sexta-feira, 11 de junho de 2010

José Luiz Tavares - Paraíso Apagado por um Trovão (resenha)


José Luiz Tavares - Paraíso Apagado por um Trovão

por Ricardo Riso
Resenha publicada no semanário A Nação nº 145, página 16, de 10 de junho de 2010

O arrebatador Paraíso Apagado por um Trovão, 1º livro de poesia de José Luiz Tavares, alcança a sua 3ª edição sob a chancela da Universidade de Santiago, ampliado com onze novos poemas, uma entrevista à Maria João Cantinho resgatada da revista Storm-magazine e pela 1ª vez com tradução para a língua cabo-verdiana. Motivo maior para celebrar este relançamento, o que faz jus à atuação contínua do poeta na língua mãe, ora na criação de poemas, ora na tradução de textos lusógrafos.

Impressiona em Paraíso... a depuração da língua portuguesa em uma autêntica reinvenção da linguagem já descrita por José Luis Hopffer Almada, explorando os limites do verbo e do labor poético com imagens por vezes insólitas e surpreendentes na rememoração criativa da infância – “pátio paraíso onde é sempre/ estio” – do poeta na rural Chão Bom, Tarrafal de Santiago: “Descer – ao chão antigo,/ agreste, familiar; (...) Regressar – à vida rude, elementar,/ Desacontecidos sucessos/ são matéria deste livro, precário/ edifício, como tudo o que é erguido/ pelo cuspo da poesia”.

Para reconstruir o passado evoca a casa, lugar primordial: “Ali fora a casa. Lugar/ das domésticas deflagrações”. Memória esgarçada recriada por uma sensível tessitura: “Às vezes, é de tudo o que não falamos/ que me recordo. Então uma cicatriz de doçura/ assalta-me os inacontecidos gestos (...) mas já não tenho a certeza se pisei esses/ polvorentos caminhos”.

As figuras marcantes desses dias estão nos poemas agrupados em Retratos Cativos. As mães ganham especial destaque: “São elas, as mães./ (...) Assim, /perto de nós, fica o eco / dos seus rostos;/ (...) Sobre as colinas da manhã/ são o mais alto nome do amor”. Cativante a recordação do “cristo de negra pele”, “velho avô de suaves cãs”: “Nele, o perfil alcantilado honrando a ascendência”; assim como as tocantes despedidas do avô quando “eu era ainda da estirpe dos inocentes”: “Erguia então o padre a/ extrema-unção, mas são meus os braços/ estremecendo agora ao derramar dos santos/ óleos”; e da cerimônia da avó: “E fez-se luz sobre a estreita cova/ quando à terra baixaram o corpo de minh’avó (...)/ Pediu minh’avó, expressamente, que assim/ fosse. Duas, três voltas deram-se à igreja; cumprindo-se assim sua última vontade./ Mas por todo esse ano eu não pararia/ de ver a sua curvada figura vigiando/ o alvoroçado recolher dos galispos”.

“Pela sirga da memória” veem outras passagens, como na escola: “Aprendemos verbos e pronomes;/ ao tabefe e à reguada. Cantada a tabuada,/ de pé, em frente ao quadro, com que alívio/ a sineta nos chamava para o intervalo”; e no cotidiano rural: “Olhai o homem que levanta o cenho/ e move o vento do pensamento (...)/ Olhai-o agora caminhando pelos sulcos,/ derramando as sementes no mês exato/ em que as aves pressurosas/ indiciam o destino das colheitas”.

Galardoado com o Prémio Mario António da Fundação Calouste Gulbekian em 2004, a estreia poética de Tavares assevera o pleno domínio do seu ofício, certifica a maturação da linguagem entrecortada por um vocabulário rebuscado que remete à Renascença, tornando complexa e fascinante a sua poesia: “Desde os almudes onde esbraceja a treva/ aos sulcos em que o vitupério uma canção/ verrina, inclina-se essa mulher/ para o fogo que vai crescendo”.

Contudo, ainda assim hialina poesia, paradoxal pela maneira como esse sujeito lírico se expressa em deslumbrantes metáforas, corvídea escritura: “o que no desterro de si mesmo/ sonha o armistício primaveril/ mas a supérstite mão do criador/ transforma em eterno arauto da catástrofe”, posto que “é disso feito o poema;/ inda o não saibas, tudo o que nele entra/ tinge-se de penumbra e mistério”.

Paraíso Apagado por um Trovão enquadra-se entre o que há de melhor na poesia cabo-verdiana, quiçá, em língua portuguesa, proporcionada por este partícipe incontestável da reconfiguração da linguagem poética, José Luiz Tavares, “aquele que de novo refaz/ a obscura trama do mundo”.

Um comentário:

Val Du disse...

Oi, Ricardo.
Como vai?

Muito interessante esse texto.
Uma descoberta para mim.

Boa semana.

Beijos.