domingo, 24 de agosto de 2008

Maria Celestina Fernandes: contra a grande desilusão da utopia, a poesia


À bela pátria angolana
nossa terra, nossa mãe
havemos de voltar

Havemos de voltar
À Angola libertada
Angola independente

(Agostinho Neto – Havemos de Voltar)

É essa ansiedade obstinada
De ver os meus irmãos
Renunciar a destruição generalizada
Que se propuseram edificar,
Dessa forma tão obstinada...
(Maria Celestina Fernandes – Angústia)


As duas epígrafes contrapondo anseios distintos da poesia angolana, demonstram que os poetas revelados a partir da década de 1980 tecem um profundo e tenso diálogo com as gerações anteriores, mais precisamente com os que sedimentaram a poesia de cariz nacional, ou seja, os pioneiros do sentimento de angolanidade representado na revista Mensagem, dentre os quais, podemos citar além de Agostinho Neto, Viriato da Cruz e António Jacinto. Da “geração das certezas” à “geração das incertezas”, ou como menciona Inocência Mata: da “espera esperançosa” à “espera desencantada” (MATA, 2006). Que fatores motivaram essas mudanças? O pequeno livro de poemas “O meu canto” (Luanda: UEA, 2004) de Maria Celestina Fernandes, pode ajudar-nos a refletir o desencanto presente na produção literária angolana atual.

Maria Celestina Fernandes é integrante da geração que cresceu durante a guerra colonial e atingiu a juventude na independência angolana, em 1975. Sua formação literária se deu com a leitura dos contundentes poemas em amor e exaltação ao país e à liberdade, sentimento que não pode ser compartilhado por ela e seus contemporâneos em razão da decepção causada pelos descaminhos da revolução. Luís Kandjimbo, poeta e crítico literário, alcunhou a produção de poesia angolana dos anos 1980 como a da “geração das incertezas”, posterior à “geração do silêncio”, surgida nos anos 1970, que revelou nomes como Arlindo Barbeitos e Ruy Duarte de Carvalho. Carmen Lucia Tindó Secco esclarece as renovações trazidas ao corpus literário angolano nas duas décadas supracitadas:

“voltada para a redescoberta ética e estética da palavra poética (...), tendo-se caracterizado pela consciência crítica em relação ao ato de escrever (...). O poema passou a ser, desse modo, o lugar de encontro do poeta consigo mesmo, o local, portanto, da descoberta existencial, política e literária. Nesse sentido, deu passagem à poética dos anos 1980, que radicalizou, em vários aspectos, as conquistas estéticas da década de 1970, diferenciando-se dela, contudo, por não adotar a práxis do silêncio.” (SECCO, 2006, p. 93-94)

Replanejar o país, repensar a poesia e valorizar a cidadania são algumas das atitudes assumidas pelos novos poetas no período pós-colonial que, segundo Carmen Lucia Tindó Secco:

“Muitos dos poetas da poesia angolana das últimas décadas fazem de seus poemas lugares de novas memórias pelas quais buscam repensar o cotidiano da sociedade, refletindo sobre a persistência das tradições, a fragilidade das mudanças sociais e as novas formas de relações humanas existentes nos tempos atuais. Transformam, desse modo, suas composições poéticas em locais políticos, onde o amor, os sonhos e a amizade surgem como alternativas críticas para libertar o pensamento e os sentimentos de cada cidadão dos paradigmas partidários utópicos e fechados, característicos dos tempos regidos por um ethos revolucionário.” (SECCO, 2007, p. 160)

Diferente da geração que sentiu com maior intensidade o jugo colonial, notabilizada por “uma retórica que buscou partilhar memórias imaginariamente históricas e sociais e coletivizar angústias e aspirações (...), que intentava a construção de um corpo uno e coeso, dentro dos propósitos do nacionalismo” (MATA, 2006, p. 26), a poesia contemporânea recorre a temáticas do passado rebuscando os sonhos irrealizados da nação independente, com ampla diversidade estética. Entretanto,

“operando um processo canibalesco, no sentido da devoração como metáfora da assimilação crítica dos elementos da estética fundacional, com a condição de esses elementos retirados serem reelaborados em moldes do contexto histórico, sob a urgência das várias tensões fraturantes da sociedade angolana atual”. (MATA, 2006, p. 27)

Há semelhanças nas temáticas abordadas pela nova geração. Embora o discurso dos poetas do pós-colonialismo continue a versar o espaço geográfico angolano, este não reaparece como exaltação de suas belezas aliado ao nós coletivo, mas sim, em ruínas, ruínas da capital do país dilacerado pela guerra associada às ruínas da condição humana deste início de século:

Oh, Luanda! Bela capital
Desta Angola grandiosa, (...)

Que das águas do Atlântico emerge graciosa,
Impulsionada pela força mágica da Kianda matriarcal
De onde retira resistência assombrosa.

Desafortunadamente, sobre a natural beldade
Foram semeando em abundância o caos, cidade linda,
Emergindo, assim, pelos teus cantos e recantos, qual
cogumelos, fealdade...

mas com toda a dignidade
reergue-te bravamente, Luanda,
para que não sintas, nunca, vergonha de te mostrar em
plenitude... (p. 20)

Para resistir aos séculos de opressão colonial e às fraturas da guerra pós-colonial, o eu lírico revisita o passado mítico do povo angolano e convoca a força da Kianda, deusa do mar, para auxiliar na reconstrução nacional. Ao rememorar o passado, Inocência Mata afirma que para a atual geração “o redimensionamento crítico do discurso sobre a nação” é alimentado pelos sonhos irrealizados da revolução, “embora sempre ainda a partir das coordenadas do projeto nacional” mostra que o “‘país real’ já não permite a euforia do canto celebrativo” (MATA, 2006, p. 38).

Depreendemos que o poema de Fernades é um contraponto ao poema “Havemos de voltar” de Agostinho Neto. Enquanto neste, Angola, com suas belezas e riquezas: “Às nossas minas de diamantes (...)/ Aos nossos rios, nossos lagos/ às montanhas, às florestas” (NETO, 1986, p. 126), opõe-se à invasão do colonizador, Fernandes reatualiza a resistência contra o inimigo interno, os próprios angolanos, apoiados pelas potências da então Guerra Fria, e posteriormente pelo neoliberalismo.

Dor intensa é sentida pelo eu lírico com os terríveis acontecimentos consumados em tempos de exceção, da destruição exacerbada realizada pelos angolanos que destroem vidas indiscriminadamente:

Por entre os destroços
das carruagens do combóio em chamas,
ateadas por mãos fétidas,
a vida se acasalou com os horrores do inferno:
fogo, sangue, grito e lágrimas = morteeeeeeeeee...
No ar o odor irrespirável de carne abrasada
dos filhos da pátria traiçoeiramente trucidados.
desconseguimos chorar com olhos secos,
Poeta Maior...

No Zenza do Itombe
Massacre!

Vítimas de Zenza do Itombe: - Presentes!
Os irmãos angolanos jamais vos esquecerão... (p. 35)

Os ‘olhos secos’ evocados pelo eu lírico foram sugeridos pelo Poeta Maior Agostinho Neto, contudo, em um contexto em que a violência desmedida era aplicada pelo colonizador português. No poema “Criar”, Neto invoca os angolanos a resistir à opressão colonial:

Criar criar
gargalhadas sobre o escárnio da palmatória
coragem nas pontas das botas do roceiro
força no esfrangalhado das portas violentadas
firmeza no vermelho sangue da insegurança
criar
criar com os olhos secos

Criar criar (...)
paz sobre o suor sobre a lágrima do contrato
paz sobre o ódio
criar
criar paz com os olhos secos

Criar criar
criar liberdade nas estradas escravas
algemas de amor nos caminhos paganizados do amor
sons festivos sobre o balanceio dos corpos em forcas simuladas

criar
criar amor com os olhos secos (NETO, 1986, p. 81-82)


Destruído o país, assolado pela ganância desmedida de seus governantes e pela estupidez de um conflito fratricida, o eu lírico, em súplicas, questiona “Para onde remeteram teus sonhos/ do promissor futuro para todos?” (FERNANDES, p. 33). O desejo da terra livre, tantas vezes decantado nos versos dos contemporâneos de Neto, acompanhado por suas belezas geográficas, seus costumes e conclamando o povo angolano a se unir por uma causa libertária que traria a promessa de um novo tempo, foram substituídos pela tristeza e melancolia motivados pela perpetuação da miséria no pós-independência:

Em cada canto alguém suspirando
a cada passo um mendigo
a cada instante alguém agonizando
em cada encruzilhada um assalto
em cada boca um lamento
no seio do povo
lamento uníssono... (p. 31)

Os flagelos da violência desmedida por anos de horror fixam marcas indeléveis na população indefesa, deixando as pessoas desnorteadas, em estado de torpor:

Caminhantes que vão e vêm
e vêm por caminhos tortuosos,
caminhantes que sobem
e descem por infindáveis degraus nebulosos,
sem mesmo saberem o que buscam,
em seus ombros trouxas pesadas que nada carregam,
sua fala é o silêncio,
no olhar só desesperança. (p. 30)

Do sonho libertário de uma nova nação para o pesadelo há tempos enraizado entre os angolanos dilacerando as esperanças, é denunciado pelo eu lírico: “Inviável se torna o sonho, por demais adiado,/ de um melhor amanhã...” (p. 29). Nem as metáforas relacionadas ao elemento primordial ar conseguem suprimir o desespero atingido pela situação angolana. Não há espaço para a paz e o vôo livre do verso não consegue ser alçado diante da ferocidade que devasta o país. Com isso, o desencanto predomina nos poemas, como depreendemos nos dois exemplos a seguir:

POMBA
Era uma pomba imaculada
quando chegou ao meu pombal;
Uma pomba vitalizada,
portadora de mensagens de fé/paz

partiu, voou pelos lugarejos mais próximos,
arribou em paragens bem mais distantes
deste desafortunado país;

era uma pomba vermelha de sangue
quando regressou ao meu pombal;
Uma pomba desvitalizada,
mensageira de terror/medo. (p. 34)

AQUELE ROUXINOL
Aquele rouxinol
morava na gaiola
do meu peito,
eu sentia suas canções
ora tristes, ora alegres
pelo pulsar do coração;

mas o pulsar do coração
deixou de anunciar
os cantares de rouxinol,
alarmei-me: - esperei, esperei e nada mais senti

Desesperada bati fortemente em meu peito
e suas entranhas libertaram aquele rouxinol;
arribou em plena palma da minha mão
quedo e mudo,
- sem vida

sem vida também
ficou para sempre o pulsar
do meu coração. (p. 42)

A desesperança pela longa duração da guerra entre os angolanos exige que o eu lírico procure uma difícil e necessária reconciliação entre os povos, árdua tarefa diante dos excessos cometidos e das máculas nas mentes daqueles que viveram as bestialidades do conflito. Recorre-se aos tempos do outrora para celebrar a união ao redor da fogueira, local de confraternização e aprendizado com as histórias contadas pelos mais velhos e, assim, reparar as nódoas entre etnias para iniciar a restauração do país:

Irmão!
Não importa de que lado estás
ou mesmo o que pensas,
vamos todos colher lenha
para acender a fogueira da paz...
entrelacemos vigorosamente nossas mãos
de modo que ninguém possa apartá-las
e, à volta da fogueira,
rodando e cantando, cantando e rodando,
como em tempos de meninice,
façamos uma corrente de fé,
para despojar de nossos corações
os muitos rancores há muito enraizados (p. 32)

Apesar da chegada da paz com o fim da guerra encerrada recentemente, a insegurança permanece no ar, impera uma atmosfera de desconfiança entre os cidadãos com décadas de conflitos e acordos que não foram cumpridos. A paz precisará de tempo para que as pessoas possam retomar o ritmo normal de suas vidas, ou como esclarece Carmen Lucia Tindó Secco: “os poetas começam a perceber que a paz é recente e é urgente ocupar os lugares de cinza deixados pelos longos anos de guerra” (SECCO, 2007, p. 169). Todavia, o eu lírico ainda incerto e desconfiado com a serenidade presente, e calejado por anos de turbulência e intolerância, alerta:

És feliz agora?
Então goza intensamente cada segundo
Disto que pensas ser a tua felicidade,
Pois pode ser momento efémero e singular (...) (p. 17)

Revitalizar os relacionamentos com os seus afetos, é o caminho traçado pelo eu lírico para dissipar a insensibilidade causada pelos infortúnios vivenciados. Por isso, celebra as mulheres: “a fonte geradora da vida” (p. 38); a família: “Tenho duas lindas pérolas (...)/ Tão raras são as minhas pérolas/ Que, para seguramente as proteger,/ em meu coração as encofrei” (p. 37), a mãe não mais presente: “Sonho/ Sonhos tão doces, mãe!” (p. 43); e roga o retorno à paz do passado em um esforço criativo de refazer os tempos felizes e tranqüilos do outrora:

Fica comigo, amigo,
Vamos recordar o passado
Porque vale sempre a pena rememorar
O que se viveu, para avaliar o que se vive. (...)

Repousaremos despreocupadamente como nos velhos tempos
Da nossa ingénua /feliz adolescência.

Fica comigo, amigo! (p. 43)

Lançado em 2004, vinte e nove anos após a independência angolana e somente dois anos depois da duradoura guerra civil, ainda sob seus ruidosos e sangrentos ecos, podemos explorar a multiplicidade interpretativa do título do livro de Maria Celestina Fernandes. Os poemas reunidos em “O meu canto” questionam-nos a respeito da polissemia da palavra ‘canto’. Qual canto o eu lírico versa? Será o canto do espaço físico, o canto de uma casa? O canto geométrico? O canto de um pugilista que faz das palavras suas armas de combate? O canto oprimido do poema, confinado às margens do livro? Ou é um canto polifônico de pranto, de dor, de esperança?

O pequeno livro de Maria Celestina Fernandes inicia-se e encerra-se com poemas que valorizam o Amor. Amor aos seus conterrâneos, amor ao seu país tão sofrido por tantas opressões e fraturas ao longo dos séculos. Amor à história literária angolana, amor ao desejo de paz e união entre os homens para finalmente concretizar o projeto de reconstrução da nação angolana.

‘O meu canto’ é um canto de resistência, é um canto de amor à poesia, aos homens, à paz.

O meu canto é acordar
todos os dias
e ter a certeza de continuar a sonhar (...)

O meu canto é acordar
todos os dias
e ter a certeza que vale a pena continuar a amar. (p.13-14)

Quando eu morrer (...)

Honrem tão somente a minha memória
Perdoando o mal que alguma vez causei,
Preservando tudo o que de bom pude transmitir
- Sobretudo, nunca se cansem de Amar! (p. 48)


Ricardo Riso


BIBLIOGRAFIA:
FERNANDES, Maria Celestina. O meu canto. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2004.

MATA, Inocência. Sob o signo de uma nostalgia projetiva: a poesia angolana nacionalista e a poesia pós-colonial. In: Belo Horizonte: Scripta, v. 10, n. 19, p. 25-42, 2º sem. 2006.

NETO, Agostinho. Sagrada Esperança. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1986.

SECCO, Carmen Lucia Tindó. Sendas de sonho e beleza (algumas reflexões sobre a poesia angolana de hoje). In: CHAVES, Rita; MACEDO, Tânia (ORG). Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.

SECCO, Carmen L. T. R. A poesia angolana atual e a procura por outras formas de politização. In: CHAVES, Rita; MACEDO, Tânia et alli. (orgs). A kinda e a missanga: encontros brasileiros com a literatura angolana. São Paulo: Cultura Acadêmica; Luanda: Nzila, 2007.

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