terça-feira, 11 de maio de 2010

Eduardo White - A fuga e a húmida do amor (excertos)

1

Possuem uma cabeça essas mãos com as quais repartes a farínica pele do pão que tomaste sobre a mesa. Têm os olhos porosos incrustados em sua crosta e a chuva cerca-as pela lembrança da lenha que o cozeu.

Das mãos, os dedos moldávios na massa, o risível conhecimento da insónia inquietando-a iluminada deformável.

Sinceramente: gosto do modo como o repartes, pouco a pouco, lentissimamente impregnada de inconfidencialidade, de terra, cinza e água. Matéria bastante para revelar-me, eu chamando-te.

Sabes-me a essa nudez do instante onde és ave a adornar a língua tilintante da beleza e onde o pão se confunde, aberto, repartido, contigo, nua habitável, como um país do qual se escreve.

No corpo um coração impresso, pulsante e matinal tal é a sua nitidez. Observo-o atento. para lá do que me é possível dizer.

As mãos, então, é que já te digo, espelhos autênticos, necessários ao tarot da música que reflectes como se a ela suasses. Poro a poro. Parte à parte incomensurável do seu corpo.
(p. 31)


6

Também, é bom beijar-te. Um beijo está sempre mais ao alcance da fala, do búzio sonoro do silêncio, da água aérea da saliva.

No entanto, quero que saibas que não me consterna o facto de aqui não estares. De nunca teres estado, pois nunca passaste, desde sempre, de uma visão.

O meu amor amura-te o suficiente para que sejas mais do que real. Aliás, como o é a minha loucura para os outros. Amar-te é como nascer, faço-o sozinho.

Embarcado no que acredito, no que recordo, no que avivo, no que crio e invento.

Em resumo: com o que te sonho.
(p. 38)


8

Acendo um feitiço dentro desta folha. A teoria da possibilidade de o seres. Os entes que evoco pelas conchas das palavras, os ungüentos da pontuação. Leio-os espalhados pela esteira. E uma tempestade nasce-me dentro. Em turbilhão.

Pedem-me os deuses outras falas. Outros estrebuchares do corpo. Outros revirares dos olhos. Tu impassível diante de tudo. Serena como uma lua a encandear a noite.

Não sei, nem dentro deste exorcismo, nem destas convulsões, não diviso os deuses pequenos para que te atendam. Que pacto terás feito tu com Deus para que estejas tão omnipresente, tão cândida e refrescante?

Estou possesso. Prostrado e angustiado pelo chão. Pelos vasilhames da exaustão.

Rendido ao mal do qual me havia proposto salvar-te.

Não estás, agora. Agora que, cambaleante, vou regressando da tontura. Tal como surges, partes.
(p. 40)

(WHITE, Eduardo. A fuga e a húmida escrita do amor. Maputo: Texto Editores, 2008)

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