sábado, 6 de novembro de 2010

Filinto Elísio – Outros sais na beira mar (resenha)

Filinto Elísio – Outros sais na beira mar e o caleidoscópio da memória em tempos que se cruzam promiscuamente
Por Ricardo Riso

Em “Outros sais na beira mar”, Filinto Elísio resolve aventurar-se pelo romance. Contudo, seguindo, de certa maneira, as metáforas inusitadas e as experimentações formais e estéticas de sua poesia, o autor subverte o gênero romance (ou antirromance ou um rol de apontamentos esparsos, como questiona ao leitor em dado momento) para construir uma narrativa híbrida, fragmentada por anotações de diários, crônicas de jornal, troca de e-mails, blogs, poemas etc., para além de diversos fatos verificáveis na sua biografia, aproximando-se de uma livre e descomprometida autobiografia, além da intertextualidade com a sua poesia, mais precisamente a do livro “Das frutas serenadas”.

Nesse caleidoscópio da memória em tempos que se cruzam promiscuamente, a alinearidade apresenta-se entre fatos pessoais (como as diversas mulheres que marcaram a vida do narrador) e a história recente de Cabo Verde, porém descompromissada com a verossimilhança, pois, ao citar o Agaton de Aristóteles (e por que não o João Vário de Exemplo Coevo?): “é verossímil que sucedam as coisas contra toda a verossimilhança”; assim como as constantes indagações do narrador ao leitor acerca da verdade dos fatos.

O espaço geográfico do romance (?) é Cabo Verde, a cidade da Praia, mas é também o da diáspora: Brasil, EUA, Itália, Guiné-Bissau etc. Entrecortada por esses lugares, a narrativa passa pela guerra colonial, pelos estranhos acontecimentos que marcaram a morte de Amílcar Cabral, a euforia com o país livre e o temor da contrarrevolução chegando ao extremo de uma baleia encalhada na praia ser alvejada por balas ao ser confundida com um submarino imperialista, os anos de partido único e multipartidarismo até a decadência da Praia e do país no início deste século.

A corrupção e a impunidade dominam a nação. Cabo Verde integra a rota internacional do tráfico de drogas. O narrador-cronista denuncia o caos e a desordem que passam a ser comuns. “Este é um país deveras geoestratégico”, a triste ironia escancara a inescrupulosa aliança Guiné-Bissau-Cabo Verde entre políticos e empresários, interesses que em nada lembram a união justa e nobre proposta por Amílcar Cabral que desencadearia na guerra colonial.

“Só se mete medo a quem tem medo, o que não parece ser o caso deste cronista”, vaticina o narrador em suas “crónicas implacáveis” diante das mazelas que dilaceram o país. Nada passa despercebido pela sua escrita feroz: as drogas inseridas na economia, o enriquecimento ilícito de políticos e “narcoadvogados”, violência urbana, pedofilia e turismo sexual, emigrantes clandestinos, a promíscua relação religião-política, o medo asfixiando a sociedade, deixando-a inerte. “Para que tal se inverta só com uma bomba termonuclear, como aquela da poesia de Arménio Vieira”. Acusações motivadas após uma tentativa de suborno feita por um ministro com o intuito de calá-lo.

Além de homenagear seus amores, “Outros sais na beira mar” celebra poetas que moldaram o apreço de Elísio pela Literatura: Fernando Pessoa, Arménio Vieira, Ovídio Martins, Eugénio Tavares, Charles Baudelaire etc. Ressalte-se a fundamental contribuição desse romance à literatura de Cabo Verde pela via da rememoração da história, aliando-se a nomes como de T. T. Tiofe, José Luiz Tavares e NZé dy Sant’Y’Agu; para além do testemunho da decadência da Praia e do país, aproximando-se das ácidas críticas de Erasmo Cabral D’Almada e do Arménio Vieira de “Caviar, Champagne & Fantasia”, por exemplo.

Corrosivo e irônico com a situação política, desmedido amor pelas mulheres, “Outros sais na beira mar” ratifica o demasiadamente praiense e cabo-verdiano Filinto Elísio entre os melhores de Cabo Verde: “O meu lugar é a cidade da Praia. Fétida cloaca, se me permites dizê-lo. Mas tão minha (...) Aqui, onde nasci, estão todos os ícones da minha fantasia existencial. Aqui, aprendi os relâmpagos da alma, o dom de conversar por metáforas.”


OUTROS SAIS NA BEIRA MAR
de Filinto Elísio
Lisboa: Letras Várias, 2009

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