quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Éle Semog afirmando outras versões da história, uma poesia de tensão e de intenção

Éle Semog afirmando outras versões da história, uma poesia de tensão e de intenção
Por Ricardo Riso

que sou vida porque sou negro,
que sou pleno porque sou negro,
que sou feliz porque sou negro
(Éle Semog. A chave da cor brasileira. p. 111)

Após um longo tempo, Éle Semog, pseudônimo de Luiz Carlos Amaral Gomes, lança em 2010 um novo livro de poesia, Tudo que está solto, pela editora carioca Letra Capital. O livro conta com prefácio de Nelson Olokofá Inocencio e texto de aba de capa de Salgado Maranhão.

Tudo que está solto é formado por um conjunto de cento e dez poemas, subdivididos em seis partes temáticas de emblemáticos títulos, só para citar algumas: Um cotidiano de ironias e fatalidades, Contrários contrastes do tempo e Afirmando outras versões da história. Generoso, o poeta introduz cada parte com um excerto de nomes consagrados da literatura afrobrasileira e angolana, tais como Cuti, Miriam Alves, Arlindo Barbeitos e Lia Vieira.

Gratificante constatar a maturidade da poesia semoguiana no decorrer das páginas deste livro. A poesia permanece corrosiva, aliás, aprimora-se nesse quesito, mostrando o caráter de “negro insurreto” intransigente ao racismo que se perpetua em nossa sociedade. O sujeito lírico demonstra voracidade perante a hipocrisia: “Basta de brancos e negros assimilados/ como penduricalhos da tolerância e integração./ A riqueza da nação não mente/ e não deixa mentir:/ branco é branco, negro é negro/ e isso não tem nada de irmão” (p. 68). Não foge do olhar ácido do sujeito lírico a perversidade da nossa democracia racial, que impõe o embranquecimento do negro, a negação de suas raízes, para ser aceito nas camadas altas da nossa sociedade, é o tema do poema “A chave da cor brasileira”: “uma outra razão turva e pesada,/ insinuosa e despudorada/ oferece uma das chaves/ que abre o mundo dos brancos.../ É para eu entrar, mas sozinho/ e lá poderei ser pitoresco e faceiro,/ desde que deixe os meus no caminho/ e tranque para sempre o negro/ que também sou, fora de mim” (p. 111).

Chocou-se? Que bom! Como afirma Inocencio no prefácio: “muito cuidado ao abrir este livro, pois ele contém substâncias altamente inflamáveis, compostas de consciência e indignação que podem causar danos irreparáveis àquelas mentes retrógadas” (p.11-12). O sujeito lírico semoguiano posiciona-se aberta mente a favor de nós, negros, com veemência revisita o nosso passado e procura reformular a nossa história, dando-nos o lugar de agente ao qual nos foi usurpado pela história oficial e o consequente ato de elevar a nossa autoestima: “(...) Não me curvo ao silêncio/ dessa versão perversa e lúcida, que torna invisível tudo que estou,/ como se o que penso pudesse ser/ desconstruído, pela expressão estúpida/ desses alcoviteiros cheios de estórias,/ que roubam detalhes, fingem fatos,/ e inumanos desfiguram vidas e verdades./ (...) Pertenço a uma História/ feita pelo meu povo/ e penso como meu povo,/ (...) Sou um negro como tantos outros/ negros e negras que esbanjam respeito/ mas que também atiçam o seu medo./ E é melhor assim.” (p. 77-78)

Dentro desse processo de reconstrução da história brasileira, os poemas reunidos em “Afirmando outras versões da história” são simbólicos, de extrema criatividade e rigor na pesquisa ao passado, vide a maneira poética como se dá a explicação da origem do nome Rio de Janeiro para a cidade. Sob o título “Ralando faz tempo no BR”, temos uma sequência de poemas que buscam reconstruir a trajetória da nossa colonização, sendo emocionantes os longos poemas que reescrevem a história da Bahia (Bahia dos vice-reis), Pernambuco (Terra pernambucana) e Rio de Janeiro (Carioca do Rio), sobrelevado pelo caráter didático configurando-se um ótimo material para professores trabalharem em sala de aula as nossas questões etnicorraciais. Cáustico, o sujeito lírico escancara as nossas feridas jamais cicatrizadas: “Com sincera fé católica e voraz volúpia/ por quase quatro séculos Portugal,/ seu rei, suas elites/ construíram a história mais triste/ que a humanidade tem para contar/ (...) de lucrar com a carne do negro/ como se não houvesse amanhã./ Comprar e vender aquela gente negra/ que ao embarcar o clero batizava por dinheiro,/ e em nome dos céus dava o inferno inteiro” (p. 80-81). O sujeito lírico ainda atenta-se aos perigosos revisionismos da elite branca contemporânea que pretende minimizar o cruel processo escravocrata: “Restam poucos documentos sobre isto,/ ninguém sabe, ninguém viu,/ como se aquelas multidões nos portos,/ nos porões, nos pelourinhos,/ fossem no tempo e na história uma miragem,/ e o algoz um erro acidental, um descaminho” (p. 81).

Resgatar a nossa história negra implica a coragem em desconstruir os cânones literários impostos pelo poder, tarefa que o sujeito lírico assume, cumprindo o fundamental papel destinado ao escritor negro comprometido com seus pares: “Vide o que vi e li/ do padre Antonio Vieira,/ quando fazia sermão/ quase perdia a estribeira,/ puxando o saco do papa e do rei,/ falando um montão de besteira./ Dentre outras sandices/ foi esse padre que disse,/ que a Senhora do Rosário/ abençoava a escravidão” (p. 85).

Sempre provocativo, os poemas lembram-nos as imutáveis violências as quais somos submetidos, “desde o tempo que o Direito/ tirou o direito da gente” (p. 105). O direito ao negro, a nossa condição humana até os dias atuais não é plenamente aceita. No passado, até o leite materno das mães negras era negado aos nossos antepassados: “É saber que os bebês negros,/ desde cedo, muito cedo,/ eram filhos, mas viravam bichos/ e perdiam do aconchego do seio/ o direito do alimento perfeito” (p. 73). Para nós, há o direito sim de sermos exterminados por uma polícia racista, programada e orientada para dizimar nossa juventude negra, principalmente a que vive em áreas carentes, por sinal e estranha coincidência, de maioria negra. Novamente o sujeito lírico versa a sua ferocidade, denuncia o triste óbvio do nosso cotidiano democraticorracial e, em feliz neologismo, apresenta os negrotérios: “No meu país tão democrático,/ tão religioso e tão caridoso/ toda criança negra/ é um anjo vestido de morte./ De zero aos dezessete anos/ são precoces condenados/ para entrar no céu./ Para confirmar não precisa/ perder tempo perguntando a Deus/ é só olhar nos jornais/ ou ir ver a cor das mães/ nas portas dos negrotérios” (p. 52).

Essa tensão típica do caos urbano da contemporaneidade, “que sufocam a minha lógica tribal” (p. 70), mostra a insensibilidade social do poder perante os seus pares, impondo deveres mas jamais oferecendo direitos: “Estou cercado por deveres,/ obrigações, tensões urbanas/ (...) Às vezes me respingam/ manchas de sangue, noutras/ multas, e impostos, e juros,/ e crianças mortas./ Muitas crianças mortas/ na lama dessa democracia./ Enchentes, roubos, gente cão,/ e filhos aspirados por essa/ ideologia global” (p. 70).

Apesar de todo o comprometimento de Éle Semog com a justiça social, a denúncia do racismo e a valorização do negro, é importante frisar a versatilidade formal e estética deste poeta que utiliza com desenvoltura o recurso aos versos livres; de intensa ironia – “Não escrevo/ como se fossse um/ necrófilo./ Sinto isto em cada letra./ Mesmo quando/ os poemas se espalham/ feito coisas mortas” (p. 17). o lirismo amoroso e negro: “Essa beleza inteira negra,/ delicadas tranças e carapinha,/ coloridas curvas ímpares/ que eu sei pegar com os olhos/ faz-me pensar que mulheres/ lindas assim, iguais a você, são mais raras” (p. 107); poemas longos e curtos que lembram os da poesia marginal dos anos 1970 e a urgência do ‘aqui e agora’: “...Falo de sensações/ passageiras./ Aquelas eternas naquele momento.” (p. 23) ; a própria tessitura poética, a dificuldade de fazê-la e da sua importância frente à perda de sensibilidade dos homens versada por um amargurado sujeito lírico: “a poesia me irrita (...)/ A poesia me consome inteiro/ como um beijo aflito/ que quer ser visto/ na boca de quem ama/ Sou poeta e também sou assim,/ deformado, que se resume poema,/ que se expressa pela natureza/ dos limites do porvir./ (...) A poesia me elucida/ - isto tem sido tão raro -/ quando o amor que vejo entre as pessoas,/ é um defeito, um acaso./ Deixo-me imolar pelo silêncio/ até que uma lágrima perigosa/ vasa ao limbo do pranto,/ como se o meu espírito lamentasse/ pelos mortos construídos/ com radicais banalidades,/ que todas as poesias evitam evitar” (p. 52-54); e o recurso criativo da metapoética com seus próprios poemas, “O drama afro de Bigu e Juliana” e “Anotações sobre o ato de escrever”, versando a respeito da força do verbo poético, da libertação da palavra que conduz o poeta em um embate no qual a palavra sempre sai vencedora: “o poema é o que eu quero,/ não o que a inspiração tem vontade/ (...) Não gosto quando/ o texto me ilude,/ engole e me abafa.../ não gosto mesmo/ quando o texto é mais/ vaidoso que eu./ E foi isto que aconteceu/ nesse poema afro/ do drama de Bigu e Juliana” (p. 109-110).

Para concluir, é necessário celebrar este Tudo que está solto, a palavra depurada e madura, a versatilidade formal e temática deste militante negro de Nova Iguaçu (RJ), participante de diversas antologias como “Cadernos Negros” e “Ebulição da escrivatura”, com textos publicados na Alemanha, Estados Unidos e Itália, para além dos seus, dentre outros, “Curetragem – poemas doloridos” e a biografia de Abdias Nascimento, “O griot e as muralhas”. Corrosivo sim, agressivo também, sobretudo, verdadeiro e sincero nas suas intenções. Éle Semog brinda-nos com um livro obrigatório, de excelente qualidade poética, de confirmação do seu nome entre os maiores da literatura negra brasileira, por conseguinte, entre os melhores da literatura brasileira. Um brado poético contra o racismo em nossa sociedade, uma feliz leitura para nós negros. É o que tenho a dizer a respeito de Tudo que está solto e agradecer ao seu autor.

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