareceu com frequência neste FESTLIP. Parabéns pelo belo texto, e pelas impressões à flor das peles femininas!!
Muito obrigado pelo comentário, querida Denise! Um grande abraço e bjs!!
Ricardo é isso mesmo, vejo que além de sua enorme capacidade de escrita, nossa conversa foi bem aproveitada. Parabéns pelo texto e continue nos dando esse prazer!
Bjos.
Vivendo e aprendendo, Yana!
Obrigado pelas trocas.
Bjs!!
Olá, Ricardo!
Recentemente descobri um livro fantástico: Poesia africana de língua portuguesa (antologia). organização de Maria Alexandre Dáskalos, Livia Apa e Arlindo Barbeitos. Lacerda Editores. 2003.
Somos apresentados, nesta obra, à uma porção de poetas oriundos da Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
Olhe este:
borboletas de luz
esvoaçando
de cadáver em cadáver
colhem
o fedor dos mortos em
vão
e
pelos buracos da renda
dos dias
passam álacres
do mundo do esquecimento
ao país da indiferença
levando consigo
o pólen fatal
das flores da guerra
borboletas de luz
Arlindo Barbeitos
Olá, Paula!
Tenho esta antologia. Ela é bem ampla e oferece uma boa panorâmica do que foi produzido até os anos 1990. O melhor dela é aguçar a vontade de querer mais.
Eduardo White, Luís Carlos Patraquim, Filinto Elísio, João Maimona, Arménio Vieira, Mário Fonseca e Paula Tavares são excelentes!
Qualquer dia divulgarei esta antologia aqui no blog, pois trata-se de um bom título lançado aqui no Brasil!
Obrigado pela gentileza do poema. Arlindo Barbeitos é um dos grandes de Angola e nome obrigatória da geração dos anos 1970. Aqui no blog vc encontra um artigo que fiz sobre o Nzoji, seu segundo livro de poesia.
Abraços,
Ricardo Riso
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