quinta-feira, 18 de outubro de 2007

nada a dizer

noite fria, chuvosa. decido não sair, fico em casa. olho para a tela incompleta pendurada na parede, toda preta, tudo preto. no som, perfect day do álbum transformer, lou reed na fase glam rock. um tanto lisérgico, um tanto depressivo como os anos 70 ou como sempre foi.
uísque no gargalo, resolvo preparar um baseado. toca o telefone, atendo. é ann do outro lado.
- oi, tudo bem?
sua voz está empolgada, apesar de certa indecisão.
- tudo, e você?
- estou com saudade, precisava falar contigo...
- tô escutando...
- o que cê tá fazendo?
- nada de novo. preparando um cigarro.
- então! não fume do teu. venha para cá! consegui um boldinho com a paty.
imagino-a sentada na ponta da poltrona, coluna ereta, a mão direita enrolando os cabelos, os olhos elétricos aguardando resposta.
- tá chovendo. é domingo. vou levar um tempão para chegar até aí.
- ah, vem! tem um vinho na geladeira...
- vinho é uma. espera um pouco.

(silêncio)

- oi! fui pegar um colomy.
- amor, venha para cá! preciso de você, tô tão sozinha... olha! peguei um filme: “medos privados em lugares públicos”!
- filme para pensar, bom título, é o que rola. mas prefiro um que me leve a sonhar...
já sinto sua aflição do outro lado da linha. não pretendo sair, muito menos vê-la.
- o que houve? você está bem?

(silêncio)

ela sabe respeitar meus silêncios, por isto admiro-a. todavia, não dura muito tempo, por isto odeio-a.
- amor, estou falando com você...
- ah, oi, estava procurando o isqueiro – acendo o cigarro e trago longamente.
- olha, tem um rango especial que você adora: lula com arroz e brócolis.
- show... mas o que fez hoje?
- ah! encontrei aquele disco do beto guedes que você tanto fala, contos da lua vaga. é lindo demais, pensei em você direto! já escutei várias vezes: “o tema da canção / meu coração guardou / para dar a quem trouxer / a mensagem dos caminhos / livres...”
- mandou bem, grande disco. contudo, não consigo mais viajar em beto guedes... tô em outra. não creio mais, sei lá...
- pára de reclamar! sei que você adora-o e conheci contigo.
o assunto começa a me cansar. não digo a ela, mas deveria falar que não agüento mais as canções de beto guedes.
- amor, andei lendo o jornal hoje e tinha uma notícia aterrorizante.
- é?! acho que sempre há...
- deixa eu falar! robôs preparados para atuar na guerra, acredita? são robôs que serão utilizados em um futuro próximo nas linhas de frente dos combates. os eua pretendem ter 1/3 das suas forças assim. e o pior! estudam para que eles sejam inteligentes e tomem decisões acerca da vida de uma pessoa! é um absurdo!!!
- como em robocop, o filme, respondo com desinteresse.
- exato, amor. a matéria fala que esses robôs já são usados na coréia do sul e alguns outros países. diz também que os eua já usam aviões automáticos para atacar seus alvos. terrível!
- assim os soldados não se abalam com as mortes causadas e provavelmente, com tal atitude, impedirá qualquer pedido de indenização por trauma, depressão ou qualquer coisa desse tipo. a guerra finalmente vira um jogo de playstation. jean baudrillard já havia dito isto sobre a guerra da bósnia ou do iraque feita pelo bush pai.
- como podem lidar assim com o destino de milhares de vidas?
- o homem é isto que está aí, não há respeito à vida, às pessoas insignificantes que estão nessas áreas de conflito – respondo com voz arrastada querendo encerrar a conversa enquanto acerto o nó.
- outra notícia: o governo aumentará a verba e o contingente para a força nacional. depois de passar pelo espírito santo, rio, mato grosso e maranhão, ela irá para pernambuco, bahia e são paulo, e até dezembro voltará para cá.
- resolveram assumir a exclusão dos miseráveis, o refugo humano. cada vez se concentrarão mais nos serviços de segurança privada. não se preocuparão mais na solução de problemas sociais como moradia, educação, saneamento, saúde. deixarão entregues à própria sorte os excluídos, os conflitos urbanos serão constantes: os miseráveis bárbaros com paus e pedras enfrentarão as milícias particulares, ou os uniformes assassinos, equipados com alta tecnologia a proteger as cidades de muros encurraladas pelas favelas. não quero viver para ver isto. é o fim!
- também li que aproveitarão o derretimento do ártico para rotas comerciais de navios. não estão nem aí para o aquecimento global. são uns filhos-da-puta!
resolvo trocar o disco, o fone está torto em meu ombro e faço malabarismo para que não caia, apesar que se cair não fará diferença. coloco wish you were here, do pink floyd, procuro o incenso e mais uma vez o isqueiro.
- amor!

(silêncio)

- oi!
- o que você acha do derretimento global?
- eu? não acho mais nada. no teu disco, beto canta: “terra és o mais bonito dos planetas / tão te maltratando por dinheiro / tu que és a nave nossa irmã / canta / leva tua vida em harmonia...” acho que não há mais sentido para este tipo de idéia. nascemos durante as trevas da ditadura do médici, nossa geração está marcada pela escuridão. vimos quando crianças os comícios das diretas já!, talvez o único momento de luz. dezoito anos depois a farsa da vitória do lula e do pt. lennon vaticinou: the dream is over! é isto, não há mais nada a dizer, fazer, pensar, lutar, sonhar. nem amor. eles venceram...
- não fala assim, amor, ela chora do outro lado da linha, com os ombros escondendo o pescoço. já conheço a cena.

(silêncio meu, choro dela)

- consultei seu mapa hoje. é netuno regendo o período do mês e nos deixa confusos, sombrios. turva as soluções, fortalece a sensação de distopia, a crença no caos. não é ruim, ainda temos um ao outro.
o papo esotérico deprime-me. detono a garrafa de uísque. coloco o álbum closer, do joy division, a música só poderia ser love will tear us apart.

(silêncio)

- amor, você tá aí? (choro) amor... (choro)
pego o fone do chão, escuto sua voz, ela permanece chorando... ouço a música do outro lado: “são vidas dos belos horizontes / gente das mais preciosas fontes / onde ser é ternamente brotar...” não respondo... o celular toca, não atendo...


rapaz é encontrado morto em apartamento. o elemento foi achado pela namorada e estava preso por uma corda no ventilador de teto. vizinhos afirmam que o suicida era anti-social, usava drogas e promovia orgias constantes. segundo moradores que não quiseram se identificar, o rapaz teria dívida com traficantes. a polícia investiga o seu suposto envolvimento com o tráfico de drogas da região.


riso,
14/10/2007

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