terça-feira, 30 de outubro de 2007

Manuel Rui - A casa do rio


Novo livro do escritor angolano Manuel Rui, A Casa do Rio. Manuel Rui estará presente no III Encontro Internacional de Professoras de Literaturas Africanas, participará da palestra de abertura ao lado de Luandino Vieira, Boaventura Cardoso e João Melo. Onde? Fundação Biblioteca Nacional. Quando? 21/11, às 11h.
Riso


Começaram a almoçar e Antero recontou à mais-velha a sua saída, obrigado e mandado pelo administrador do Posto do Chipindo e ainda ela quis saber da vida no Puto, que ainda tinham lá um parente nas obras que mandara uma carta em mãos, a falar que viria de férias. Antero quase não ouvia nada e, nas piadas, exagerava no riso para, de cabeça baixa, sentir as lágrimas a misturarem-se nos lábios com a comida que nem saboreava. Era melhor não avançar nada sobre a casa, tanto mais que não seria ali o lugar, bem altaneiro, e a casa era numa baixa, sopé das serras. Mas, para não esquecer, adiantava entregar o recado ao irmão e só depois de almoçados, aí sim, a factura para a motorizada.
«Paquito. Guarda esse bilhete no bolso. É dos teus sobrinhos.»
«Já foi há muito tempo, mas soube que o mano Gandi morreu. Mas também sei que a madrinha, a mãe, está viva, mas o mano não trouxe fotografias dos meus sobrinhos?»
«Não trouxe, desculpa foi tudo à pressa e ainda graças ao primo Juca. Nem hoje. Há tempo para te contar como vim parar aqui. Quer dizer, tinha que vir. Mas vou-te mandar as fotos que não vamos perder mais o contacto.»

Género(s): Literatura/ Ficção/Romance
Acabamento: brochado
Dimensão: 13,4x21 cm
Páginas: 340
Peso: 400 g Colecção: «Outras Margens», n.º 67
Código: 93.067
ISBN: 978-972-21-1894-1
1.ª edição: Setembro 2007
Preço: 14,70 €

Mia Couto: Idades Cidades Divindades

Novo livro de poesia de Mia Couto.
http://www.editorial-caminho.pt/
Idades Cidades Divindades
Mia Couto

Idades Cidades Divindades é uma das raras incursões deste autor na poesia, colocando ao serviço do verso todos os reversos de que a sua língua particular se veste, reveste e tresveste, sempre com uma admirável acutilância na forma de ler o mundo.

Género(s): Literatura/ Poesia
Acabamento: brochado
Dimensão: 13,4x21 cm
Páginas: 126
Peso: 156 g Colecção: «Outras Margens», n.º 69
Código: 93.069
ISBN: 978-972-21-1896-5
1.ª edição: Setembro 2007
30-09-2007.ª edição: Setembro 2007
Preço: 7,99 €
Lições

Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.

Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.

Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.

Trémula, a haste
me pede
o adiar da noite.

Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.

Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.

Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?
(Maputo, 2006)

Mia Couto: Idades Cidades Divindades (Lisboa: Caminho) » 2007 » pp. 27-28

Habana Blues

Habana Blues (2005)
Direção: Benito Zambrano
Elenco: Alberto Joel García Osorio, Roberto Sanmartín, Yailene Sierra, Tomás Cao Uriza, Zenia Marabal, Marta Calvó, Roger Pera.

Um filme baseado na música cubana traz logo à mente o belo Buena Vista Social Club, com suas salsas, merengue e tais de Compay Segundo, Ibrahim Ferrer e outros. Uma Havana que podemos dizer folclórica. Felizmente, isto não acontece na película de Benito Zambrano, Habana Blues, que retrata a cena underground contemporânea de Havana, com muito rock, reggae, rap, heavy metal e outras misturas (Raprockandrollpsicodeliahardcoreragga, do Planet Hemp, lembra? É por aí.) em meio à amizade de dois músicos que vêm seus caminhos sendo separados quando aparece a oportunidade de deixar o país e tocar no exterior.

Tito (Roberto Sanmartin) e Ruy (Alberto Joel Garcia Osorio) são os personagens principais de um filme que possui caráter quase documental ao apresentar os sons feitos pela juventude e a decadência do país. A partir do convite feito por uma dupla de produtores espanhóis, que pretende levá-los para a Espanha, os dois amigos percebem a esperança de vencer na música, sair da ilha e ter uma vida com mais liberdade e sem a miséria que ronda suas vidas.

Contudo, a proposta é baseada em condições que prendem os artistas ao contrato: receberão uma pequena porcentagem, terão que mexer nas músicas e, no exterior, deverão fazer propaganda anti-castrista, ou seja, tornar-se-ão escravos de um capitalismo feroz. A partir daí, os dois amigos ficam com a amizade abalada pela escolha de diferentes caminhos. Tito é jovem, solteiro, detesta as condições de vida oferecidas pelo sistema político cubano. Sente-se sufocado pela falta de liberdade e pelas dificuldades financeiras para produzir música e sobreviver. Enquanto Ruy tem um relacionamento conturbado, próximo da ruptura, com a esposa Caridad (Yailene Sierra), mãe de seus dois filhos, que não agüenta a incerteza da vida de Ruy.

O filme mostra o dilaceramento das vidas de uma geração que presencia o pior momento do socialismo em Cuba, que não possui mais a ajuda financeira da extinta União Soviética e sofre com o perverso bloqueio econômico norte-americano. São pessoas que sentem que suas vidas serão desperdiçadas enquanto estiverem na ilha, tendo que agüentar a falta de energia, bicos que podem envolver contrabandos para aumentar os parcos salários, o telefone comunitário, a cidade em ruínas.

A condição insular só piora a situação dos personagens. Caridad resolve abandonar Ruy e encarar o perigo de uma viagem clandestina rumo a Miami com seus filhos. Tito, desesperado com a recusa do parceiro em ir para a Espanha, briga com o amigo e ameaça denunciar os produtores espanhóis caso a viagem seja cancelada. E Ruy, perdido e confuso com os recentes acontecimentos, vivencia a contradição de continuar com a sua carreira incerta no país, a vontade de partir, mas sem se vender à exploração capitalista, pois como diz: “Eu já traí muita gente na vida, mas minha música não”, além da impotência em reconquistar a esposa e nada fazer para impedir a viagem. Com tudo isso acontecendo com as pessoas mais importantes em sua vida, agarra-se ao show de lançamento da banda em um teatro decadente de Havana, tentar aparecer no cenário cubano e, assim, permanecer no país.

O problema é que o personagem de Ruy é indeciso, um tanto estranho. Aceita com passividade que sua mulher vá para os EUA com seus filhos. Mesmo quando rompeu o contrato com os espanhóis, alegando que não serviria ao neoliberalismo, não apresenta em outras passagens maiores preocupações políticas. E o seu desejo de sair não é tão forte quanto o de Tito. Ruy talvez retrate bem os jovens de hoje.

Ao expor as contradições de uma juventude desencantada com o país, Benito Zambrano realizou um filme comovente e triste que denuncia a situação atual de Cuba. Contudo, não apresenta alternativas à realidade cubana, fica apenas nas imagens de pobreza e decadência da cidade e no vazio da existência indefinida de Ruy. O que não deixa de ser um sentimento típico dos jovens dos países periféricos, que percebem seus países assolados pela corrupção, miséria, violência e distopia. Mas o que fazer diante de tanta desilusão?

Riso

João Tala: Lugar Assim

João Tala é um representante da novíssima geração de poetas angolanos, tendo publicado seu primeiro livro, A forma dos desejos, ganhador do Prémio Primeiro Livro da União dos Escritores Angolanos em 1997. Desde então publicou O gosto da semente (2000), que recebeu menção honrosa do prêmio literário Sagrada Esperança/2000, A forma dos desejos II (2003), Lugar Assim (2004) e A vitória é uma ilusão de filósofos e de loucos (2005).

Nascido em Malanje, em 19 de Dezembro de 1959, iniciou suas atividades literárias na década de 80, quando morava em Huambo e fazia o serviço militar. Nessa época, fundou a Brigada Jovem de Literatura Alda Lara e entrou na Faculdade de Medicina. Como médico, trabalhou na Lunda Norte e em Luanda. Chegou a estudar (ou estuda – não posso afirmar) medicina interna no Brasil.

O primeiro contato que tive com a poesia de João Tala foi na antologia de poesia angolana contemporânea publicada na Revista Poesia Sempre nº 23 (Fundação Biblioteca Nacional) e, posteriormente, em uma aula sobre Literatura Angolana, ministrada pela Profa. Dra. Laura Cavalcante Padilha. Foram dois momentos de encantamento com a força poética do autor. Faltava um contato maior com a obra do poeta, ou seja, um livro. Até que consegui Lugar Assim.

A geração literária de João Tala, nascida no pós-independência angolano, é marcada pela desilusão com os caminhos trilhados pela história recente país. A amargura, a dor e a melancolia são temas constantes entre seus contemporâneos, justificado pelos longos e sangrentos anos de guerra entre o MPLA e a UNITA, somente encontrando a paz em 2002.

Os referidos temas já eram trabalhados pelos escritores angolanos desde os anos 1980, época em que começa a ocorrer um processo de desencanto com a não realização das promessas da revolução. O poeta e crítico literário Luís Kandjimbo define os poetas do período como a geração das incertezas, nome de acordo com as indefinidas trajetórias da política e da situação social de Angola. Alguns nomes relevantes que despontaram à época são os de João Melo, Paula Tavares, José Luís Mendonça, Lopito Feijoó, Conceição Cristóvão, entre outros. Tais poetas apresentam novas formulações temáticas e estéticas, aprofundando o caminho iniciado pelos três principais nomes do lirismo angolano dos anos 1970, Arlindo Barbeitos, David Mestre e Ruy Duarte de Carvalho.

Nos anos 1980 cresce a heterogeneidade da poesia angolana. Segundo Carmen Lucia Tindó Secco:

“A poesia dos anos 80, e também a dos anos 90 têm, como traço constante, a temática da decepção e da angústia diante da situação de Angola, que ainda não resolveu completamente a questão da fome e da miséria. As dúvidas em relação ao futuro interceptam as possibilidades entreabertas pelos ideais libertários dos anos 60, e a poesia se interioriza, não se atendo explicitamente às questões sociais.” (CHAVES, 2006, P. 94)

A melancolia desses anos passa por todos os anos 1990, com o desespero da longa guerra e caos social que se instala no país, entretanto, como assinala Carmen Lucia Tindó Secco, “observamos que a poesia dessa fase nunca deixou de se oferecer como força geradora de utopia, pois os poetas continuaram a crer no poder transformador da linguagem poética”. (Idem, ibidem, p. 101)

Em Lugar Assim, a distopia angolana é tratada em poemas que fazem da metalinguagem a sua principal fonte para combater o dilaceramento social e os sonhos esgarçados do país. Sobre João Tala, Tindó Secco comenta que “a crença no gume das palavras e na raiz da própria poesia transferiu os sonhos para o universo dos poemas, o que fez com que a literatura e as artes em geral se tivessem constituído em locais privilegiados de resistência”. (Idem, ibidem, p. 99)

Os poemas do pequeno livro são divididos em três partes: Economia, Mãos Textuais e o Corpo da Palavra, e Remendos da Memória, que, de certa maneira, ligam-se entre si pelas referências à palavra, a inspiração para os diversos assuntos versados pelo eu-lírico, como o desejo por palavras sem as cicatrizes causadas pelo horror da guerra:

Os dias fundam breves caminhos sobre as palavras.

Não reclamo palavras economizadas,
a grande fortuna, não.

(Nem uma imagem profunda nem
um abismo em nós.)

Não reclamo palavras estafadas ou
mesmo ressentidas, marcadas de novas
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx[cicatrizes, não
Apenas reclamo palavras de redenção
guardadas entre as revoltas.
(Lugar Assim, p. 11)

O problema dos deslocados de guerra, que eram povos do interior obrigados a abandonar suas cidades, é denunciado no poema:

“(...) A certeza da incerteza é um desvio demográfico,
Imaginação metódica duma população aos pulos.
Brevemente, num só começo, somos possíveis celeiros
- corpos duma geometria fugaz onde medra o grão.”
(Ibidem, p. 12)

Em Economia, os poemas são metonímias daquilo que não há, da ausência que paira na atmosfera social angolana. A revolta com o esfacelamento do país é apresentado na dificuldade em revelar o que é visto:

“o mínimo que posso pronunciar é uma palavra pontilhada,
um grão. talvez uma pupila que ninguém abriu.
sedentos de enigmas configura-me rosto de estio, esta secura
ajusta-se às minhas palavras através desta face enchida de
olhos veementes em sinal de fogo. o fogo posto na carne.”
(Idem, p. 13)

O eu-lírico indigna-se com a realidade vivenciada pelo oprimido, toma partido e faz do poema espaço de resistência contra a opressão, em rabiscos (gatafunhos) desmascara o silêncio:

“Demasiado o verso fulcral em bocas de traumatizados
são lágrimas devotas o diálogo sem pão;
volto aos problemas, puxo a língua do oprimido e
com a caneta verbal o debate repousa
nos seus enormes olhos tempestuosos, achados na
política geral de meus gatafunhos. – A gíria das bocas
em rebelião.”
(Idem, p. 14)

Nos poemas da segunda parte, Mãos Textuais e o Corpo da Palavra, a metalinguagem aprofunda-se. O ato de escrever torna-se o espaço libertador, o eu-lírico convoca o leitor para fazer poesia. Poesia como alento em “a vida é um vício lírico”:

“Um lápis traçará caminhos e parábolas fecundas;
um lápis vigia-se pelos escombros;
as letras do pensamento são do olvido pessoas
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx[paradas e fatigadas.
têm secretas mensagens com as mãos na
notícia. pega um lápis ensina a sofrer.
toca a escrever poemas.
com as mãos na notícia.
não pode haver outra noite impedida
de nos encher a boca.
(onde é que a intimidade tacteava o chão?)
toca a escrever poemas, minha gente,
há que encher o bairro.
com as mãos na notícia.
Senão a vida será um vício alírico.”
(Idem, p. 24)

A desilusão e a amargura com o quadro político angolano são demonstrados nos versos de “muitas palavras”. O dilaceramento dos ideais causado pelo desencanto com as promessas políticas é o alimento para a distopia:

“As mesmas palavras largadas ao chão cheias de
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx[caminhos.
As mesmas palavras esquecidas largadas nos
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx[caminhos.
Palavras boçais repletas de tempestades.
Palavras insatisfeitas repetidas nos comícios
febris palavras convulsivas palavras complicadas
palavras vazias destemperadas incertezas;
o tédio das palavras muitas palavras!
Todas essas palavras como nos ofuscaram
ninguém mais se lembra. Esquecemo-las nos
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx[comícios.
Nunca mais lhe daremos o valor da palavra
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx[humana
com nossas vidas lidas nos comícios. Nunca mais.”
(Idem, p. 29)

O esfacelamento da dignidade da palavra é de extrema gravidade em culturas que possuem sua transmissão de conhecimento pela oralidade, a descrença na palavra foi o que fizeram os governantes e seus opositores em Angola no pós-independência motivados por fatores da Guerra Fria e posteriormente pelo neoliberalismo, e fraturaram ainda mais as tradições das etnias angolanas.

Na poesia de João Tala a palavra e o corpo estão em processo constante de metamorfose, num delírio surrealizante na confecção do poema que acompanha as realizações do cotidiano do poeta, suas angústias apresentadas em mãos textuais:

“É uma ortografia tangível memória habitável
os seus passos de líricas;
é de palavras assim que assino o homem;
enche o tempo e os cadernos do tempo;
de alma em barro confecciona pequenos dias
de longas líricas, o meu poeta.
Quem o escuta?
Cabe na minha ortografia como a saudade da
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx[palavra;
É um pequeno deus de coisas líricas.
De palavras assim o homem explode a
roda ortográfica tangível – alma da gente;
ou como entendia a notícia de mãos textuais
no corpo da palavra.”
(Idem, p. 30)

Os versos de Remendos da Memória buscam recompor as tradições devastadas. Os sonhos esgarçados por séculos de colonização e guerras e tentam se reagrupar no poema, que canta o fim de um longo período sombrio de feridas cicatrizadas na memória. Para tanto, deve-se recorrer aos valores tradicionais, ao velho tambor (ngoma) e, assim, recomeçar a sonhar com a paz recentemente conquistada:

“Ah! ficaram apenas os túmulos como cicatrizes do olhar.
em que país os olhos são apenas cicatrizes?
não direi nada a humanidade despede-se dos túmulos
os soldados dizem não à guerra por direito próprio.
o meu ngoma sucumbe pela noite pálida o meu Ngoma
é o único instrumento vegetal que realiza o sonho.”
(Idem, p. 39)

Para concluir, percebemos que os poemas de Lugar Assim apresentam a falta de perspectiva com a realidade social de Angola, todavia, João Tala, apesar do amargo de boa parte do livro, ainda assim escreve versos que valorizam a linguagem poética como espaço de resistência da utopia. Com isso, ele segue a tradição lírica angolana de crer em um futuro próspero e justo para um país em construção.

Riso


Outros poemas de Lugar Assim

ONDE ESTÁ O MEU POEMA?

estão aonde os versos da morte, lágrimas do
meu tempo?
eu não sei nem os redigi do pão, da água ou da
mentira.
porque o meu poema cumpre-se a si, é um
corpo fatigado,
temor das esperas.
uma simples conversa não me leva a nada.
o meu poema também é tempo, calor de
gemidos,
musa de línguas ao sol, sons ao faro. lábios
suados.
o meu poema, é assim a rosa palavra de um
rosário.
(Idem, p. 22)


CONSTRUÇÃO DE IDEIAS

Na várzea do texto imploro fundamentos
dum corpo a encher o tempo.
É uma lei como edifício no tempo.
Como entender a notícia de mãos textuais
no meu temperamento?
O rebento dessa notícia é uma crónica
edificada com as mãos no texto.
O benefício será sentir de pensamentos
e outra várzea a tactear bocas do mundo.
Bocas somente no dorso das mãos construtivas.
Com mãos assim toca a encher o Tempo.
(Lugar Assim, p. 26)


O ROSTO IDO(OSO)

Não mais prometo o rosto sem paisagem.
Quero sorrir-me dentro de ti.
E da prevalência de um mundo de dias guardados
o crepúsculo dos sentidos enrugado como
a voz que de súbito é uma caverna;
como o coração de súbito é uma campainha.
(Idem, p. 37)


RIOS DE NÓS

(estes rios fogem de dentro de nós e fora são
promessas de volta ao tempo.
sem passado, eles dirigem-se ao futuro.
do presente só um refresco, minha kota,
só mesmo um refresco da mesma água que
nos lava o corpo; da mesma água que nutre os pastos.)
(Idem, p. 41)


O DAVID MESTRE, RECONHECIDAMENTE

Foste de memória mais longe do que fará a morte.
Grande poeta! Grande pensamento. Sobre o teu
continente múltiplo marcavas o rosto da palavra.
Era esta a fortuna de palavras e ressaibos quando
as mãos fragmentavam o próprio suspiro/estilo?
Assim concluías a jornada: limpo mudo severo.
Qualquer poema traz-te da semente de volta ao chão;
por isso, David, vou já levantar-te do primeiro tambor.
(Idem, p. 45)


LUGAR ASSIM
(para o José Luís Mendonça)

Dizei-me a fúria dessa áfrica que é uma Árvore.
Tempera a voz negra dizei-me um lugar assim.
Na balbúrdia de uanga a palavra respirar.
E onde pensar estrelas a Noite que me acoite.
Dizei-me a Árvore, um ébano me faz igual.
E chegadinho ao crepúsculo só a cor das queimadas.
E a luzir os dedos, as mãos acenam vazias, caricatas.
Como poderei tocar palavras respiradas.
África orgásmica, existe mesmo lugar assim?
(Ibidem, p. 48)



Bibliografia:

SECCO, Carmen Lucia Tindó. Sendas de sonho e beleza (algumas reflexões sobre a poesia angolana hoje). In: CHAVES, Rita e MACEDO, Tania (Orgs.). Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.

TALA, João. Lugar Assim. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2004.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

III Encontro de Professores de Literaturas Africanas – Pensando África: Crítica, Ensino e Pesquisa

Divulgada a programação do III Encontro de Professores de Literaturas Africanas – Pensando África: Crítica, Ensino e Pesquisa. Nomes importantes dos cinco países africanos estarão presentes como Luandino Vieira, Manuel Rui, João Melo, Luis Carlos Patraquim, Nelson Saúte, Ondjaki, Vera Duarte, Paula Tavares, Odete Semedo, Ana Mafalda Leite e outros mais. Além de professores e críticos: Russel Hamilton, Pires Laranjeira, Terezinha Taborda, Marli Fantini...

A seguir os links do evento:
Programação:
http://www.letras.ufrj.br/pensandoafrica/index.php?option=com_content&task=view&id=12&Itemid=20


Página inicial:
www.letras.ufrj.br/pensandoafrica

No dia 22/11/2007, às 13h, Prédio da Faculdade de Letras (Ilha do Fundão), apresentarei minha comunicação.
MESA 35
LOCAL: sala H 311
COORDENADORA: Viviane Mendes de Moraes (UFRJ)
Viviane Mendes de Moraes (UFRJ) - Guita Jr. e Manuela Cruz: memórias, sonhos e incertezas moçambicanas
Fábio Santana Pessanha (UFRJ) - Geogonia de Duarte Galvão
Ricardo Silva Ramos de Souza (UFRJ) - Letras e desenhos encarcerados: a reclusão libertadora na arte de José Craveirinha e Malangatana Valente

Aqui, mais uma vez exponho meus agradecimentos especialíssimos à Profa. Dra. Norma Lima, por ter me inserido nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, à Profa. Dra. Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, pelos livros, e-mails, convites para defesas de teses, aulas e para ministrar palestras, à Profa. Dra. Maria Teresa Salgado, à Profa. Dra. Simone Caputo Gomes. Aos professores e amigos Claudia, Cláudio Capuano, Gisela, Silvinha, Lygia Santos, Fernanda, Lucia Matos, Rosemary Granja, Cláudia Breviário, Stowasser, Mauricio do Carmo, Sabrina, Iasmin, Cristina e tantos outros (a lista é grande!) que me apoiaram até hoje. Toda a força do mundo! Sempre!

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Secos & Molhados: Quem tem consciência para ter coragem

Ontem, durante um papo com minha inteligentíssima amiga Norma Lima, comentamos sobre a banda Secos & Molhados e a nossa admiração por ela. Logo, decidi escrever este post em homenagem a tão escandalosa e criativa banda, que teve uma passagem meteórica pelo sombrio Brasil dominado pelo ditador E. G. Médici.

O conjunto, com sua formação clássica, gravou apenas dois discos entre 1973/1974 e entrou para a história da música brasileira. Primeiro pelo impacto visual com rostos pintados, roupas coloridas e despojadas, visual andrógino, principalmente com o vocalista Ney Matogrosso; e segundo, pela qualidade fantástica dos arranjos, pelos timbres alcançados por Ney e o cuidado com as composições. Essa mistura de visual colorido com ótima música era algo comum à época em artistas estrangeiros como David Bowie, Marc Bolan (T-Rex), um pouco do Lou Reed pós-Velvet Underground e o Kiss. Nomes que ficaram agrupados na alcunha glam rock, e para quem quiser conhecer mais sobre tal fase, basta ver o filme Velvet Goldmine (direção Todd Haynes).

Os Secos & Molhados, em sua formação clássica, era formado pelo já citado Ney, João Ricardo (principal compositor, violão, harmônica e voz), Gerson Conrad (violão e voz) e Marcelo Frias (bateria e percussão). O primeiro e melhor álbum foi gravado e lançado em maio/junho de 1973, no ano seguinte saiu o segundo e derradeiro disco. Depois, a banda ainda tentou continuar com diversas formações, mas não chegou nem perto do nível atingindo nos dois primeiros LP’s. Por isto, enfatizarei o disco seminal.

Em meio à amargura, desilusão, medo e solidão impostos pela ditadura, as composições do álbum Secos & Molhados eram um alento aos corações e mentes sufocados e encurralados pelo terror. Em belas e inusitadas alegorias, as letras dos Secos & Molhados denunciavam o clima tenso e a asfixia vivenciada no período. Todavia, a resistência não deixava de ser cantada em forma metafórica, apesar do forte patrulhamento, dos presos e dos desaparecidos, das mutilações físicas sofridas nos porões da ditadura. Assim dizem os versos de “Primavera nos Dentes” (João Ricardo – João Apollinário), um autêntico rock’n’roll:

"Quem tem consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contra-mola que resiste

Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade, decepado
Entre os dentes segura a primavera"

A ruptura com os valores estabelecidos, dando continuidade à mudança de comportamento iniciada pelos tropicalistas, o desejo de liberdade por um mundo justo e igualitário são apresentados por metáforas que compõem o elemental ar, como o grito que estava sufocado na garganta, às vezes a esperança, às vezes o desespero:

“(...)
Rompi tratados,
traí os ritos.
Quebrei a lança,
Lancei no espaço:
Um grito, um desabafo.
E o que me importa
É não estar vencido.”
(Sangue Latino – João Ricardo e Paulinho Mendonça)

“leve como leve pluma
muito leve leve pousa
na simples e suave coisa
suave coisa nenhuma
(...)
simples e suave coisa
suave coisa nenhuma
que em mim amadurece”
(Amor – João Ricardo e João Apollinário)

“eu solto o ar
no fim do dia
perdi a vida”
(O patrão nosso de cada dia – João Ricardo)

Os vôos da imaginação surgem, espaço libertador por excelência, a vontade de voar e ser livre apresenta-se trazendo a paz que virá em um novo amanhecer:

“ cada um dos
4
como num teatro
voem
pombas
(pombas
brancas)
... e amanheça”
(Prece Cósmica – João Ricardo e Cassiano Ricardo)

Entretanto, não há flores, não há paz. O clima é tenso, pesado, cruel. O desamparo e o desespero rondam as mentes. O grito das andorinhas é de agonia. A ausência da nota musical Sol, pode indicar a falta de luz do astro Sol em um período dominado pelas trevas. Vale frisar a experiência formal na construção do poema de Antonio Nobre:

“-Nos
-fios
-ten
-sos
-da

-pauta
-de me-
tal

-as
-an/
do/
ri/
nhas
-gri-
tam
-por
-fal/
ta/
-de u-
ma
-c’la-
ve

-de
-sol”
(As andorinhas – Antonio Nobre, João Ricardo e Cassiano Ricardo)

Grandes nomes da poesia brasileira têm poemas musicados. A ironia ao poder e novamente ‘a aérea esperança’ em “Rondó do Capitão”, de Manuel Bandeira, e a bela versão da pacifista “Rosa de Hiroshima”, de Vinícius de Moraes:

“Bão balalão,
Senhor capitão.
Tirai este peso
Do meu coração.
Não é de tristeza,
Não é de aflição:
É só esperança,
Senhor capitão!
A leve esperança,
A área esperança...
Área, pois não!
- Peso mais pesado
Não existe não.
Ah, livrai-me dele,
Senhor capitão!”
(Rondó do capitão – João Ricardo e Manuel Bandeira)

“Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada”

(Rosa de Hiroshima – Gerson Conrad e Vinicius de Moraes)

A ironia também está acompanhada do flerte com o homossexualismo, o que era muito comum para os artistas da época, pois consideravam como parte do comportamento transgressor. Heloísa Buarque de Hollanda em Impressões de Viagens, afirma que no início dos anos 1970, período chamado por ela de pós-tropicalismo, as experiências não se restringem apenas ao campo das artes, mas, sim, ao próprio cotidiano e corpo do artista que passam a ser experimentalizados. Daí o uso abusivo das drogas, o apreço com a marginalidade e com todo o seu significado de banditismo, as experiências homossexuais, o isolamento e o suicídio. Torquato Neto é o exemplo clássico da asfixia à qual o país estava submetido.

Entretanto, as composições do Secos & Molhados até flertavam com algumas características do período, mas não compartilhavam com o clima pesado de um governo ilegal que implantara o terror como ordem do dia aos seus habitantes. A solidão passa a ser a companheira, o afastamento e o individualismo é quase que obrigatório: ‘Eu já não sei se sei / de nada ou quase nada / eu só sei de mim / só sei de mim / só sei de mim’ (O patrão nosso de cada dia). Músicas como “O vira”, “El Rey” e “Assim assado” já prenunciavam o desbunde que se fortaleceria no decorrer da década, com seus versos carregados em deboche.

Diante de anos tão conturbados, nada mais natural que a preocupação com os descendentes que em breve nascerão seja demonstrada. Em “Mulher barriguda”, apreendemos a angústia em trazer uma nova vida para um mundo envolto em guerras (como a do Vietnã e as dos países africanos) e em ditaduras latino-americanas (brasileira e chilena, por exemplo). Os sonhos esgarçados, as derrotas sofridas e o recrudescimento do sistema opressor após o AI-5 no final de 1968 deixam as mentes confusas e desorientadas, porém persiste esperança na metáfora do dia seguinte, de que o pesadelo um dia acabará:

“Mulher barriguda que vai ter menino
Qual o destino
Que ele vai ter?
Que será ele
Quando crescer?

Haverá guerra ainda?
Tomara que não,
Mulher barriguda,
Tomara que não...”

O disco encerra-se com “Fala”, canto desesperado contra a tortura e toda e qualquer forma de repressão. O silêncio como forma de resistência e ação política, perante os gritos assustadores e insistentes dos famigerados torturadores, que tentam arrancar uma confissão qualquer durante os intermináveis e violentos interrogatórios feitos aos opositores do regime ou não. Porque o Poder, quando baseado na força, encontra inimigos até entre os seus aliados, pois o que interessa é manter o estado permanente de medo. São agonizantes os gritos de Ney Matogrosso escorados em um belo arranjo:

“Eu não sei dizer
Nada por dizer
Então eu escuto

Se você disser
Tudo o que quiser
Então eu escuto

Fala
Fala

Se eu não entender
Não vou responder
Então eu escuto

Eu só vou falar
Na hora de falar
Então eu escuto

Fala
Fala"
(Fala – João Ricardo e Lulli)

Para finalizar, só tenho a dizer para quem não conhece o disco Secos & Molhados que compre a obra ou faça o download na Internet. A seguir, listei alguns endereços com vídeos e registros em mp3, desta banda histórica na nossa cultura. É muito som!!!

Riso


Mp3
http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=6244330&tid=2444409808218177754

Vídeo
http://www.youtube.com/watch?v=wIyvM9Ce7mM
http://www.youtube.com/watch?v=HK_msOCc0II
http://www.youtube.com/watch?v=6S-x6W82z04

PRIMAVERA DOS LIVROS - RJ - 2007

Retirado de http://www.libre.org.br/libre/pages/view/9?m=3
Museu da República (Rua do Catete, 153 - Catete)
de 29/11 (quinta-feira) a 02/12 (domingo)
de 10:00 às 22:00
Desde sua fundação a Libre vem desenvolvendo ações no campo das políticas públicas, visando à ampliação do mercado do livro e sua regulação, e participando de feiras no Brasil e no Exterior.

Uma de suas mais importantes ações é a PRIMAVERA DOS LIVROS, evento que já se consolidou como um dos destaques nos calendários culturais do Rio de Janeiro e de São Paulo.

A PRIMAVERA DOS LIVROS reúne editoras de diversos estados brasileiros: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia, Paraná, Santa Catarina e Distrito Federal. É composta de duas frentes: o Fórum de Artes, Ciência e Cultura e uma feira de livros.

No Fórum de Artes, Ciência e Cultura os participantes têm acesso ao universo cultural da cadeia de criação e produção do livro, o que permite real interação entre os leitores e os artífices do livro – escritores, editores, livreiros e críticos. Além disso, o Fórum apresenta um significativo panorama da produção editorial do país, oferecendo ao público a possibilidade de adquirir obras de seu interesse.

A Feira de Livros oferece acesso direto à produção das editoras participantes (a preços convidativos) e contato direto com os editores (sempre presentes em seus estandes).

Na Primavera dos Livros
*Editores brasileiros e de outros países se encontram com o objetivo de viabilizar a troca de experiências e o desenvolvimento articulado de políticas culturais solidárias.
*Os diversos setores da cadeia do livro se reúnem para analisar, propor e apoiar políticas governamentais.
*Profissionais do livro (ilustradores, diagramadores, revisores, editores) realizam workshops para que alunos de ensino médio conheçam o processo de produção do livro e obtenham informações sobre os diversos segmentos da área editorial com vistas a uma possível opção profissional.
*No espaço infanto-juvenil são desenvolvidas dramatizações, leituras, oficinas e encontros com autores e ilustradores, estimulando nos jovens leitores a curiosidade e o prazer pela leitura.
*Profissionais das artes cênicas e estudantes universitários participam de workshops para refletir sobre as possibilidades e resultados da adaptação de obras literárias para estas mídias.
Público e autores se encontram em atividades de leituras e debates culturais.
*É realizado o Fórum Anual de Discussões dos editores filiados à Libre, no qual são debatidas questões como as políticas governamentais para a formação e ampliação da rede de bibliotecas públicas, parcerias entre os diversos setores da cadeia do livro (fornecedores, editores, distribuidores, livreiros etc), perspectivas para o futuro do mercado editorial, formas de difusão da leitura e de capacitação de professores e bibliotecários, entre outras questões de interesse comum aos profissionais da área editorial.
Editoras participantes:
7Letras
Aeroplano
Alameda
Alis
Altana
Andrea Jakobsson
Anita Garibaldi
Arquivo Nacional
Azougue
Barracuda
Bem-te-vi
Biruta
Brinque-Book
Calibán
Callis
Capivara
Casa da Palavra
Casa de Rui Barbosa
Claridade
C/Arte
Cia. de Freud
Contracapa
Contraponto
Cosac & Naify
Crisálida
Cuca Fresca
Desiderata
Editora 34
Editora de Cultura
Ed. Museu da República
EdUERJ
EdUFF
Estação Liberdade
Fissus
Francis
Frente
Galo Branco
Garamond
Gryphus
Íbis Libris
Iluminuras
Jobim Music
Letra Capital
Lucerna
Lumiar
Maco
Manati
Mauad
Mercuryo
Musa
Myrrha
Nova Alexandria
Nova Razão Cultural
Odysseus
Oficina de Textos
Ouro sobre Azul
Outras Letras
Pallas
Panda Books
Peirópolis
Perseu Abramo
Pinakotheke
Prazerdeler
Publisher Brasil
Quartet
Roma Victor
Rosari
Senac Rio
Terceiro Nome
Terra Virgem
UFMG
UFRJ
Unesp
Uapê
Versal
Via Lettera
Viana & Mosley
Vieira & Lent

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Odete Semedo: Língua Esvoaçante

Artigo publicado em http://djambadon.blogspot.com/2006_03_01_archive.html

Língua esvoaçante
Odete Semedo*

A língua nasceu solta e desenvolta. Nasceu virada para fora de si, irmanada com os lábios, os dentes e as cordas vocais que lhe deram a fala, a música, o grito e o silêncio, próprio da caverna onde livremente se encontra enclausurada. A língua serve-se dos olhos, de tudo ao seu alcance e fora dele para, sem papas, testemunhar a nossa relação com a vida. A língua é assim aquela coisa que nos permite, dentro do nosso silêncio, dizer tudo sem nada ter dito. Pois em língua e só nela carpimos os nossos mortos, contamos as nossas histórias e estórias, cantamos as nossas noivas quando rumo à casa do futuro marido deixa para trás a casa que a viu nascer e crescer. E só a língua permite a cada um dizer tudo, menos aquilo que se pensa, num jogo social em que cada um, munido do disfarce que julgar ideal, vai passando pelos círculos que a teia tece.

A língua, essa coisa esguia, nem sempre severa, guiada pela mente, vestida de uma mão ou, por vezes, de apenas três dedos - que podem ser de conversa -, vai dando largas às fantasias e aos sonhos.

A língua, na sua fantasia, tem vestidos: vestidos requintados e com enfeites de lantejoulas; vestidos com contornos de emoção, roupa de mendigo com remendos - mas nada para botar defeito; vestidos com bordados e afrontas que para muitos são heranças que os séculos lhe foram juntando num pé-de-meia. E com todos estes vestidos chega a bifurcar-se em língua do coração, do sentir, da alma e língua de contacto com o resto do mundo. Mas como a dificuldade é um mal dividido pelas aldeias, as línguas não são excepções à regra, lá têm elas o seu estilo de cooperação: a língua de viagens, a do contacto, acaba pedindo emprestadas as roupas de emoção da língua do sentimento; esta por sua vez vai deixando que a língua do sentimento faça uso de suas letras - com a permissão alfabetizada, é claro, de quem dita as regras do jogo.

Apesar de ter nascido solta e desenvolta, livre, ainda há quem pense ser dela o dono policiando no escuro a língua, não vá um mal-intencionado beliscar um acento ou acrescentar uma abertura em lugar incerto ou, ainda, quem sabe?, virgular o que deve ser pontofinalizado. Mas a língua não se importa que a façam voar em vozes e falas, que a enrolem em pergaminhos, folhas simples ou papel reciclado; o certo é que em silêncio ela grita e mesmo quando, inseguros, nela deitamos a mão... questionando... a língua é sempre testemunha.

Em que língua escrever
As declarações de amor?
Em que língua cantar
As histórias que ouvi contar?

Em que língua escrever
Contando os feitos das mulheres
E dos homens do meu chão?

Como falar dos velhos
Das passadas e cantigas?
Falarei em crioulo?
Mas que sinais deixar
Aos netos deste século?

Ou terei de falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa
Mas assim terei palavras para deixar
Aos herdeiros do nosso século

Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará a sua viagem

Deixarei o recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo

Ou terei de falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa
Mas assim terei palavras para deixar
Aos herdeiros do nosso século

Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará a sua viagem

Deixarei o recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo

E ao longo dos séculos
No caminho da vida
Os netos e herdeiros
Saberão quem fomos

E, assim, as mensagens vão passando porque a língua também vai permitindo, assumindo-se como portador de mensagens, voando nos ecos dos que ainda podem gritar pela liberdade, deslizando nas lágrimas invisíveis dos que apenas com seus olhares denunciam a pobreza extrema.


* Maria Odete da Costa Semedo nasceu em Bissau a 7 de Novembro de 1959. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Foi Presidente da Comissão Nacional para a UNESCO - Bissau. Fundadora da "Revista de Letras, Artes e Cultura Tcholona". Publicou um livro de poemas "Entre o Ser e o Amar", em Bissau (1996). É actualmente investigadora, na capital guineense, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, para as áreas de Educação e Formação.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Odete Semedo: o desassossego do ser

Nas literaturas africanas de língua portuguesa a participação da mulher como voz criadora é discreta se compararmos à produção realizada pelos homens. Embora a mulher, especificamente a negra, tenha sido cantada e exaltada desde as primeiras manifestações literárias com Cordeiro da Mata e Caetano da Costa Alegre, por exemplo, a voz feminina propriamente dita somente viria a surgir já em meados do século XX com a são-tomense Alda Espírito Santo e a moçambicana Noémia de Sousa. Estas duas poetisas demonstraram em seus poemas as adversidades vivenciadas pelas mulheres dos seus países, as agressões do sistema colonial, o drama dos maridos contratados, a miséria e a dor encaradas com os ‘olhos secos’, prova de resistência a um quadro desigual.

A partir do pós-independência desses países as mulheres foram gradativamente conquistando seu espaço, aumentando a sua participação, diversificando e enriquecendo o corpo das referidas literaturas. Hoje, temos nomes respeitados como Paulina Chiziane e Livia Momplé em Moçambique, Ana Paula Tavares em Angola, Dina Salústio e Vera Duarte em Cabo Verde, e Odete Semedo em Guiné-Bissau. Esta última a motivadora deste texto.

Contudo, antes de comentarmos a poesia de Odete Semedo, vemos a necessidade em tecer breves considerações para compreendermos melhor a discreta atividade literária de Guiné-Bissau.

A literatura guineense surge tardiamente e em pouca quantidade em relação às outras colônias portuguesas – Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe – mas, como afirma Inocência Mata, há razões históricas e culturais para tal ausência, pois Guiné não recebia apoio financeiro da metrópole portuguesa, além da resistência ao colonialismo ter ocorrido até a segunda década do século XX, o que dificultou a instalação de uma elite colonial. Diante da dificuldade em estabilizar seus valores, o sistema educacional português foi implantado tardiamente.

Como era administrado por Cabo Verde, parte da elite em Guiné era formada por representantes do arquipélago, que era incentivada a se instalar no novo país para promover a miscigenação entre portugueses e guineenses. Em Guiné, assim como em Cabo Verde, o idioma oficial é o português, mas a língua falada no cotidiano é o kriol (crioulo). Língua esta que viria a ser fundamental na luta colonial a partir de 1963, como afirma Amílcar Cabral, fundador do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde):

"O português (língua) é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram, porque a língua é senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros... A língua é um instrumento que o homem criou através do trabalho, da luta para comunicar com os outros (...) a nossa língua tem que ser o português. E isso é uma honra. É a única coisa que podemos agradecer ao tuga." (CUNHA, 1977, pp. 80-81)

Apesar de Inocência Mata apontar para as décadas de 20 e 30 como precursoras da literatura guineense, partiremos para as manifestações poéticas de Vasco Cabral e Amílcar Cabral a partir dos anos 50 e, com maior intensidade, após o início da guerra colonial, com a poesia de combate, que o corpus literário guineense começa timidamente a criar forma. No período supracitado, os temas giram em torno das desigualdades sociais, da valorização da terra e do cidadão local, numa poesia que apresentava termos em kriol e ritmo inspirado na tradição oral. Nesse quadro, são publicadas as primeiras antologias, motivadas pelos escassos recursos financeiros dos escritores, e poucos livros individuais, onde despontam nomes como Hélder Proença, Antonio Baticã Ferreira entre outros. As antologias configurar-se-ão importante espaço para a divulgação dos poetas já com o país independente, como Mantenhas para quem luta!, fundamental historicamente por registrar o primeiro momento literário de um novo país, sem nenhuma tradição nas letras. Desde então, a opção por poemas feitos em kriol afirma-se com mais intensidade.

Em seu primeiro livro de poesia, Entre o ser e o amar, Odete Costa Semedo explora o bilingüismo do seu país ao publicar os poemas em português e kriol, “de modo a proporcionar aos leitores um espaço de lazer, reflexão, crítica e encontro consigo mesmo”, segundo a poetisa. Todavia, ressalta, “nem todos os poemas são apresentados em duas versões, dado que uns foram escritos originalmente em kriol e outros em português. E a tradução fá-los-ia perder a autenticidade” (SEMEDO, 1996, p. 7).

Segundo a própria Semedo em artigo intitulado ‘Língua esvoaçada’, “existe uma língua franca falada por cerca de 70 por cento da população de todo o país, o crioulo de base portuguesa, e uma língua oficial utilizada na administração e no ensino, o português, dominado por cerca de 12 por cento da população guineense”. O relato da poetisa vai ao encontro do que Celso Cunha afirmou nos anos 1970 de que "o máximo a que pode aspirar a língua portuguesa em África, especialmente em Cabo Verde e Guiné Bissau: a de ser oficialmente o que ela sempre foi: não a língua transmitida, maternal, mas a língua adquirida, a segunda língua, veicular da administração, aprendida na escola e elo de ligação da elite cultural com um mundo maior." (CUNHA, 1977, p. 80) Essa situação imposta pelo colonizador é geradora de grandes transtornos, pois, segundo Albert Memmi, “munido apenas de sua língua o colonizado é um estrangeiro dentro do seu próprio país” (MEMMI, 1977, p. 97), que está obrigado a dominá-la para ter acesso ao poder.

Sabemos que toda a língua pode ser e é usada como instrumento de poder, ou pode ser fascista como afirma Roland Barthes: “a língua, como desempenho de toda a linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (BARTHES, 1977, p. 14). Para solucionar tal impasse, Barthes propõe que a língua seja trapaceada através da arte, pois somente esta conseguirá quebrar o fascismo da língua:

Só nos resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. (...) porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela é teatro. Posso portanto dizer, indiferentemente: literatura, escritura ou texto. As forças de liberdade não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor, (...) mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua. (BARTHES, 2004, pp. 16-17)

A questão da língua é tratada e pensada com rigor por Odete Semedo, que assume o caráter híbrido de sua formação cultural. Não é à toa que a primeira parte do livro se chama "Oscilações", um conjunto de poemas que tratam de indefinições, da “incerteza dos sonhos”, de quem, como versa, “Oscilo tristemente / Entre a sombra e a penumbra” (SEMEDO, 1996, p. 15). E o problema da língua é apresentado logo no primeiro poema do livro:

Em que língua escrever
As declarações de amor?
Em que língua cantar
As histórias que ouvi contar?

Em que língua escrever
Contando os feitos das mulheres
E dos homens do meu chão?
Como falar dos velhos
Das passadas e cantigas?
Falarei em crioulo?
Falarei em crioulo!
Mas que sinais deixar
Aos netos deste século?

Ou terei que falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa
Mas assim terei palavras para deixar
Aos herdeiros do nosso século
Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará a sua viagem

Deixarei o recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo
No caminho da vida
Os netos e herdeiros
Saberão quem fomos
(SEMEDO, 1996, p. 11)

A opção do crioulo, ou kriol, como resistência e manifestação dos costumes do povo guineense é escancarada pela poetisa, além da preocupação em manter viva as tradições para as gerações futuras. A inquietação do ser começa na escolha da língua, que, ao mesmo tempo, une e segrega. Aceita a língua portuguesa, porém não desmerece a cultura da sua terra, as histórias e os homens do seu chão.

Poesia que trata das irrealizações do pós-independência, a distopia por causa dos ideais não atingidos, das incertezas dos caminhos trilhados por um país em formação:

“(...) Entre sonhos e utopias
Oscilo na miragem do macaréu
Que balança e engoda
O meu tormento

Entre o constante querer
E a incerteza dos sonhos
Da natureza morna... oscilo (...)”
(Ibidem, p. 15)

São incertezas, inquietações próprias da existência que empurram o eu-lírico para a metalinguagem:

“Queria ser poeta
Ser humilde
Ser...
Tocar-me
Sentir-me envolta
Num manto de desassossego
E assim entender o ser (...)”
(Ibidem, p. 17)

O poema reforça o vínculo do eu-lírico com a terra a que pertence, de uma identidade fraturada por séculos de ação repressora oriunda do sistema colonial, que sofre com as adversidades do tempo presente:

“Sou parte desta natureza
Tão gasta
Desta face da terra
Tão frágil e vasta
Sou o rio que corre
Tropeçando em pedras e vales
Para chegar ao seu destino
Não sou mulher nem homem
Sou apenas mais uma desta geração
Não sou homem nem mulher
Apenas um pedaço deste chão”
(Ibidem, p. 31)

A instabilidade política guineense é sentida nos versos, situação que teria suas conseqüências no conflito armado de 1998/1999. A violência, a miséria e a dor de um povo que passa a possuir “olhos-que-já-não-acreditam”. O surrealismo da situação guineense inverte o ditado de São Thomé, o “ver para crer”:

“Meus olhos
Ilhas sem nome
Maré alta a transbordar no oceano
Ondas salgadas
Que insuportam o acordar
Vazias de vida
Meus olhos
Olhos sem nome
Precipitam e atentam
Contra o impávido
Meus olhos, nossos olhos
Ilhas sem nome
Aprisionados pelas mãos, pelos dedos
Soltam raios
Reconhecem outros olhos
E inacreditam esqueletos ousados
Abandonados pela carne
Espreitando
Meus olhos
Nossos olhos, todos os olhos
Ilhas sem nome
Ganharam um nome
Passaram a ser
Olhos-que-já-não-acreditam”
(Ibidem, p. 63)

As contradições da vida são mostradas no vazio da distopia “da incerteza de um sonho indefinido”. Tristes são os versos, tristes são os olhos a buscar os sonhos esgarçados de uma existência dilacerada:

“Teus olhos...
Tristes e perdidos
Quase inocentes
Olhos tristes
Olhar longínquo
Não da dor do amor perdido
Mas da incerteza
De um sonho indefinido
Teus olhos
Perdidos no horizonte
Espelham a dor
De um sonho incerto
Teus olhos... tristes
Quase inocentes
Buscam a razão
Do incerto”
(Ibidem, p. 75)

Entretanto, a poesia de Odete Costa Semedo não restringe-se apenas às dores da vida e às reflexões metafísicas, o desejo de ser mulher, a voz feminina do eu-lírico canta para o ser amado a vontade de protagonizar seus sentimentos:

“Quero ser a heroína
Do conto que inventares
Que firme segue o seu destino
Quero ser uma mortal
Guiada pelo teu poder
E pela tua voz
(...)
Quero ser a deusa lua no teu conto
Acompanhar as crianças
Nas suas fantasias
E no sonho seguir os seus desígnios

Quero ser a heroína do teu conto
Ou apenas um verso do teu canto”
(Ibidem, p. 45)

“No desassossego do ser”, metapoeticamente, Odete Semedo tece versos que procuram a ruptura com um passado de sofrimento e angústia em uma “vida sem gosto”, e evoca a criança despersonalizada, ou o próprio eu-lírico, a caminhar na “aventura de palavras” em busca da esperança na “magia da poesia”. E, assim, redescobrir valores como amor, solidariedade e bondade:

“Vem comigo
Criança sem rosto
Segue-se nesta cantiga
E esquece a vida sem gosto

Vem criança
Amiga de ninguém
Dá-me a tua mão
E descobre comigo
A voz da esperança

Dá-me a tua mão, menino
Criança sem rosto
E caminha comigo
Nesta aventura de palavras
E vamos descobrir
Juntos
O enredo do pão
O encanto do amor
A suavidade do carinho
E as peripécias da paixão

Vem criança sem rosto
E sem rumo
Viajar comigo
Na magia da poesia
E vamos juntos
Descobrir um rosto
E a mão amiga”
(Ibidem, p. 49)

Constatamos que é cantando a esperança, apresentando as inquietações de sua geração e denunciando a insensibilidade de um mundo de injustiças sociais que Odete Costa Semedo contribuiu e contribui com valores humanistas para a construção de uma literatura e identidade guineenses, consolidando-se como uma das destacadas vozes femininas dos países africanos de língua portuguesa.

“Flor sem nome
Em chão árido e seco
No deserto envolvente
Um fundo verde
De esperança longínqua...
Eu sou essa flor (...)”
(Ibidem, p. 33)

Riso


OUTRAS POESIAS

SILHUETA DA DESVENTURA
Sou a sombra dum corpo que não existe
Sou o choro desesperado
Sou o eco de um grito articulado
Numa garganta sem forças
Sou um ponto no infinito
Silhueta da desventura

Perdida neste espaço
Vagueando... finjo existir
Insistem chamar-me criança
E eu insisto ser
A esperança do incerto

O meu tantã é de outros tempos
A melodia que oiço
É o crepitar de chamas
Confundindo-se com o roncar da fome
E o chão onde piso
É uma ilha de fogo

A minha nuvem é a fumaça
Da bala disparada
Gotas salgadas orvalham
O meu pequeno rosto
Enquanto choro
Na esperança do incerto (Ibidem, p. 27)


EU E A POESIA
Eu e a poesia
A confissão
O prazer
O gosto de dizer
Sem reprimir
O prazer de dar
O que se quer
A viagem segura
Num mundo incerto
A magia do som
Da música, do ritmo
O prazer da viagem
A visão da natureza
Pura ou não
A Providência sempre
Ou nunca presente
Poesia amor
Construção
Fuga e reencontro (Ibidem, p. 53)


VOZ
Olhos que falam por mim
Com voz de benjamim
Mãos de gestos seguros
Perturbando a insegurança
Da mente
Do espírito
E da alma desventurada
Pés que caminham
A passos largos
Desafiando o tempo
Caminhando...
A passos largos e firmes
Olhos
Mãos
Pés
Olhos meus
Sonhos teus
Que firmes
Descompassam
E fogem à desventura
Olhos, pés, mãos
Mãos e olhos
Num conjunto seguro
Insurgem
No desassossego do ser (Ibidem, p. 77)


ÑA ROSTU
Ña rostu bida lagua
Iagu di mare mansu
Na buska kamiñu di bom turpesa

Salus terbesan garganti
Ña pitu intchi dur
Fala ka pudi tustumuña pa mi

Iagu di mare mansu ku bida makare
Spidju di kasabi
Tustumuñu di ña flema
Tadja pa mi
Dja ku ña fala falsian (Ibidem, p. 100)


DJON GAGU
Sintidu ramangam
Korson n djutim
N pirdi susego
Ña sonu bua na bentu
Es i ke nubdadi?

N karga djon gago
Di dufuntu ku n ka n terá
N na iari iari
Sol fitcha pa mi

Ña blaña bida
Lala di ñara sikidu
Nin pa mermeri
Boka ka ten (Ibidem, p. 102)


NÃO DISSE NADA
Falei da língua
Da míngua
Da letra
(So)letrei a minha nostalgia
Lendo pasmado
Nos olhos desmesurados
O infinito (Ibidem, p. 107)


Bibliografia:
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 12ª edição, 2004.

CUNHA, Celso. Língua, nação, alienação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

MATA, Inocência. A literatura de Guiné-Bissau. In: LARANJEIRA, Pires. Literaturas africanas de expressão portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta, 1995.

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

SEMEDO, Odete Costa. Entre o ser e o amar. Bissau: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, 1996.


SEMEDO, Odete Costa. Língua esvoaçante. Acessado em 22/10/2007 In: http://djambadon.blogspot.com/2006_03_01_archive.html

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Quem me dera ser onda - Manuel Rui

Alguns autores conseguem tecer linhas cômicas diante da condição trágica do cotidiano, o que acabou se tornando uma característica comum nas produções literárias de países periféricos. O riso passa a ser o elemento crítico da ordem estabelecida, apontando suas falhas e subvertendo-a, demonstrando o grotesco da situação vigente. No caso específico das literaturas africanas de língua portuguesa, depreendemos o uso da carnavalização de Bakthin.

Na novela Quem me dera ser onda, do angolano Manuel Rui, o caráter cômico predomina durante toda a narrativa. O grotesco apresenta-se no inusitado enredo do livro: moradores vindos do interior decidem criar um porco em um apartamento no sétimo andar de um prédio. Com isto, várias “makas” acontecem entre o fiscal do prédio, responsável por manter a ordem, Diogo e seus filhos Zeca e Ruca, que tentam ocultar a presença do suíno.

A novela passa-se no período pós-independência angolano, e inferimos a presença do ambiente de euforia que havia com a libertação recentemente conquistada do colonialismo português. Notamos também a utilização de um vocabulário de cunho marxista, pois a revolução feita pelo MPLA, partido que assumiu o poder, tinha orientação comunista. Contudo, é exatamente na aplicação dos valores da ideologia marxista na sociedade angolana que as contradições surgem em razão da revolução não cumprir com plenitude suas promessas. E é no cotidiano do prédio que a narrativa de Manuel Rui pretende metonimizar a situação do país naquele momento.

Apreendemos o frouxo cumprimento das leis pelos revolucionários logo no início da novela. Diogo, fiel aos ideais da revolução, subverte a lei do prédio ao levar um porco para o apartamento. Este personagem é responsável por diversas passagens cômicas do texto, é ele que questiona os privilégios de alguns companheiros, é quem busca soluções para manter o porco quieto: “Diogo mandava logo a mulher ou um dos filhos levantar o rádio para abafar a denúncia da presença do porco” (RUI, 2000, p. 17) e em seguida descobre uma solução mais eficiente e silenciosa: “Diogo trouxe um fio comprimido e muito fininho todo enrolado. (...) ligou o rádio, pegou o auscultador pequenino na outra extremidade, meteu na orelha do porco colando seis tiras de adesivo como se fosse um penso” (RUI, 2000, p. 19). Para surpresa de todos, o porco imediatamente fica calado, o que leva Diogo a comemorar de acordo com suas convicções: “Conquistas da revolução! Estás politizado! Isto é o que a comissão de moradores devia ver” (RUI, 2000, p. 19). Com fina ironia, o narrador comenta que “carnaval da vitória” (nome do porco) passa a ser o principal ouvinte da rádio do país.

Apreendemos certa inocência em Diogo e seu furor revolucionário, pois seus comentários oscilam entre pesadas críticas à corrupção dos governantes e a euforia com pequenas conquistas na vida social, como mostra a passagem em que a sua tão sonhada carne foi retirada dos restos alimentícios de um hotel de luxo pelos seus filhos, com o intuito de acalmá-lo e, assim, fazer com que ele esquecesse de comer carne de porco: “Funge de carne? Até que enfim, mulher! Bastou mudarem o ministro para a carne aparecer nas bichas. Vamos a ver agora se a pequena-burguesia lhe não atrapalha o trabalho. Assim é que é. Revolução começa na barriga.” (RUI, 2000, p. 45)

Entretanto, o objetivo de Diogo é alimentar o porco até o carnaval, data que promete fazer um grande churrasco e saciar a vontade de comer carne, sumida dos postos de abastecimento para a população, porém farta na dieta dos políticos do alto escalão do partido conforme denuncia a novela. Mas sua idéia vai de encontro ao pensamento dos filhos, que rapidamente iniciam um fraterno relacionamento com o animal: “Os dois miúdos tratavam o porco como membro da família. Limpavam o cocó dele, davam-lhe banho e, todos os dias, passavam na traseira do hotel a recolher dos contentores pitéus variados com que o bicho se giboiava” (RUI, 2000, p. 20). A amizade gerará diversas situações hilárias protagonizadas pelas crianças na tentativa de esconder o porco.

Com o carinho desenvolvido pelos meninos, “carnaval da vitória” passa a alimentar-se com restos de um hotel luxuoso, “comia de um hotel de primeira; nos restos vinham panados, saladas mistas, camarões, maioneses, lagosta, bolo inglês, outras coisas sempre a variar” (RUI, 2000, p. 17). Diferente de seu passado, em que a ração se resumia em comer espinhas de peixe nas areias da praia de Corimba, alimentando críticas de Diogo que começa a considerar o comportamento do animal como pequeno-burguês: “Estás-te a aburguesar-se. Quem te viu e quem te vê. É a luta de classes!” (RUI, 2000, p. 17). O porco transforma-se, segundo Maria Teresa Salgado,

“o animal acaba metamorfoseando-se, respondendo ao papel dinâmico e ambivalente da cultura popular, que remete às imagens do corpo grotesco em transformação: ‘O suíno estava quase culto, quase protocolar. Maneirava vênias de obséquio com o focinho e aprendera a acenar com a pata direita, além de se pôr de papo para o ar à mínima cócega que um dos miúdos lhe oferecesse à barriga’” (LEÃO, 2003, p. 120).

Ou seja, o porco alimenta-se melhor e com mais variedade que os moradores da casa, levando Diogo a denunciar o “peixefritismo”, que é a ausência de carne nas refeições diárias em virtude do racionamento imposto pelo governo.

As crianças têm importante papel durante a trama, pois são elas que possuem o pensamento rápido e astuto para conseguir garantir a permanência do animal, escondendo-o, através de mentiras, dos fiscais responsáveis pelo cumprimento das regras do prédio. Protegem “carnaval da vitória” de embaraçosas situações, como a vez que decidiram levar o animal à escola e este consegue fugir enquanto estava entre os colegas de turma. Além do porco se tornar um ídolo para os meninos, fazendo com que ele vire personagem de um concurso de redação e desenho da escola, sendo admirado até pela professora.

São as crianças que infernizam as vidas dos fiscais do prédio, mostrando a fragilidade e o despreparo dos que seriam os responsáveis por manter a chama revolucionária acesa. No trecho a seguir, veremos que o camarada Nazário é ridicularizado pelos meninos por não conhecer corretamente a língua portuguesa nem os dizeres corretos para um comunicado oficial:

“1º Porque é preciso resolver os problemas do povo deste prédio:
2º Assim é que: está proibida a habitação no seio do mesmo de animais porcos çuínos.

Produção, Vigilância e disciplina
Nazário e Faustino
Abaixo a reacção
A luta continua
A vitória é certa!

– Desculpe camarada Nazário, mas suíno é com esse, disciplina é antes de vigilância e antes da luta continua tem de pôr pelo Poder Popular e no fim acaba ano da criação da Assembléia do Povo e Congresso Extraordinário do Partido!” (RUI, 2000, pp. 14-15)

Os comunicados são usados pelos garotos após o furto de um bloco do camarada Faustino e, através deles, expõem o patrulhamento ideológico, o instável momento político do país com a iminência de uma contra-revolução, o favorecimento daquilo que é do Estado e ridicularizam os fiscais com suas mensagens fantasiosas.

“A COMISSÃO DE MORADORES ROUBOU UM PORCO QUE ESTAVA NA BICHA DA LOJA DO POVO. ABAIXO OS ESPECULADORES!
O Fiscal do Ministério
João Pitanga Ismael” (RUI, 2000, p. 34)

“Tribunal da Comarca de Luanda – 2ª Vara
Para os cães policiais da cadeia do Tribunal peço aparas cruas de carne. Mande-me pouco sebo. São cães estatais, comem todos os dias.
Saudações Revolucionárias
Faustino (Juiz)” (RUI, 2000, p. 44)

“CAMARADAS MORADORES
OS ESPECULADORES DIOGO, FAUSTINO E NAZÁRIO SÃO CONTRA O CARNAVAL DA VITÓRIA.
ABAIXO A REACÇÃO
O Fiscal
Loló Madaleno” (RUI, 2000, p. 51)

Todavia, mesmo com todas as peripécias para manter “carnaval da vitória” vivo, o porco é morto por Diogo e o churrasco é realizado durante o carnaval numa grande confraternização que reuniu, inclusive, o fiscal Nazário: “– Ataque camarada Nazário. É lombinho e não é marítimo. – Espere um momento. Vou buscar a minha mulher, trago uma grade e na volta chamo o Faustino com a aparelhagem. Veja se precisam de louças e talheres.” (RUI, 2000, p. 60)

A metáfora é clara, tal como o porco “carnaval da vitória”, os ideais da revolução não sobrevivem aos descaminhos que se seguiram na construção da nação angolana. O porco saiu da miséria em que vivia na praia, teve seus dias de glória e bom tratamento com as refeições caprichosas do hotel que os meninos traziam. Contudo, seu momento de bem-estar e euforia foi curto como a paz em Angola que, após a guerra colonial e a conquista da independência, conviveu com poucos anos de estabilidade e depois sofreu com a guerra civil entre o MPLA e a UNITA, esta patrocinada pela África do Sul.

Entretanto, a distopia contida na mensagem da novela, deixa-nos ao seu final uma ponta de esperança vinda das crianças ao refletirem se não seria melhor terem deixado “carnaval da vitória” fugir. Afinal, o porco em seu lugar era “livre. Vadio na chafurda despreocupada” (RUI, 2000, p. 55), associam a liberdade às vagas (ondas) do mar, pois “onda ninguém amarra” (RUI, 2000, p. 55) e buscam no espaço libertador dos sonhos o desejo de ser onda.

Portanto, é pelo uso da carnavalização e do grotesco perpetrada na novela que o autor Manuel Rui narra, recorrendo ao riso, a desilusão revolucionária angolana, porém sem deixar a chama da esperança desaparecer: “E Ruca, cheio daquela fúria linda que as vagas da Chicala pintam sempre na calma do mar, repetiu a frase de Beto: – Quem me dera ser onda!” (RUI, 2000, p. 60)

Riso


Fontes:
RUI, Manuel. Quem me dera ser onda. Rio de Janeiro, Gryphus, 2005.


SALGADO, Maria Teresa. O riso na literatura angolana de língua portuguesa. In: LEÃO, Ângela Vaz. Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte, Pucminas, 2003.

Manuel Rui: Eu e o outro – o invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto

Manuel Rui é escritor angolano, da cidade de Huambo, nascido em 1941. Lançou, entre outros, Rioseco, Um anel na areia e Quem me dera ser onda, sendo esta a sua obra mais conhecida.
Eu e o outro – o invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto
Manuel Rui
Comunicação apresentada no Encontro Perfil da Literatura Negra. São Paulo, Brasil, 23/05/1985.*


Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala mas porque havia árvores, parrelas sobre o crepitar de braços da floresta. E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido visto. É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam quando chegaste! Mas não! Preferiste disparar os canhões. A partir daí comecei a pensar que tu não eras tu, mas outro, por me parecer difícil aceitar que da tua identidade fazia parte esse projeto de chegar e bombardear o meu texto. Mais tarde viria a constatar que detinhas mais outra arma poderosa além do canhão: a escrita. E que também sistematicamente no texto que fazias escrito inventavas destruir o meu texto ouvido e visto. Eu sou eu e a minha identidade nunca a havia pensado integrando a destruição do que não me pertence.

Mas agora sinto vontade de me apoderar do teu canhão, desmontá-lo peça a peça, refazê-lo e disparar não contra o teu texto não na intenção de o liquidar mas para exterminar dele a parte que me agride. Afinal assim identificando-me sempre eu, até posso ajudar-te à busca de uma identidade em que sejas tu quando eu te olho, em vez de seres o outro.

Mas para fazer isto eu tenho que transformar e transformo-me. Assim na minha oratura para além das estórias antigas na memória do tempo eu vou passar a incluir-te. Vou inventar novas estórias. Por exemplo o espantalho silencioso que coloco na lavra para os pássaros não me comerem a massambala passa a ser o outro que não fazia parte do texto. Também vou substituir a surucucu cobra maldita. Surucucu passa a ser o outro. E a cobra no meu texto inventado agora passa a ser bela e pacífica se morder o outro com o seu veneno mortal.

E agora o meu texto se ele trouxe a escrita? O meu texto tem que se manter assim oraturizado e oraturizante. Se eu perco a cosmicidade do rito perco a luta. Ah! Não tinha reparado. Afinal isto é uma luta. E eu não posso retirar do meu texto a arma principal . A identidade. Se o fizer deixo de ser eu e fico outro, aliás como o outro quer. Então vou preservar o meu texto, engrossá-lo mais ainda de cantos guerreiros. Mas a escrita? A escrita. Finalmente apodero-me dela. E agora? Vou passar o meu texto oral para a escrita? Não. É que a partir do movimento em que eu o transferir para o espaço da folha branca, ele quase morre. Não tem árvores. Não tem ritual. Não tem as crianças sentadas segundo o quadro comunitário estabelecido. Não tem som. Não tem dança. Não tem braços. Não tem olhos. Não tem bocas. O texto são bocas negras na escrita quase redundam num mutismo sobre a folha branca. O texto oral tem vezes que só pode ser falado por alguns de nós. E há palavras que só alguns de nós podem ouvir. No texto escrito posso liquidar este código aglutinador. Outra arma secreta para combater o outro e impedir que ele me descodifique para depois me destruir.

Como escrever a história, o poema, o provérbio sobre a folha branca? Saltando pura e simplesmente da fala para a escrita e submetendo-me ao rigor do código que a escrita já comporta? Isso não. No texto oral já disse: não toco e não o deixo minar pela escrita, arma que eu conquistei ao outro. Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto. Invento outro texto. Interfiro, desescrevo para que conquiste a partir do instrumento de escrita um texto escrito meu, da minha identidade. Os personagens do meu texto têm de se movimentar como no outro texto inicial. Têm de cantar. Dançar. Em suma temos de ser nós. ‘Nós mesmos’. Assim reforço a identidade com a literatura.

Só que agora porque o meu espaço e tempo foi agredido, para defender por vezes dessituo do espaço e tempo o tempo mais total. O mundo não sou eu só. O mundo somos nós e os outros. E quando a minha literatura transborda a minha identidade é arma de luta e deve ser ação de interferir no mundo total para que se conquiste então o mundo universal.

Escrever então é viver.

Escrever assim é lutar.

Literatura e identidade. Princípio e fim. Transformador. Dinâmico. Nunca estático para que além da defesa de mim me reconheça sempre que sou eu a partir de nós também para a desalienação do outro até que um dia e virá “os portos do mundo sejam portos de todo o mundo”.

Até lá não se espantem. É quase natural que eu escreva também ódio por amor ao amor.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Quando acontece (extended version)

Noite quente de verão, enluarada. Assim que entrei no bar, olhei para o varandão e a vi, sozinha, com jeito pensativo e distante admirando a lua como se por lá estivesse. Ao redor, outros freqüentadores estavam empolgados com o dia lindo que havia se encerrado e a noite convidativa que rolava. De repente, nossos olhares se cruzaram. Tive a oportunidade de fitar um rosto delicado, brilhante em vida e sorrindo para mim, um sorriso discreto que pedia confirmação. Rapidamente reparei em seus olhos pretos, encaracolados cabelos, pele morena queimada pelo sol, o batom básico, brincos, cordão pulseirinhas, saia hippie, o anel de âum, fadinha tatuada sobre o cogumelo no tornozelo e sandália rasteira. Sorri. De imediato dirige-me a ela, pedi a mesma cerveja que estava bebendo. Percebi o cigarro sobre a mesa e a maneira convidativa com que me encarava. Posso, perguntei. Claro, foi a resposta dita pelos delicados seios estufados sob a fina blusinha com vários tons de rosa acompanhada por expressão radiante, mágica. O que diz a lua cheia, quis saber. Ela está próxima de Saturno, logo estarão na mesma casa com Marte, e quando isto acontecer será um momento que somente se repetirá daqui a quarenta anos. Sou Áries, ascendente em Virgem, planeta Marte. Jura, Capricórnio com ascendente em Aquário, planeta Saturno. Combinamos, questionei. Ela se empolga, ajeita os pequenos seios com ambas as mãos que descem suavemente pela barriga e estacionam entre as pernas. Há uma conjunção astral acontecendo, o momento é especial. Começo a sentir tesão ao vê-la arrumando os cabelos, coluna ereta, seios salientes apontados para mim e uma linda barriguinha aparece discretamente. Resolvo continuar no papo esotérico, apesar de todas as ressalvas que tenho atualmente com os astros. Contudo, diante daqueles peitinhos... tinha que ver onde chegaria. Talvez, porém de uns tempos para cá estou como uma antiga canção que fala sobre o desinteresse das teorias, “nem nessas coisas do oriente, romances astrais / a minha alucinação é suportar o dia-a-dia / e o meu delírio é a experiência com coisas reais”. Acho que perdi a última nave São Thomé das Letras – Ixtlán. Não tente fugir daquilo que você é, ela sorriu. Fale-me sobre você, quis saber. Alguém que ainda acredita nos sonhos, que o homem é bom, que procura viver em paz consigo e tenta manter acesa a chama da crença na justiça e bem-estar entre seus pares, respondi. O que é impossível, por isto inquieto e infeliz, completei. Sonhar é bom, é o que sustenta a nossa existência, o que nos conforta neste plano astral, como citou versos de uma canção, ou seja, os sonhos não envelhecem. Com eles, não deixamos morrer a tal da chama da indignação contra as perversidades cometidas pelos homens, ela respondeu empolgada e deu uma longa tragada, um sensual movimento de ombros e cruzar as pernas. Concentrei-me no som aveludado que aquela boca de lábios levemente carnudos emitia. O que somos, quixotescos, surreais, anacrônicos, questionei. Raros, ela disse e olhou novamente para a lua. Tais palavras vieram em minha como o efeito da ayahuasca, transmutando-se palavras, objetos e corpos em um só ser inominável e intangível. As cumplicidades começaram a surgir. Estudou letras. A literatura é séria demais e nem tudo pode ser explicado ou dito, disse. Largou, foi fazer teatro em Sampa nas companhias de zé celso e antunes filho. Enjoou, partiu para Alto Paraíso, na Chapada dos Veadeiros, e virou astróloga. Contou mais da estrada e dos seus sonhos. Fã do cinema surrealista de Buñuel e dos silêncios de Antonioni, reclamou da ausência do olhar distante de Matt Dillon nos filmes, empolgou-se com Gus van Sant e Ken Loach, das obras solitárias de Osvaldo Goeldi e Edward Hopper, do encantamento das telas de Cícero Dias e Marc Chagall, das canções de amor e amizade do Clube da Esquina, da poesia de Manoel de Barros e Manuel Bandeira, e acha que o fatalismo das letras Ian Curtis é o que melhor retrata o mundo que vivemos, infelizmente, completou. Fascinado com a maneira que falava e seus movimentos hipnotizantes, não escutava nada ao nosso redor, a não ser a voz e o olhar impactante sedento de desejo. Enquanto me encarava, só me imaginava abocanhando aqueles seios. Nossas mãos acariciavam-se, os pêlos arrepiavam-se, já estava duro. Ela pegou seu copo, levou-o à boca, com suavidade baixou a cabeça e me encarou. Não resisti. Beijei-a. A língua sagrada e universal do amor. A primeira penetração, intensa, forte, asfixiante. Nossos corpos espremiam-se, as mãos eufóricas, ágeis e certeiras desvendavam os corpos excitados. O tempo daquele beijo não sei quanto durou. Encerramos a conta, partimos para minha casa. Ela encanta-se com o ambiente ainda um tanto esotérico com incenso de massala, tapete, puff, artesanatos, pinturas, Jim Morrison e Bob Marley nas paredes. Continuamos nos beijando intensamente sobre o sofá. Com a mão entre suas pernas, acaricio seu grelo e meu dedo penetra sua xota encharcada. Ela se contorce, geme, me arranha e morde minha orelha com força, contraio-me. Arranco sua blusa e minha língua passeia pelos seus peitos enquanto ela abre minha calça, segura com firmeza o meu pau e me toca com rapidez. Deito-me, sou aquecido pela sua boca, e começo a preparar um baseado. Enevoadas chupadas elevam-me a Jah. Decido retribuir, ela se ajeita suavemente, beijo a barriguinha, desço, tiro sem pressa a calcinha, viajo no cheiro dos pêlos tratados com esmero, no sabor de sua xota e em mordidas no grelo duro em minha cara. Ela se contorce, aperta minha cabeça, rosna, grita, bate na minha cabeça, me sufoca. Penetro-a com voracidade, corpos molhados, epileticamente mexemo-nos. Suas pernas travam a minha cintura, aperta minha bunda, bate nela, me arranha, desfere um forte tapa em meu rosto, cuspo na sua boca. Ela está ensopada, aproveito o líquido que escorre e enfio o dedo no seu cu, delira. Jogo-a sobre mim, ela cavalga com frenesi, sua bunda está ardendo com a força dos meus tapas, pula ainda mais e pede para que a pegue como uma cachorra. Duplo penetro-a. Visceral. Puxo seus cabelos com força. Noto que domina o pompoarismo, fico louco. Ela grita por mais e mais e mais. De repente amoleço, busco forças, concentro-me, mas não consigo continuar. Despedaço-me ao seu lado, me encolho e começo a chorar, desesperado. Deixa, não fica assim. Ignoro seus comentários e desfaço-me em uma torrente de lágrimas. Ela insiste em falar, apenas choro, e muito. Ela se aflige, quer me abraçar, afasto com violência seu braço. Grito para que vá embora. Por quê? Não respondo, continuo a me contorcer e me enrosco nos lençóis. Fetal, aperto-me. Um tempo interminável se passa, eu permaneço na mesma. Ela fica falando e tentando me tocar, no que é prontamente repelida. Não me viro para ela. Não escuto mais sua voz. Apenas meus grunhidos quebram o silêncio e a frieza tangíveis do quarto. Até que a porta da sala bate. Permaneço chorando. Durmo.

nada a dizer

noite fria, chuvosa. decido não sair, fico em casa. olho para a tela incompleta pendurada na parede, toda preta, tudo preto. no som, perfect day do álbum transformer, lou reed na fase glam rock. um tanto lisérgico, um tanto depressivo como os anos 70 ou como sempre foi.
uísque no gargalo, resolvo preparar um baseado. toca o telefone, atendo. é ann do outro lado.
- oi, tudo bem?
sua voz está empolgada, apesar de certa indecisão.
- tudo, e você?
- estou com saudade, precisava falar contigo...
- tô escutando...
- o que cê tá fazendo?
- nada de novo. preparando um cigarro.
- então! não fume do teu. venha para cá! consegui um boldinho com a paty.
imagino-a sentada na ponta da poltrona, coluna ereta, a mão direita enrolando os cabelos, os olhos elétricos aguardando resposta.
- tá chovendo. é domingo. vou levar um tempão para chegar até aí.
- ah, vem! tem um vinho na geladeira...
- vinho é uma. espera um pouco.

(silêncio)

- oi! fui pegar um colomy.
- amor, venha para cá! preciso de você, tô tão sozinha... olha! peguei um filme: “medos privados em lugares públicos”!
- filme para pensar, bom título, é o que rola. mas prefiro um que me leve a sonhar...
já sinto sua aflição do outro lado da linha. não pretendo sair, muito menos vê-la.
- o que houve? você está bem?

(silêncio)

ela sabe respeitar meus silêncios, por isto admiro-a. todavia, não dura muito tempo, por isto odeio-a.
- amor, estou falando com você...
- ah, oi, estava procurando o isqueiro – acendo o cigarro e trago longamente.
- olha, tem um rango especial que você adora: lula com arroz e brócolis.
- show... mas o que fez hoje?
- ah! encontrei aquele disco do beto guedes que você tanto fala, contos da lua vaga. é lindo demais, pensei em você direto! já escutei várias vezes: “o tema da canção / meu coração guardou / para dar a quem trouxer / a mensagem dos caminhos / livres...”
- mandou bem, grande disco. contudo, não consigo mais viajar em beto guedes... tô em outra. não creio mais, sei lá...
- pára de reclamar! sei que você adora-o e conheci contigo.
o assunto começa a me cansar. não digo a ela, mas deveria falar que não agüento mais as canções de beto guedes.
- amor, andei lendo o jornal hoje e tinha uma notícia aterrorizante.
- é?! acho que sempre há...
- deixa eu falar! robôs preparados para atuar na guerra, acredita? são robôs que serão utilizados em um futuro próximo nas linhas de frente dos combates. os eua pretendem ter 1/3 das suas forças assim. e o pior! estudam para que eles sejam inteligentes e tomem decisões acerca da vida de uma pessoa! é um absurdo!!!
- como em robocop, o filme, respondo com desinteresse.
- exato, amor. a matéria fala que esses robôs já são usados na coréia do sul e alguns outros países. diz também que os eua já usam aviões automáticos para atacar seus alvos. terrível!
- assim os soldados não se abalam com as mortes causadas e provavelmente, com tal atitude, impedirá qualquer pedido de indenização por trauma, depressão ou qualquer coisa desse tipo. a guerra finalmente vira um jogo de playstation. jean baudrillard já havia dito isto sobre a guerra da bósnia ou do iraque feita pelo bush pai.
- como podem lidar assim com o destino de milhares de vidas?
- o homem é isto que está aí, não há respeito à vida, às pessoas insignificantes que estão nessas áreas de conflito – respondo com voz arrastada querendo encerrar a conversa enquanto acerto o nó.
- outra notícia: o governo aumentará a verba e o contingente para a força nacional. depois de passar pelo espírito santo, rio, mato grosso e maranhão, ela irá para pernambuco, bahia e são paulo, e até dezembro voltará para cá.
- resolveram assumir a exclusão dos miseráveis, o refugo humano. cada vez se concentrarão mais nos serviços de segurança privada. não se preocuparão mais na solução de problemas sociais como moradia, educação, saneamento, saúde. deixarão entregues à própria sorte os excluídos, os conflitos urbanos serão constantes: os miseráveis bárbaros com paus e pedras enfrentarão as milícias particulares, ou os uniformes assassinos, equipados com alta tecnologia a proteger as cidades de muros encurraladas pelas favelas. não quero viver para ver isto. é o fim!
- também li que aproveitarão o derretimento do ártico para rotas comerciais de navios. não estão nem aí para o aquecimento global. são uns filhos-da-puta!
resolvo trocar o disco, o fone está torto em meu ombro e faço malabarismo para que não caia, apesar que se cair não fará diferença. coloco wish you were here, do pink floyd, procuro o incenso e mais uma vez o isqueiro.
- amor!

(silêncio)

- oi!
- o que você acha do derretimento global?
- eu? não acho mais nada. no teu disco, beto canta: “terra és o mais bonito dos planetas / tão te maltratando por dinheiro / tu que és a nave nossa irmã / canta / leva tua vida em harmonia...” acho que não há mais sentido para este tipo de idéia. nascemos durante as trevas da ditadura do médici, nossa geração está marcada pela escuridão. vimos quando crianças os comícios das diretas já!, talvez o único momento de luz. dezoito anos depois a farsa da vitória do lula e do pt. lennon vaticinou: the dream is over! é isto, não há mais nada a dizer, fazer, pensar, lutar, sonhar. nem amor. eles venceram...
- não fala assim, amor, ela chora do outro lado da linha, com os ombros escondendo o pescoço. já conheço a cena.

(silêncio meu, choro dela)

- consultei seu mapa hoje. é netuno regendo o período do mês e nos deixa confusos, sombrios. turva as soluções, fortalece a sensação de distopia, a crença no caos. não é ruim, ainda temos um ao outro.
o papo esotérico deprime-me. detono a garrafa de uísque. coloco o álbum closer, do joy division, a música só poderia ser love will tear us apart.

(silêncio)

- amor, você tá aí? (choro) amor... (choro)
pego o fone do chão, escuto sua voz, ela permanece chorando... ouço a música do outro lado: “são vidas dos belos horizontes / gente das mais preciosas fontes / onde ser é ternamente brotar...” não respondo... o celular toca, não atendo...


rapaz é encontrado morto em apartamento. o elemento foi achado pela namorada e estava preso por uma corda no ventilador de teto. vizinhos afirmam que o suicida era anti-social, usava drogas e promovia orgias constantes. segundo moradores que não quiseram se identificar, o rapaz teria dívida com traficantes. a polícia investiga o seu suposto envolvimento com o tráfico de drogas da região.


riso,
14/10/2007

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Roberto Bolaño: Noturno no Chile

Em 2005, conversando sobre escritores latino-americanos contemporâneos, o saudoso colega do curso de Letras, Luis Menezes, mencionou o nome de Roberto Bolaño. Chileno, nascido em 1953, foi preso pelo governo ditatorial de Pinochet em 1973, sendo solto em seguida. Instalou-se no México, fundou o movimento de vanguarda literária Infra-Realismo, depois estabilizou-se em Barcelona, Espanha, onde morreu aos 50 anos no ano de 2003. Bolaño foi dono de uma escrita densa e visceral, ou literatura visceral-realista como é conhecido o estilo de escritores latinos pós-anos 70, que possui uma linha tênue entre ficção e realidade.

Confesso que guardei o nome mais pelo inusitado da forma do romance comentado à época, que tinha sido escrito em dois parágrafos, sendo que o segundo tinha apenas uma linha. Passado o tempo, decidi comprar neste mês o referido livro, Noturno no Chile. O romance é de tirar o fôlego. É um monólogo em que o narrador, Sebastián Urrutia Lacroix, padre e crítico literário, rememora de forma incessante etapas da sua vida à beira da morte. Amante da literatura, o padre Sebastián refaz sua trajetória inserindo algumas figuras marcantes da história recente do Chile, como o escritor Pablo Neruda e o ditador Augusto Pinochet.

Padre Sebastián conta o seu envolvimento com o meio literário chileno através da amizade com o imaginário crítico literário Farewell, posto como o maior crítico do Chile. A partir daí, passa a conviver com os grandes nomes da literatura do país como o supracitado Neruda e outros tantos nomes em acalorados debates na fazenda de Farewell. Cresce como crítico, escreve para jornais, faz seus poemas etc.

Um dia, recebe uma inesperada missão de duas misteriosas personagens, os senhores Odem e Oidó (medo e ódio, respectivamente). Ele fora convocado para visitar igrejas na Europa e estudar a maneira como são conservadas, pois havia necessidade de preservar as igrejas chilenas, algo que não era feito e não se encontrava pessoas especializadas para tal empreitada. O padre parte para a Europa, visita diversas igrejas em diferentes países e percebe que a principal forma de conservação dessas é feita com o uso de falcões para exterminar os pombos, pois “não era a poluição ambiental o maior agente destruidor dos grandes monumentos românicos e góticos, mas a poluição animal, mais concretamente a cagada das pombas”. Uma metáfora da situação política chilena sob a sanguinária ditadura de Pinochet, que massacrava seus opositores.

Missão dada, missão cumprida. Padre Sebastián retorna ao seu país. Allende ganha a eleição. O Chile ferve com as mudanças políticas, o prenúncio do golpe militar e Padre Sebastián tranca-se em sua casa para reler os escritores gregos. A corja de Pinochet bombardeia La Moneda e assume o poder. O narrador silencia-se diante do acontecido e pede apenas paz.

Logo em seguida, ele é novamente procurado pelos srs. Odem e Oidó. Agora para uma missão que necessitaria sigilo absoluto e somente ele seria capaz de cumpri-la. O padre havia sido selecionado para dar aulas sobre marxismo para Pinochet e o alto escalão da ditadura chilena, que desejavam compreender como pensavam os inimigos do regime. Indeciso e temeroso, porém obrigado a aceitar, Padre Sebastián ministra as aulas com frieza, distante de opiniões críticas a favor ou contrárias à ideologia marxista sob o olhar inquisidor dos militares.

Durante o sombrio período do regime ditatorial, o toque de recolher é imposto e os escritores promovem tertúlias literárias que adentram a noite na mansão de María Canalles, escritora medíocre que tenta participar da intelectualidade chilena. Entretanto, posteriormente descobre-se que esta mansão era também usada como local de interrogatório e tortura contra os comunistas. Fato descoberto à época, mas silenciado pelos próprios intelectuais, freqüentadores das reuniões.

É em torno dessa evasão que perpassa todo o romance, de um narrador que está sempre alheio aos acontecimentos políticos e pensa apenas na glória da literatura. É a contradição humana apresentada diante de um regime repugnante que emperrou o país. Algo que gera revolta em mim, porém fica difícil julgar o porquê da omissão de quem vivenciou momentos sinistros e infelizmente tão comuns na história dos países latino-americanos. O que não impede, mas, sim, obriga a leitura de Noturno do Chile, de Roberto Bolaño. Trata-se de ótima literatura.


BOLAÑO, Roberto. Noturno no Chile. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

TRECHO:
“Inclinei a cabeça e fui embora. Enquanto dirigia, de volta para Santiago, pensei nas palavras dela. É assim que se faz literatura no Chile, mas não só no Chile, também na Argentina e no México, na Guatemala e no Uruguai, e na Espanha, na França e na Alemanha, e na verde Inglaterra, e na alegre Itália. Assim se faz literatura. Ou o que nós, para não cair na sarjeta, chamamos literatura.”

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Quando acontece

De repente nossos olhares se cruzam. Noto que seu sorriso um tanto discreto pede confirmação. Reparei rapidamente em seus olhos, encaracolados cabelos, pele queimada, pouca maquiagem, brincos e cordão daqueles feitos por hippies, blusinha leve e estampada moldando os pequenos seios, saia, tattoo no tornozelo, sandália rasteira. Sorri. Pego minha bebida e vou em sua direção. Bebemos a mesma cerveja, percebo seu cigarro. Posso, disse. Claro, é a resposta. Sento e começamos a nos descobrir. Concentro-me no som aveludado que aquela boca de lábios levemente carnudos emite. Na transcendência de sua voz e no olhar penetrante que me encara docemente, viajo. O bar está bastante movimentado como acontece em uma noite de sexta-feira, pessoas empolgadas, música alta, contudo, ouço apenas um ruído longínquo, indefinido e escuto apenas aquela voz. As cumplicidades começam a surgir, teatro – ela estuda teatro –, cinema, mapa astral, música, literatura, pintura, estrada, sonhos. Soltamo-nos, abrimo-nos. Os sorrisos tornam-se mais intensos, singelos e doces. Você tem um baseado, sim, vamos fumar, vamos. O toque. O desejo. Conta encerrada, saímos. Na rua a infinitude do beijo ardente, mãos ágeis, certeiras desvendam os corpos espremidos. Minha casa é aqui perto, partimos. Beto Guedes rolando, incenso no ar, baseado queimando, corpos acesos. Carícias agressivamente ternas, pungentes, despimo-nos. Penetro-a com voracidade, frenéticos mexemo-nos, devoramo-nos. O pompoarismo me alucina, enquanto me arranha solto tapas viscerais e ela pede mais e mais e mais. Até que desabo, saio de dentro dela, deito ao seu lado, encolho-me e choro desesperadamente. O que houve, ignoro a pergunta. Ela insiste e permaneço sem respondê-la. Choro ainda mais. Ela se aflige, quer me abraçar, não deixo. Grito para ir embora. Enrosco-me nos lençóis. Fetal, aperto-me. Não escuto mais sua voz. O vazio. A porta bate. Continuo chorando. Durmo.

Riso - 09 de outubro de 2007.