quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Fernando Kafukeno – o lirismo sublime da nova poesia angolana


Agradecimento especial à Professora Rosângela Freitas (UNESA), que me presenteou com o meu primeiro e solitário livro de Fernando Kafukeno.

A cada livro lançado, o angolano Fernando Kafukeno aprimora a sua verve poética calcada em lirismo, sinestesia, oralidade, erotismo, surrealismo e memória, surpreendendo seus leitores com imagens inusitadas que procuram resgatar a sensibilidade perdida em uma época crepuscular. Assim se apresentam os poemas de “Sublimação de Aresta” (Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2006, coleção Guaches da Vida nº 35).

Fernando Kafukeno nasceu em 18 de Novembro de 1962, na cidade de Luanda, capital de Angola. Lá, estudou e foi membro da Brigada Jovem de Literatura de Luanda. Seus primeiros poemas foram publicados no suplemento cultural do Jornal de Angola e seu primeiro livro de poesia foi “Boneca do Bê-Ó” (1993), seguido de “Na Máscara do Litoral” (1997), “Sobre o Grafite da Cera” (2000) e “Missangas! Kituta” (2000).

Kafukeno é contemporâneo dos poetas nascidos entre os anos de 1955 e 1965. Essa geração foi denominada como a “geração das incertezas” pelo também poeta e conceituado crítico literário angolano Luís Kandjimbo, em virtude de “na obra de todos eles, os temas mencionados emergem de uma profunda experiência geracional avassaladora e catastrófica, em que pesa a revolução, a guerra, a intolerância política” (SECCO, 2003, p. 189).

Ao radicalizar as propostas estéticas dos anos 1970 da “geração do silêncio” de Ruy Duarte de Carvalho, David Mestre e outros, a poesia angolana dos anos 1980/1990 abandona o cantalutismo até então predominante, diante das irrealizações políticas e sociais do país independente e das agruras e terror trazidos por uma violenta e duradoura guerra civil. Carmen Lucia Tindó Secco afirma que a nova geração apresenta um

“novo lirismo, reagindo a esse desencanto dominante no contexto social do país, abandona a utopia do nós coletivo e o engajamento revolucionário da poesia de combate. Funda uma poesis que dá vazão ao amor e às emoções individuais, assumindo um viés existencial e uma dicção universalista. Sob o signo de Eros, os poetas buscam exorcizar a morte e a dor. Operando uma revolução no âmago da linguagem, levam às últimas conseqüências a metaconsciência poética já praticada, desde os anos 70, por alguns dos poetas de Angola. (...) Ao suspender a prática cantalutista, lança na consciência dos leitores imagens do mundo mais humanas do que as tecidas pelas ideologias, desencadeando o desejo por uma vida mais autêntica e livre, pela qual vale a pena lutar” (SECCO, 2003, p. 189).

No início dos anos 1980 exerceu importante papel a Brigada Jovem de Literatura de Luanda, que motivou a criação de novas brigadas espalhadas por diversas cidades do país, como na Huíla e no Huambo. Nessas Brigadas, deparamo-nos com algumas características marcantes dos novos poetas assinaladas por Ana Mafalda Leite:

“As tendências de quase todos esses autores marcam-se pela procura de um rigor formal, aliado em maior ou menor grau a pesquisas temáticas, etno-antropológicas, lingüístico-regionais e ético-ideológicas. Oscilações entre a procura equilibrada de um nativismo universalizante, ou o encontro da casa própria aberta ao mundo. Procurando em simultâneo uma des(continuidade) com as gerações anteriores, verifica-se uma tentativa de balanço e compreensão da angolanidade na sua componente social e cultural, ao mesmo tempo que se tenta o desprendimento dos liames óbvios de sentido” (LEITE, 2006, p. 46).

É no campo da pesquisa lingüístico-regional que o livro “Sublimação de Aresta” de Fernando Kafukeno chama-nos a atenção. Leite recorre ao estudo de Salvato Trigo, “As literaturas africanas de expressão portuguesa – um fenômeno urbanístico”, para mencionar:

“a origem urbana dos textos das modernas literaturas africanas de língua portuguesa e o seu relativo isolamento da ruralidade. (...) A maioria dos escritores das literaturas africanas de língua portuguesa são assimilados, uma parte significativa de ascendência européia, quase todos de origem urbana, sem contacto directo com o campo, e não dominam, salvo raras excepções, as línguas africanas. Esse facto não é comum nos outros países africanos, onde a ligação com o ‘terroir’ se mantém desde a infância e os escritores geralmente são, pelo menos, bilíngües” (LEITE, 1998, p. 30).

Além do exposto acima, Leite considera o endurecimento da política salazarista, o desenvolvimento urbano, o início da guerra colonial nos anos 1960 e as guerras civis do pós-colonialismo “verifica-se que a relação das cidades com o mundo clânico e do interior, onde as tradições orais mais vivamente se mantêm, foi sendo cada vez mais perturbada e alterada” (LEITE, 1998, p. 31).

Com isso, inferimos o interesse dos escritores angolanos pelo falar dos musseques de Luanda. Dos representantes da angolanidade como António Cardoso ao jovem Ondjaki, passando pelo expoente máximo da subversão da língua portuguesa na literatura angolana, Luandino Vieira, constatamos que

“a oralidade é, à partida, uma relação em ‘segunda mão’, resultante, na maioria dos casos, não de uma experiência vivida, mas filtrada, apreendida, estudada. Mesmo a oralidade ‘mucéquica’, suburbana, para usar o termo de Salvato Trigo, é já parcialmente aculturada e híbrida, distante e diferente daquela que encontraríamos no campo” (LEITE, 1998, p. 31).

Os musseques reúnem pessoas de diversas regiões de Angola, de várias etnias, por isso convém utilizarmos o plural para “oralidade”, pois

“o plural serve-nos para significar o processo transformativo que a urbe provocou nas tradições rurais modelando-as e recriando-as. E usamo-lo ainda, para acrescentar outros elementos, provenientes de outras oralidades, de que a língua matriz é portadora na sua origem cultural. (...) O plural de ‘oralidades’ permite-nos (...) distinguir o modo de relacionamento dos escritores com a textualidade oral e com as línguas” (LEITE, 1998, p. 35).

A literatura angolana, assim como as demais literaturas africanas de língua portuguesa, apresenta uma especificidade em relação às outras literaturas africanas, pois, segundo Leite: “faz coexistir na maleabilidade da língua, o novo com o antigo, a escrita com a oralidade, numa harmonia híbrida, mais ou menos imparável, que os textos literários nos deixam fruir” (LEITE, 1998, p. 34).

Remetendo-nos ao que Roland Barthes afirmou em “Aula” a respeito do fascismo da língua, “pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (BARTHES, 1977, p. 15). Para resolver esse impasse, Barthes propõe que a língua seja trapaceada através da arte, pois somente esta conseguirá quebrar o fascismo da língua:

“Só nos resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. (...) porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela é teatro. Posso portanto dizer, indiferentemente: literatura, escritura ou texto. As forças de liberdade não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor, (...) mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua.” (BARTHES, 1977, p. 16-17)

Trapacear a língua, subverter a sintaxe da língua portuguesa, contaminá-la com elementos das línguas nacionais angolanas, ou como salientou Édouard Glissant: “a questão sobre a escrita e a oralidade gera, nos dias de hoje, uma situação de angústia vivificante para o poeta, o escritor” (GLISSANT, 2005, p. 48). O angolano Fernando Kafukeno enquadra-se nessa angústia vivificante de fazer poesia em seus livros, pois percorre um caminho inovador nas letras angolanas que “se efetiva pela condensação metafórica e pelas metamorfoses gráficas de sua linguagem poética, onde texto, som e desenho se acumpliciam, numa permanente busca de corporização plástica e sonora da palavra, do verso e da estrofe” (SECCO, 2003, p. 191).

Na primeira parte de poemas de “Sublimação de Aresta”, intitulada Akualuanda, que em quimbundo quer dizer algo como natural de Luanda, apreendemos o mergulho na oralidade dos musseques reelaborados com criatividade pelo poeta. Utilizando metáforas inusitadas e surreais, em poemas, em sua maioria concisos, contaminados pelos falares das pessoas simples, Kafukeno “exacerba o exercício do aproveitamento das potencialidades intrínsecas da língua, primando, entretanto, por uma economia capaz de debastar o verbo poético de excessos” (SECCO, 2003, p. 190).

arreiou!... arreiou!...

aproveita agora
questou maluca

arreiou no
meu espelho
é cinquenta

aproveita agora
que tem
muito sol

arreiou!... arreiou
é dez no sumo

aproveita agora
questá chover

arreiou!... arreiou!...
é cem o balde

arreiou!... arreiou!...

compra agora
que tenho fome (p. 25)

No poema acima, depreendemos a feroz crítica social ao estado de penúria em que se encontram os angolanos e a revolução mostrou-se incapaz de solucionar os problemas sociais. Uma vendedora desespera-se com sua condição, e o eu lírico revisita um tema trabalho pela geração da Mensagem, geração responsável por sedimentar o sentimento de angolanidade nas letras, como no poema “Quitandeira” de Agostinho Neto:

(...) A quitandeira
que vende fruta
vende-se.

– Minha senhora
laranja, laranjinha boa!

Compra laranjas doces
compra-me também o amargo
desta tortura
da vida sem vida.

(...) Aí vão as laranjas
como eu me ofereci ao álcool
para me anestesiar
e me entreguei às religiões
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.

Tudo tenho dado.

Até mesmo minha dor
e a poesia dos meus seios nus
entreguei-as aos poetas.

Agora vendo-me eu própria.
– Compra laranjas
minha senhora!
Leva-me para as quitandas da Vida
o meu preço é único:
– sangue.

Talvez vendendo-me
eu me possua.

– Compra laranjas! (NETO, 1986, p. 31-33)

Por outro lado, apesar de todas as agruras passadas pelos angolanos, em “Sublimação da Aresta” há a valorização das quitandeiras como presença genuína de identidade, do orgulho com a paisagem local e com os frutos da terra:

quando fores
ao mercado s. paulo
compra maboque

fruta docinha
da nossa terra

e terás de oferta
o sorriso pitanga
das kitandeiras

quando fores
ao mercado s. paulo

compra sape-sape

fruta saborosa
da nossa terra

e terás de oferta
aroma gajaja das
kitandeiras (p. 23)

A oralidade também se faz presente em poemas acerca das lembranças das brincadeiras da tenra idade, época de espontaneidade e vigor do falar híbrido nos musseques, metonimizados nos jogos infantis, como a cassambula, e nos conflitos entre os ndengues (meninos). Conflitos que fazem alusão aos tenebrosos anos de guerra fratricida ainda intensos na memória do poeta em razão dos poucos anos do seu fim, em 2002:

cassumbula!

– tá!
o som da
bofa

e a xandula
do avilo

no bucho (p. 11)

vais ver só:
(o gesto da
língua na palma
da mão mostrada
em seguida
ao adversário)

desforra marcada
– ninguém acode!...
exalta de ânimo
: a assistência

e a peleja evolui
entre cafriques
bassulas e quedas
à pescador

e os ndengues berram:
bilóóó!... bilóóó!... bilóóó!... (p. 19)


– abeçaite! – abeçaite! – abeçaite!
– arevista ninguém marevista!

os haveres do revistado
transitam de dono

– fala acum!
– acum!
– bate café!

o afrontado bate na mão
adversária cheia de areia

a peleja fulmina

– abeçaite! – abeçaite! – abeçaite!
– arevista ninguém marevista! (p. 18)

Em uma linguagem espiralada rememorando a infância e refazendo seus diálogos, o eu lírico apresenta um acalanto às cruéis pelejas dos caóticos tempos de guerra. Refazer as tradições esgarçadas, recriar poeticamente a oralidade angolana massacrada por séculos de opressão é o belo e fecundo exercício que se dispõe a poética de Fernando Kafukeno. Segundo Laura Cavalcante Padilha,

a oralidade é (...) o alicerce sobre o qual se construiu o edifício da cultura nacional angolana nos moldes como hoje se identifica. Praticá-la foi mais que uma arte: foi um grito de resistência e uma forma de auto-preservação dos referenciais autóctones, frente à esmagadora força do colonialismo português. (PADILHA, 1995, p. 17)

A força da palavra oral é utilizada pelo eu lírico kafukeniano para denunciar o crescimento urbano de Luanda, que modifica a paisagem tradicional, conseqüentemente, dissipa as tradições, fragilizadas por tantos anos de amarga repressão:

samba kimongua era
musseque com beiço de mar (...)

em samba kimongua o comboio
já não apita está estático embelezado
virou restaurante

samba kimongua de dia navega em barcos
de noite acende as luzes do mar

em samba kimongua chilreiam pássaros
nos jardins com sabor a piscina e charuto (p. 24)

O poema “estória.estória” é um dos grandes momentos do uso da oralidade em “Sublimação de Aresta”. Neste poema, há o início das estrofes com os versos “vou-vos pôr a estória que me contaram no tempo em que Luanda tinha”, chamando a atenção do ouvinte para o ensinamento do passado que será transmitido, há também a repetição do estribilho “estória. estória”. Sendo assim, visualizamos a ruptura do passado dos musseques, sendo engolidos pela sanha da modernidade, expelindo os rituais religiosos, a vegetação local com a urbanização, a mudança de comportamento das crianças.

vou-vos pôr a estória que me
contaram no tempo em que Luanda
tinha jimbondo e a makua comia-se
pouca com medo do mbumbi

estória. estória

vou-vos pôr a estória que me contaram
no tempo em que Luanda tinha mulembas

estória. estória

e nesse tempo Luanda era
cidade da baixa e do musseque
nos jimbondos e mulembas
que estavam nos musseques
fazia-se umbanda e uanga

estória. estória

vou-vos pôr a estória que me contaram
no tempo em que Luanda tinha
cajueiros pitangueiras maboqueiros
gajajeiras romãzeiras figueiras e macieiras da índia
e os ndengues do musseque jogavam bola de meia
e tomavam banho nas cacimbas

estória. estória

e os prédios e as vivendas estavam pouco a pouco
a entrar na barriga do musseque

vou-vos pôr a estória... (p. 26-27)

ou seja, depreendemos as lembranças de um tempo do outrora que resiste na memória do griot a cumprir o seu papel de transmitir a cultura local, que é reconstruída e reintroduzida na vida angolana contemporânea poeticamente pelo eu lírico kafukeniano. Nele, inferimos o resgate pelo caminho das letras da tradicional narrativa oral na tentativa de perpetuar essa forma de comunicação, conforme denunciou Walter Benjamin ao dizer que uma das características perversas da modernidade era a perda da narrativa oral. Com isso, vemos singelas imagens do passado descritas pelo eu lírico, transfigurado em griot, que refaz a participação do público ouvinte, agora, leitor, valendo-se do estribilho. Essa relação entre o griot e seus ouvintes é esclarecida por Laura Padilha:

Na festa do prazer coletivo da narração oral, entre os grupos iletrados africanos, é pela voz do contador, do griot, que se põe a circular a carga simbólica da cultura autóctone, permitindo-se a sua manutenção e contribuindo-se para que esta mesma cultura possa resistir ao impacto daquela outra que lhe foi imposta pelo dominador branco-europeu e que tem na letra a sua mais forte aliada. A milenar arte da oralidade difunde as vozes ancestrais, procura manter a lei do grupo, fazendo-se por isso, um exercício de sabedoria.
O contador e seus ouvintes são seres em interação para quem o dito cria a necessária cumplicidade e reitera que é preciso ser, na força da diferença, preservando-se, com isso, o vasto manancial do saber autóctone. Do ponto de vista da produção cultural, a arte de contar é uma prática ritualística, um ato de iniciação ao universo da africanidade, e tal prática e ato são, sobretudo, um gesto de prazer pelo qual o mundo real dá lugar ao momento meramente possível que, feito voz, desengrena a realidade e desata a fantasia. (PADILHA, 1995, p. 15)

A valorização da cultural tradicional de Luanda expressa-se sinestesicamente com as referências aos hábitos alimentares da população dos musseques, que já aparecia no poema “mercado s. paulo”, mas é re-elaborada em outros poemas com imagens surreais a recordar os angolanos dos costumes esgarçados da terra, como apreendemos nos dois exemplos abaixo:

mufete

lambula assada ao lume
carvão vegetal com escama
guelra e tripas

suco de limão
sal e gindungo na
gula do paladar (p. 13)

kitaba

ginguba torrada
com areia musseque
descasca
se
e

pisa
se no
pilão com gindungo

a gosto (p. 14)

A descrição da dieta alimentar dos musseques é corriqueira na literatura angolana, outro expoente da “Mensagem”, António Cardoso, no conto “Contratado” do livro “Baixa & Musseques” relata:

“Entretanto, a mulher colocara na esteira dos pratos de barro, um, com peixe seco em molho de água, óleo de palma, jindungo e sal, noutro, a fubá de bombo cozida que estivera a remexer no final da conversa, com todo o carinho como se a operação fosse preciosa” (CARDOSO, 1985, p. 199).

Para encerrar a primeira parte, dois poemas retratam as brincadeiras com os papagaios dos tempos de criança. Reminiscências da tenra idade, alegoria dos projetos inacabados da revolução angolana, incapazes de acabar com o abismo social da nação no pós-colonialismo, cuja a imagem dos papagaios sendo levados pelo vento e a corrida (ndengue) infrutífera dos meninos representam:

meu papagaiouééé!...
deu atum... deu atum... deu atum...

e os ndengues na berrida solidária
pelos becos do musseque olhando
o papagaio de papel que esvoaça

meu papagaiouééé!...
deu atum... deu atum... deu atum...

e os ndengues regressam suados
só com a imagem do
papagaio de papel a esvoaçar

meu papagaiouééé!...
deu atum... deu atum... deu atum... (p. 32)

Nos poemas da segunda parte, Malanje e canções II, o eu lírico kafukeniano invoca a força do elemento primordial da natureza, a água (que aparece em todo o livro), sendo representada pelos rios nacionais Malanje e Kinaxixi, e figuras mitológicas do mar como a Kianda, e históricas da resistência angolana como a Rainha Ginga e Ngola Kiluanje. De acordo com notas da edição do livro “Sagrada Esperança” de Agostinho Neto, aqui utilizado por nós, a primeira era uma “rainha corajosa e hábil que liderou a guerra de resistência contra o domínio português, durante mais de trinta anos” (NETO, 1986, p. 119), e viveu de 1581 a 1663. Enquanto Ngola Kiluanje foi “rei da região do Ndongo que em 1590 chefiou a primeira coligação, conduzindo o seu povo na luta de resistência ao colonialismo português até a sua morte em 1617” (NETO, 1986, p. 119).

Para celebrar o passado ancestral de resistência contra a colonização, três poemas são dedicados à Rainha Ginga e aqui citamos apenas um. O eu lírico inspira-se na força guerreira, na força do rio e no mito da Kianda para direcionar o presente na reconstrução nacional:

rainha

aí estás
de rosto severo

impondo o machado
e trajada de vestes

soberana

no kinaxixi
da nossa kianda

aí estás
de rosto severo

resplandecendo
força e poder aos
seres e aos astros (p. 40)

Em “malanje e guerra”, o universo onírico é convocado para libertar o eu lírico enunciador dos traumas da guerra, conduzindo-o de um tom crepuscular ao recomeço de um país que teve seus sonhos abortados:

a cidade tomava
a forma da noite

o sol caía no rio malanje
e incendiava o susto
da imaginação

o orvalho gotejava
fogo sobre cangandala

e as palancas negras
se abrigavam nas quedas
de monte condo

no xauande homens
decapitados e manietados

dos olhos da fuga
falavam com as imbambas

e sonhavam
o renascer da flora
e da fauna

no incêndio do sol
sobre o rio malanje (p. 35)

Na última parte do livro, “mar e aves”, os poemas são breves, compostos de metáforas insólitas e inusitadas. O uso corrente da sinestesia busca aguçar a sensibilidade esgarçada dos angolanos, valendo-se de um eu lírico surrealista que surpreende com imagens impactantes, desconexas e rápidas reapresentando a possibilidade de sonhar, como nos quatro poemas a seguir:

os mochos cantam
no tempo o som da puíta

os mochos no tempo
tocam o ngoma e vestem (p. 49)


surda a penumbra
habita o lago

da flora. a seca
surda colhe vales (p. 52)


máscara: olhos sem
riso e sem som

máscara: feitio de areia
nos lábios da fuga (p. 53)


eu oiço: as vozes
das janelas que não
falam: são janelas
de areia no vidro
do ar (p. 54)

As imagens insólitas, sombrias e fraturadas confundem os sentidos. A fragmentação do sonho angolano dilacerado pelos sangrentos conflitos é tratada crepuscularmente pelo eu lírico em “luar sem lobos”:

a insígnia
da noite

calça
me a tese
do mar

em retalhos (p. 57)

Através do poder da palavra, a tessitura melancólica dos versos marca a trajetória esgarçada do país. Travestido em desencanto, o poema “quadro 30”, alegoricamente, representa os trinta anos da independência angolana e o percurso da euforia até a distopia com os rumos desencontrados durante o pós-colonialismo, agora mergulhado na inescrupulosa ordem neoliberal:

saibam que a bonança
esburacou este quadro
a sua tela já foi de argamassa
agora é papelão qualquer
captando audiência quando
apresenta o filme em que a
pintura sai da tela e viaja para lua (p. 48)

Testemunha ocular do conturbado processo de reconstrução da nação angolana, Fernando Kafukeno alegoriza o desespero diante dos pesadelos atuais, motivado pelo dilaceramento das propostas do país independente:

de tijolo e cimento
nasceste dei-te água e funge

e nada sei da tua nova miséria
ou do que te tolhe a alma

morri antes da notícia
dos cães no vidro do sítio (p. 50)

A situação vivenciada por Angola nas últimas três décadas faz com que o eu lírico recorra ao surrealismo e explore metáforas insólitas com seres e elementos cósmicos para despertar a sensibilidade perdida, esfacelada por tantos anos de angústia, medo e opressão:

agora vivo impregnado
sob o diálogo dos veleiros
é tão assustador e eu nem
sequer sei quando há de
terminar porém vejo neste

diálogo balas cor de rosa a
povoarem o céu do meu encanto
o sol também fala aos peixes
acerca da impregnação dos
veleiros na brisa do dia

é terrível viver sob a impregnação
do diálogo dos veleiros porque a lua
foge do mar e se refugia na fenda a
estrela escurece e o arco-íris imola
seres humanos no sangue da chuva (p. 47)

No caos estabelecido em Angola, a tessitura poética de Kafukeno pretende reagrupar os fios partidos, reconstruir os escombros deixados pela guerra. Ao criar imagens inusitadas, o poeta denuncia os caminhos dolorosos aos quais os ideais da revolução foram preteridos pela sanha de dirigentes corruptos de um tempo em suspensão:

o relógio destrói
a ausência

e se
debruça sobre

a colina do ponteiro (p. 59)

Ciente da condição catastrófica angolana “impregnada sob o diálogo dos veleiros” (p. 47), os ventos da oralidade presentes na poesia de Kafukeno conduzem-nos às arestas entre as palavras e a voz ancestral, ao poder surpreendente das metáforas na insistente vontade de sonhar, para escancarar a opressão, a cruel política excludente e as desigualdades sociais às quais o povo angolano está submetido. A poesia de Fernando Kafukeno atenta-se às mazelas do seu tempo, desmascara a miséria, a hipocrisia, o descaso e incomoda a classe dominante do país.

A “Sublimação de Aresta” aponta as novas sendas da poesia angolana e consolida o nome de Fernando Kafukeno como um dos seus dignos representantes.

Ricardo Riso


BIBLIOGRAFIA:
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1977.

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Magia e Técnica, Arte e Política - Obras Escolhidas - Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1996.

CARDOSO, António. Baixa & Musseques. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1985.

GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da adversidade. Juiz de Fora: UFMG, 2005.

KAFUKENO, Fernando. Sublimação da Aresta. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2006. Colecção Guaches da Vida, nº 35. 1 ed.

KANDJIMBO, Luís. Breve Panorâmica das Recentes Tendências da Poesia Angolana. In: Austral, Revista de Bordo da TAAG, nº 22, 1997, p. 27. Apud: SECCO, Carmen Lucia Tindó R. A haste e a ostra: uma poética da catástrofe e do sonho. In: A magia das letras africanas: ensaios escolhidos sobre as Literaturas de Angola e Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro: ABE Graph, 2003. p. 188-197.

LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & Escrituras nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Lisboa: Colibri, 1998.

LEITE, Ana Mafalda. Poesia angolana: percursos (des)contínuos. In: Revista Poesia Sempre: Angola e Moçambique nº 23. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2006.

NETO, Agostinho. Sagrada Esperança. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1986.

PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. Niterói: EDUFF, 1995.

SECCO, Carmen Lucia Tindó R. A haste e a ostra: uma poética da catástrofe e do sonho. In: A magia das letras africanas: ensaios escolhidos sobre as Literaturas de Angola e Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro: ABE Graph, 2003. p. 188-197.

TRIGO, Salvato. As literaturas africanas de expressão portuguesa – um fenômeno urbanístico. In: Ensaios de Literatura Comparada Afro-Luso-Brasileira. Lisboa: Vega, S/D. p. 53-60. Apud: LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & Escrituras nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Lisboa: Colibri, 1998.

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